EVANGELHO - Jo 20,19-23
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou-Se no meio deles e disse lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou,
também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».
As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
31 maio 2020
29 maio 2020
Textos dos dias que correm
A sustentabilidade segundo a Bíblia
«Sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde» (papa Francisco, “Laudato si’”, 89).
Mesmos os cientistas, do seu ponto de vista – muitas vezes não escutados pelos políticos e desmentidos por comportamentos quotidianos dos cidadãos – reiteram que estamos no interior de um único e grandioso ecossistema, que o químico britânico James Lovelock denominou com o termo de matriz grega Gaia, a Terra, considerada como um único organismo vivo.
Não é por acaso que o termo “natura” deriva do verbo “nascer”, evocando algo de vivente, e é sugestivo recordar que, sempre na língua do classicismo grego e do Novo Testamento, o vocábulo “physis” (que gerou o nosso “física”) descende do verbo “phyein”, que significa “respirar”.
Infelizmente, são muitos os atentados que a civilização contemporânea comete contra esta unidade admirável, na qual «há sempre alguma coisa de maravilhoso», como afirmava já no século IV a.C. Aristóteles, o célebre filósofo grego. Também o sábio bíblico do II século a.C., dito Sirácida, escrevia: «Quanto são amáveis todas as obras do Criador! E delas apenas uma centelha se pode observar… Todas as coisas são duas a duas, uma diante da outra, Ele nada fez de incompleto» (42,22.24).
«O mundo é um belo livro, mas de pouco serve a quem não sabe lê-lo», escreveu o comediógrafo setecentista Carlo Goldoni. E a admiração que se experimenta ao folhear as suas páginas não floresce só ao contemplar o cosmo, mas também o microcosmo (pensemos apenas em quanto a ciência descobriu no interior das partículas mínimas da matéria.
Há uma palavra que enche as bocas, mas deixa indiferente as mãos e, portanto, o empenho das pessoas: sustentabilidade. Obviamente o termo equivalente não existe das Sagradas Escrituras, mas o conceito está presente e foi desenvolvido pela própria tradição cristã. No interior da “Laudato si’” ressoa pelo menos uma dúzia de vezes. A Palavra de Deus condena repetidamente a exploração insensata e egoísta dos bens que Deus destinou universalmente à humanidade.
Esses bens são açambarcados só por alguns poucos ou desperdiçados insensatamente: pense-se na dispersão da água, ou na fome do mundo quando um terço dos alimentos é objeto de descarte, ou no fenómeno do denominado “overshoot”, através do qual se começam a consumir produtos e energias terrerstres destinados ao ano seguinte já nos primeiros meses do ano anterior, com um excesso que ignora o futuro.
Na parábola do rico que se banqueteia até à náusea e do pobre Lázaro que se tem de contentar com os restos lançados fora (cf. Lucas 16,19-31) está a síntese simbólica deste drama.
Card. Gianfranco Ravasi
In Famiglia Cristiana
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 28.05.2020
«Sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde» (papa Francisco, “Laudato si’”, 89).
Mesmos os cientistas, do seu ponto de vista – muitas vezes não escutados pelos políticos e desmentidos por comportamentos quotidianos dos cidadãos – reiteram que estamos no interior de um único e grandioso ecossistema, que o químico britânico James Lovelock denominou com o termo de matriz grega Gaia, a Terra, considerada como um único organismo vivo.
Não é por acaso que o termo “natura” deriva do verbo “nascer”, evocando algo de vivente, e é sugestivo recordar que, sempre na língua do classicismo grego e do Novo Testamento, o vocábulo “physis” (que gerou o nosso “física”) descende do verbo “phyein”, que significa “respirar”.
Infelizmente, são muitos os atentados que a civilização contemporânea comete contra esta unidade admirável, na qual «há sempre alguma coisa de maravilhoso», como afirmava já no século IV a.C. Aristóteles, o célebre filósofo grego. Também o sábio bíblico do II século a.C., dito Sirácida, escrevia: «Quanto são amáveis todas as obras do Criador! E delas apenas uma centelha se pode observar… Todas as coisas são duas a duas, uma diante da outra, Ele nada fez de incompleto» (42,22.24).
«O mundo é um belo livro, mas de pouco serve a quem não sabe lê-lo», escreveu o comediógrafo setecentista Carlo Goldoni. E a admiração que se experimenta ao folhear as suas páginas não floresce só ao contemplar o cosmo, mas também o microcosmo (pensemos apenas em quanto a ciência descobriu no interior das partículas mínimas da matéria.
Há uma palavra que enche as bocas, mas deixa indiferente as mãos e, portanto, o empenho das pessoas: sustentabilidade. Obviamente o termo equivalente não existe das Sagradas Escrituras, mas o conceito está presente e foi desenvolvido pela própria tradição cristã. No interior da “Laudato si’” ressoa pelo menos uma dúzia de vezes. A Palavra de Deus condena repetidamente a exploração insensata e egoísta dos bens que Deus destinou universalmente à humanidade.
Esses bens são açambarcados só por alguns poucos ou desperdiçados insensatamente: pense-se na dispersão da água, ou na fome do mundo quando um terço dos alimentos é objeto de descarte, ou no fenómeno do denominado “overshoot”, através do qual se começam a consumir produtos e energias terrerstres destinados ao ano seguinte já nos primeiros meses do ano anterior, com um excesso que ignora o futuro.
Na parábola do rico que se banqueteia até à náusea e do pobre Lázaro que se tem de contentar com os restos lançados fora (cf. Lucas 16,19-31) está a síntese simbólica deste drama.
Card. Gianfranco Ravasi
In Famiglia Cristiana
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 28.05.2020
28 maio 2020
Crónica do confinamento
Vejo na televisão uma reportagem sobre os tempos de confinamento. Fala-se de separação, de excesso de proximidade, de teletrabalho com crianças enérgicas e sem espaço. Fala-se do corte com hábitos de contacto físico. Há uma senhora que, entrevistada, confessa: não sou muito de beijos, de grandes demonstrações de afecto; sou mais de fazer coisas... Percebo o que está por trás, até porque conheço gente assim, em cujas vidas só aparentemente têm de escolher entre dar beijos ou executar uma tarefa. Na verdade, entre ambas as actividades não está, normalmente, uma condição "ou" - ou isto ou aquilo. Quem está de fora percebe, simplesmente, que algumas pessoas preferem isto a aquilo, não lhes cabendo optar com angústia ou denodo. Também eu prefiro um belo peixe assado a uma declaração trimestral do IVA.
***
Diz-se que toda a crise é uma oportunidade. É bem verdade, se bem que a definição de oportunidade varie entre as pessoas. Eu explico, na sequência da entrada acima: conheço pelo menos três pessoas (raparigas nos 30 anos e rapaz pouco acima dos 40) para quem a eliminação do beijo social foi uma alegria ou um alívio. Também conheço gente do mesmo sexo e da mesma idade que não pensa assim. Porém, a pandemia introduziu uma variável nova ao nível dos contactos sociais. A partir de agora teremos de perguntar: queres ser beijada? Posso apertar-te a mão? Talvez ganhemos o hábito do simples olá e nos aproximemos da frieza anglo-saxónica. Curiosamente, a pandemia promoveu o hábito dos mecânicos de cumprimentar com o cotovelo numa prática sanitária - mas detestável. Há gente feliz, para quem este hábito tão latino do beijo (que se estendeu ao mundo profissional) e do abraço deveriam acabar - com ou sem pandemia. Tenho pena.
***
Leio nos jornais que os tatuadores vivem uma situação insustentável: estamos com a corda ao pescoço, afirmaram. A expressão é corrente, e eu percebo o drama: preferiam uma agulha junto ao pescoço para cumprir a sua arte; a corda não lhes serve para nada. Tenho respeito por essa classe laboriosa e criativa, mas não sei se o jornal que lhes deu voz decidiu fazer uma ronda pelas actividades profissionais do país, e eu deparei-me com a letra 'T'. Na verdade, serão os tatuadores, as costureiras, os donos de lojas de retrós, os / as pedicuras ou os profissionais diligentes e corajoso que conduzem os cestos de vime com turistas pelas ladeiras abaixo na bela Madeira. A respeito de tatuagens não resisto a uma pequena citação. Alfred Loos, um arquitecto vienense nascido em 1870, escreveu, em 1908, um texto a que chamou Ornamento e Crime. E afirma, a certo momento: o Papua faz tatuagens na sua pele, canoa, remo – enfim, em tudo o que puder alcançar. Ele não é nenhum criminoso. O homem moderno que faça tatuagens, ou é criminoso ou é degenerado. Há prisões em que 80% dos reclusos apresentam tatuagens. Os tatuados que não estão presos ou são potenciais ladrões ou aristocratas degenerados.
JdB
27 maio 2020
Duas Últimas
Uma das músicas escolhidas para uma playlist criada por alguém que me é próximo e a que chamou #coronavirus2020. Mercedes Sosa, a Voz dos Sem Voz, para citar quem a escolheu.
JdB
JdB
26 maio 2020
Da felicidade e do Céu
Um dia destes falava com alguém sobre terceira pessoa, tendo eu afirmado: Deus queira que seja feliz. Do lado de lá do telefone a resposta veio rápida e assertiva: Deus queira que vá para o Céu; se conseguir ser feliz antes ainda melhor. Hoje, no meu passeio muito matinal no paredão (com muito mais gente do que é costume) dei por mim a pensar na afirmação e na resposta.
Usei muitas vezes o argumento do Céu como objectivo máximo na vida de um cristão. Afinal, ir para o Céu é ir para Céu - e isso é sempre bom; ser-se feliz, pelo contrário, pode ser um objectivo egoísta, porque podemos atingir a felicidade à custa da infelicidade dos outros. Nesse sentido, a resposta que me deram está correcta: Deus queira que vá para o Céu; se conseguir ser feliz antes ainda melhor.
Ora, antes do mais falamos de momentos diferentes; se eu entendi correctamente a frase que me foi dita, ela contém uma espécie de contradição em termos. Vamos para o Céu quando morrermos, e só quando lá chegarmos é que sabemos que estamos no Céu. Também pode acontecer - como eu acredito que acontece - que para o Céu vão todos, menos aqueles que o rejeitam até ao fim, nunca se arrependendo de nada que possam ter feito de mal. Mesmo assim, se pensarmos que Deus não é senão Amor, não estou certo de que esses não vão também para o Céu. Então, se esta teoria assente na fé for válida, não vale a pena estar a desejar algo que sabemos que de facto nos vai acontecer. Na verdade, até o bom ladrão se arrependeu no último momento, chegando ao Paraíso nesse mesmo dia.
Por outro lado, se bem que o Céu se ganhe na Terra, não é na Terra que vamos para o Céu - e essa é uma decisão que não nos compete tomar, apenas podemos querer ser merecedores dela. O que podemos então desejar para a caminhada terrena de alguém? Que vá para determinado sítio quando morrer? Devemos então estabelecer um objectivo terreno, que tenhamos a possibilidade de atingir e que nos garanta o Céu? A felicidade pode ser um deles? Ou talvez seja mais correcto pretendermos que alguém deseje o Céu, não que vá para o Céu?
Por outro lado, se bem que o Céu se ganhe na Terra, não é na Terra que vamos para o Céu - e essa é uma decisão que não nos compete tomar, apenas podemos querer ser merecedores dela. O que podemos então desejar para a caminhada terrena de alguém? Que vá para determinado sítio quando morrer? Devemos então estabelecer um objectivo terreno, que tenhamos a possibilidade de atingir e que nos garanta o Céu? A felicidade pode ser um deles? Ou talvez seja mais correcto pretendermos que alguém deseje o Céu, não que vá para o Céu?
Socorro-me de duas citações:
De Aristóteles (in Ética a Nicómaco):
Parece ainda que todas as características procuradas na felicidade existem de acordo com o sentido estabelecido. Para uns é a excelência, para outros a sensatez, para outros ainda parece ser uma certa sabedoria, para outros, finalmente, todas estas actividades ou algumas delas em conexão com o prazer ou então, pelo menos, não sem o prazer.
(...)
O sentido fixado por nós concorda com aqueles que dizem que a felicidade é a excelência ou uma certa excelência.
Agora de Santo Agostinho (in Confissões):
Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que desinteressadamente te servem, cuja alegria és tu mesmo. E a vida feliz consiste em sentir alegria junto de ti, vinda de ti, graças a ti: esta é a vida feliz e não há outra.
Para obviar discussões talvez pudéssemos desejar, então, que esta pessoa de quem estávamos a falar levasse uma vida boa, que é diferente de levar uma boa vida - a ordem dos factores não é, de facto, arbitrária. Porém, lendo Aristóteles e Santo Agostinho - nascidos com um intervalo de 700 anos - acho que posso continuar a desejar que a dita pessoa seja feliz. Em bom rigor, se for esta a felicidade que ele procura, de certeza que vai para o Céu.
JdB
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25 maio 2020
Textos do dias que correm *
A Posteridade é uma Sobreposição de Minorias
Aquele que despreza o aplauso da multidão de hoje, é o que procura sobreviver em renovadas minorias, durante gerações. «A posteridade é uma sobreposição de minorias», dizia Gounod. Quer-se prolongar mais no tempo do que no espaço. Os ídolos das multidões são derrubados prontamente por elas mesmas, e a sua estátua desfaz-se ao pé do pedestal, sem que ninguém olhe para ela, enquanto que aqueles que conquistam o coração dos escolhidos receberão, por mais tempo, um culto fervoroso numa capela, ainda que recolhida e pequena, mas que salvará as avenidas do esquecimento. O artista sacrifica a grandeza da sua fama à sua duração; anseia mais por durar sempre num recôndito, do que que brilhar um segundo no universo todo; antes quer ser o átomo eterno e consciente de si mesmo, do que a momentânea consciência do universo todo; sacrifica a infinidade à eternidade.
Miguel de Unamuno, in 'Do Sentimento Trágico da Vida'
***
A Verdadeira Religião
Nunca me esquecerei do dia em que, dizendo-lhe «Mas, senhor padre Manuel, a verdade, a verdade, acima de tudo», ele, a tremer, sussurrou-me ao ouvido - e isso apesar de estarmos sozinhos no meio do campo: - «A verdade? A verdade, Lázaro, é porventura uma coisa terrível, uma coisa intolerável, uma coisa mortal; as pessoas simples não conseguiriam viver com ela.»
«E porque é que ma deixa vislumbrar agora aqui, como confissão?», perguntei-lhe. E ele respondeu: «Porque se não atormentar-me-ia tanto, tanto, que eu acabaria por gritá-lo no meio da praça, e isso nunca, nunca, nunca. Eu estou cá para fazer viver as almas dos meus paroquianos, para os fazer felizes, para fazer com que se sonhem imortais e não para os matar.
O que aqui faz falta é que eles vivam sãmente, que vivam em unanimidade de sentido, e com a verdade, com a minha verdade, não viveriam. Que vivam. E é isto que a Igreja faz, fazer com que vivam. Religião verdadeira? Todas as religiões são verdadeiras enquanto fazem viver espiritualmente os povos que as professam, enquanto os consolam de terem tido de nascer para morrer, e para cada povo a religião mais verdadeira é a sua, a que ele fez. E a minha? A minha é consolar-me em consolar os outros, embora o consolo que eu lhes dê não seja o meu.»
Nunca esquecerei estas suas palavras.
Miguel de Unamuno, in 'São Manuel Bom, Mártir'
------
* numa altura em que leio Do Sentimento Trágico da Vida.
Aquele que despreza o aplauso da multidão de hoje, é o que procura sobreviver em renovadas minorias, durante gerações. «A posteridade é uma sobreposição de minorias», dizia Gounod. Quer-se prolongar mais no tempo do que no espaço. Os ídolos das multidões são derrubados prontamente por elas mesmas, e a sua estátua desfaz-se ao pé do pedestal, sem que ninguém olhe para ela, enquanto que aqueles que conquistam o coração dos escolhidos receberão, por mais tempo, um culto fervoroso numa capela, ainda que recolhida e pequena, mas que salvará as avenidas do esquecimento. O artista sacrifica a grandeza da sua fama à sua duração; anseia mais por durar sempre num recôndito, do que que brilhar um segundo no universo todo; antes quer ser o átomo eterno e consciente de si mesmo, do que a momentânea consciência do universo todo; sacrifica a infinidade à eternidade.
Miguel de Unamuno, in 'Do Sentimento Trágico da Vida'
***
A Verdadeira Religião
Nunca me esquecerei do dia em que, dizendo-lhe «Mas, senhor padre Manuel, a verdade, a verdade, acima de tudo», ele, a tremer, sussurrou-me ao ouvido - e isso apesar de estarmos sozinhos no meio do campo: - «A verdade? A verdade, Lázaro, é porventura uma coisa terrível, uma coisa intolerável, uma coisa mortal; as pessoas simples não conseguiriam viver com ela.»
«E porque é que ma deixa vislumbrar agora aqui, como confissão?», perguntei-lhe. E ele respondeu: «Porque se não atormentar-me-ia tanto, tanto, que eu acabaria por gritá-lo no meio da praça, e isso nunca, nunca, nunca. Eu estou cá para fazer viver as almas dos meus paroquianos, para os fazer felizes, para fazer com que se sonhem imortais e não para os matar.
O que aqui faz falta é que eles vivam sãmente, que vivam em unanimidade de sentido, e com a verdade, com a minha verdade, não viveriam. Que vivam. E é isto que a Igreja faz, fazer com que vivam. Religião verdadeira? Todas as religiões são verdadeiras enquanto fazem viver espiritualmente os povos que as professam, enquanto os consolam de terem tido de nascer para morrer, e para cada povo a religião mais verdadeira é a sua, a que ele fez. E a minha? A minha é consolar-me em consolar os outros, embora o consolo que eu lhes dê não seja o meu.»
Nunca esquecerei estas suas palavras.
Miguel de Unamuno, in 'São Manuel Bom, Mártir'
------
* numa altura em que leio Do Sentimento Trágico da Vida.
24 maio 2020
Solenidade da Ascensão
EVANGELHO - Mt 28,16-20
Conclusão do santo Evangelho segundo São Mateus.
Naquele tempo,
os onze discípulos partiram para a Galileia,
em direcção ao monte que Jesus lhes indicara.
Quando O viram, adoraram n'O;
mas alguns ainda duvidaram.
Jesus aproximou Se e disse lhes:
«Todo o poder Me foi dado no Céu e na terra.
Ide e ensinai todas as nações,
baptizando as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,
ensinando as a cumprir tudo o que vos mandei.
Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos».
Conclusão do santo Evangelho segundo São Mateus.
Naquele tempo,
os onze discípulos partiram para a Galileia,
em direcção ao monte que Jesus lhes indicara.
Quando O viram, adoraram n'O;
mas alguns ainda duvidaram.
Jesus aproximou Se e disse lhes:
«Todo o poder Me foi dado no Céu e na terra.
Ide e ensinai todas as nações,
baptizando as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,
ensinando as a cumprir tudo o que vos mandei.
Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos».
22 maio 2020
Textos dos dias que correm
Redescobrir o sentido do limite
Começamos a entrever o fim da epidemia que transtornou profundamente os nossos estilos de vida diários. Aconteceu algo de imprevisível, de realmente impensável. Vivíamos num mundo doente, mas não nos aflorava a ideia de podermos adoecer tão rapidamente e desta maneira.
E eis a inesperada vinda de um mensageiro devastador, o coronavírus. Alguns virólogos colocavam remotas hipóteses sobre a possibilidade de uma tal irrupção. Só alguns, sentinelas capazes de discernir os passos da humanidade, denunciavam, quase profeticamente, ainda que de maneira confusa, que «corríamos em excesso, devíamos deter-nos». Sem uma mudança concreta – diziam – aceleraríamos uma crise de proporções desconhecidas e impensáveis.
É significativo que este flagelo se tenha abatido sobre uma sociedade treinada desde há décadas a pensar a “crise”, exercitada a combate-la sob diversas formas: a crise económica, a financeira, a do tecido social. Tudo isto no quadro dos nossos países ricos, que fazem parte do “primeiro mundo”, onde reinam o mercado, o desenvolvimento, o consumo, a vida opulenta, enquanto permanecem cada vez mais ocultos os débeis, os pobres, os “descartados”. E assim as porções de humanidade “alegres e vencedoras” tiveram de acertar contas com a fragilidade, o sofrimento, até a uma morte desesperante.
Neste tempo escutei muita gente, na solidão do meu eremitério pensei muito e procurei interpretar o que estava a acontecer. Na escuta percebi muito medo, até angústia, por este vírus que andava entre nós invisível e desconhecido; um vírus perante o qual não são possíveis as defesas típicas dos ricos, de quantos podem contar com o seu poder.
Em particular aqueles com mais de setenta anos, massacrados pelos boletins dos mortos e da exigência de se meterem “na cauda da fila” em relação aos mais jovens e fortes, passaram por momentos de abatimento. Quase todos pensaram na possibilidade concreta de serem contagiados e morrer. Nunca – diziam-me – tivemos a morte tão presente, nunca estivemos tão conscientes da nossa fragilidade. Desta maneira, a crise tornou-se uma pergunta sobre a fragilidade e sobre o limite da morte, a que ninguém pode fugir.
Também descobrimos os limites da ciência, da medicina, de muitas realidades que antes nos pareciam garantias tranquilizadoras, a nível pessoal e social. Muitos dizem: «Livrámo-nos dela. Depressa festejaremos!». Tal reação vital é justificada, mas não deve obscurecer em nós o sentido do limite que (re)descobrimos, nem o acontecimento da morte, que aguarda cada um e pode chegar imprevistamente.
Não creio que nesta crise nos tornámos automaticamente melhores, mais solidários, mais capazes de atenção ao outro. Issto depende da nossa vontade e das nossas opções, a serem renovadas a cada dia. Mas se hoje estamos mais conscientes do limite e da morte, então – como afirma o filósofo humanista Salvatore Natoli – «tendo presente a morte, seremos menos propensos a prevaricar sobre os outros». Só isto já não seria pouco!
Enzo Bianchi
In Monastero di Bose
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 21.05.2020
Começamos a entrever o fim da epidemia que transtornou profundamente os nossos estilos de vida diários. Aconteceu algo de imprevisível, de realmente impensável. Vivíamos num mundo doente, mas não nos aflorava a ideia de podermos adoecer tão rapidamente e desta maneira.
E eis a inesperada vinda de um mensageiro devastador, o coronavírus. Alguns virólogos colocavam remotas hipóteses sobre a possibilidade de uma tal irrupção. Só alguns, sentinelas capazes de discernir os passos da humanidade, denunciavam, quase profeticamente, ainda que de maneira confusa, que «corríamos em excesso, devíamos deter-nos». Sem uma mudança concreta – diziam – aceleraríamos uma crise de proporções desconhecidas e impensáveis.
É significativo que este flagelo se tenha abatido sobre uma sociedade treinada desde há décadas a pensar a “crise”, exercitada a combate-la sob diversas formas: a crise económica, a financeira, a do tecido social. Tudo isto no quadro dos nossos países ricos, que fazem parte do “primeiro mundo”, onde reinam o mercado, o desenvolvimento, o consumo, a vida opulenta, enquanto permanecem cada vez mais ocultos os débeis, os pobres, os “descartados”. E assim as porções de humanidade “alegres e vencedoras” tiveram de acertar contas com a fragilidade, o sofrimento, até a uma morte desesperante.
Neste tempo escutei muita gente, na solidão do meu eremitério pensei muito e procurei interpretar o que estava a acontecer. Na escuta percebi muito medo, até angústia, por este vírus que andava entre nós invisível e desconhecido; um vírus perante o qual não são possíveis as defesas típicas dos ricos, de quantos podem contar com o seu poder.
Em particular aqueles com mais de setenta anos, massacrados pelos boletins dos mortos e da exigência de se meterem “na cauda da fila” em relação aos mais jovens e fortes, passaram por momentos de abatimento. Quase todos pensaram na possibilidade concreta de serem contagiados e morrer. Nunca – diziam-me – tivemos a morte tão presente, nunca estivemos tão conscientes da nossa fragilidade. Desta maneira, a crise tornou-se uma pergunta sobre a fragilidade e sobre o limite da morte, a que ninguém pode fugir.
Também descobrimos os limites da ciência, da medicina, de muitas realidades que antes nos pareciam garantias tranquilizadoras, a nível pessoal e social. Muitos dizem: «Livrámo-nos dela. Depressa festejaremos!». Tal reação vital é justificada, mas não deve obscurecer em nós o sentido do limite que (re)descobrimos, nem o acontecimento da morte, que aguarda cada um e pode chegar imprevistamente.
Não creio que nesta crise nos tornámos automaticamente melhores, mais solidários, mais capazes de atenção ao outro. Issto depende da nossa vontade e das nossas opções, a serem renovadas a cada dia. Mas se hoje estamos mais conscientes do limite e da morte, então – como afirma o filósofo humanista Salvatore Natoli – «tendo presente a morte, seremos menos propensos a prevaricar sobre os outros». Só isto já não seria pouco!
Enzo Bianchi
In Monastero di Bose
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 21.05.2020
21 maio 2020
20 maio 2020
Vai um gin do Peter’s ?
ELVIS e TONY BENNETT EM SERENATA À SENHORA DE FÁTIMA
Recuando à juventude de Elvis (1935-1977), em 1948, a família muda-se para Memphis e torna-se próxima de Lee Denson, que acabou por ser professor de guitarra do adolescente de 13 anos. Embora as duas famílias fossem evangélicas, o professor de música começou a aproximar-se do catolicismo e da mensagem da Serra d’Aire através da mulher, que era a excepção como católica e logo calhava conhecer e ser devota da mensagem de Fátima.
No início da década de 60, Lee compôs uma canção às Aparições da Cova de Iria, a que chamou «THE MIRACLE OF THE ROSARY». Pediu, depois, a Elvis para lhe dar voz. A 15 de Maio de 1971, Presley gravou-a na sua batida calorosa e integrou-a no álbum «Elvis Now!», publicado no ano seguinte, a 20 de Fevereiro. O rei do rock manteve intacta a letra, que desfia a Avé-Maria, enquanto agradece o milagre dessa oração de simplicidade cristalina, repescada pela ‘Senhora mais brilhante do que o sol’ para se tornar na companhia mais assídua dos Pastorinhos.
Na década de 80, já Elvis tinha morrido, a canção foi entoada no Santuário de Fátima por Lee Denson, que também a cantou no Carmelo de Coimbra para a única vidente viva – a já velhinha irmã Lúcia.
A letra:
«Oh Blessed Mother we pray to Thee
Thanks for the miracle of Your Rosary
Only You can hold back
Your Holy Son's hand
Long enough for the whole world to understand
Hail Mary full of grace
The Lord is with Thee
Blessed are thou among women
And blessed is the fruit of Thy womb, Jesus
Oh Holy Mary dear Mother of God
Please pray for us sinners
Now and at the hour of our death
And give thanks once again
For the miracle of Your Rosary.»
Nova homenagem da cultura pop americana às Aparições de 1917 emergiu a seguir à Segunda Guerra Mundial, com outra música focada na história misteriosa acontecida a três miúdos do Portugal profundo, mensageiros improváveis e sem credenciais mínimas para uma comunicação urbi et orbi. Intitulou-se «OUR LADY OF FATIMA» e foi comprada pela editora Robbins, em 1950, que a gravou com as vozes conhecidas da época: Red Foley, Kitty Kallen e Ricard Hayes, Andy Williams, Bill Kenny. Mas o intérprete mais famoso, de longe, foi o artista que continua a somar fãs em várias gerações e ser aclamado por encarnar os melhores valores norte-americanos – Tony Bennett. As Nações Unidas atribuíram-lhe o título de «Cidadão do Mundo» e são incontáveis os galardões nacionais e internacionais que já recebeu. Só Grammys foram 19. Na sua gravação de Our Lady, decorrida em Julho de 1950, Bennett introduziu uma espontaneidade na ária-oração, declarando que acreditava em milagres. Na autobiografia «The Good Life: The Autobiography Of Tony Bennett» classificou esta peça musical de «melodramática» e associou-lhe o facto de ter correspondido à sua estreia com o orquestrador Percy Faith.
Além de serem atípicas as incursões da música pop e do rock norte-americanos na religião, ainda mais as devoções marianas (pouco a ver com a confissão maioritária protestante), «Our Lady of Fatima» chegou ao sexto lugar na hit parade – o ranking musical da revista de referência Billboard.
A letra:
«OUR LADY OF FATIMA
(Ave Maria!
Ave Maria)
Dear Lady of Fatima,
We come on bended knee
To beg your intercession,
For peace and unity.
Dear Mary, won't you show us
The right and shining way?
We pledge our love and offer you
A rosary each day!
You promised at Fatima,
Each time that you appear,
To help us, if we pray to you,
To banish war and fear.
Dear lady, on first Saturdays,
We ask your guiding hand,
For grace and guidance here on earth,
And protection for our land.
(You promised at Fatima,
Each time that you appear,
To help us, if we pray to you,
To banish war and fear.)
Dear lady, on first Saturdays,
We ask your guiding hand,
For grace and guidance here on earth,
And protection for our land.
(Ave Maria!)»
Versão de Gladys Gollahon / Samuel Lewis
Nas voltas surpreendentes da vida, calha bem revisitar momentos que podem dar ânimo ao nosso tempo e a boa música é especialmente vitamínica. Revisitá-los vale, ao menos, como tributo a um passado que soube fugir ao comum, com talento.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
19 maio 2020
Pensamentos dos dias que correm *
Há dias aziagos.
Há ideias e decisões que nos povoam a mente durante alguns dias: um pensamento que se quer partilhar, um propósito que é preciso fazer, algo que é necessário dizer.
Medita-se sobre a melhor forma, o timing correcto, as palavras certas. Tudo em nome da eficácia e dos princípios que nos norteiam.
All of a sudden, diriam os ingleses, há um ligeiríssimo desalinhamento dos astros materializado em algo imprevisível, como se o meio-dia chegasse alguns minutos antes, como se o sol desaparecesse, não por trás da linha do horizonte, mas na vertical do nosso lugar, como se a água fervesse a 51º.
De repente, um minúsculo grão de areia deita por terra os pensamentos, as decisões, os propósitos, a noção de tempo exacto.
De repente, tudo em nós se desarticula, range num esforço de máquina forçada, estrebucha como criança que luta contra a sesta benfazeja.
De repente, já não somos nós, mas alguém que, cá dentro, revela o pior que todos temos: a escuridão, o frio, o mal. Elementos que não existem por si, mas pela ausência do seu inverso.
Alguns dos que me lêem sabem do que falo. Assim como sabem que há duas coisas que me pacificam interiormente. Uma é a música clássica bonita, aqui expressa nesta belíssima ária de Puccini. A outra...
Adeus, até ao meu regresso...
JdB
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* publicado originalmente a 10 de Maio de 2009
18 maio 2020
17 maio 2020
6º Domingo da Páscoa
EVANGELHO - João 14,15-21
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos.
E Eu pedirei ao Pai, que vos dará outro Defensor,
para estar sempre convosco:
o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber,
porque não O vê nem O conhece,
mas que vós conheceis,
porque habita convosco e está em vós.
Não vos deixarei órfãos: voltarei para junto de vós.
Daqui a pouco o mundo já não Me verá,
mas vós ver Me eis, porque Eu vivo e vós vivereis.
Nesse dia reconhecereis que Eu estou no Pai
e que vós estais em Mim e Eu em vós.
Se alguém aceita os meus mandamentos e os cumpre,
esse realmente Me ama.
E quem Me ama será amado por meu Pai
e Eu amá-lo-ei e manifestar-Me-ei a ele».
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos.
E Eu pedirei ao Pai, que vos dará outro Defensor,
para estar sempre convosco:
o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber,
porque não O vê nem O conhece,
mas que vós conheceis,
porque habita convosco e está em vós.
Não vos deixarei órfãos: voltarei para junto de vós.
Daqui a pouco o mundo já não Me verá,
mas vós ver Me eis, porque Eu vivo e vós vivereis.
Nesse dia reconhecereis que Eu estou no Pai
e que vós estais em Mim e Eu em vós.
Se alguém aceita os meus mandamentos e os cumpre,
esse realmente Me ama.
E quem Me ama será amado por meu Pai
e Eu amá-lo-ei e manifestar-Me-ei a ele».
15 maio 2020
Poemas dos dias que correm (sugerido por mão amiga)
E por vezes
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos
David Mourão-Ferreira
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos
David Mourão-Ferreira
14 maio 2020
Dos sítios onde actuaríamos ou não
Tenho 62 anos, pelo que no 25 de Abril tinha 16. Durante meia dúzia de anos fiz militância no CDS: colei cartazes sem saber se iríamos ser atacados por partidos de esquerda, defendi bancas no liceu contra a investida da UEC, envolvi-me num ou noutro encontrão; nunca deixei de votar nesse partido. Não sou filho de industriais ou de bancários, mas acompanhei de perto nacionalizações, emigrações forçadas para o Brasil, gente que soube ter estado presa sem culpa formada ou porque pertencia a determinada família. Sendo que uma parte da minha família estava ligada à agricultura, segui ocupações, comícios da CAP, entregas de terras, violências e perseguições. A minha jornada política era muito marcada pela bipolarização: os comunistas estavam do outro lado da barricada; entre nós e eles havia um muro intransponível; sabíamos que, com eles no governo, as nossas vidas corriam algum perigo.
Esta nota autobiográfica deriva de uma conversa que tive ontem: se eu fosse artista e fosse contratado para actuar na festa do Avante, iria? A minha resposta óbvia e imediata seria não, não iria. Porquê? Porque tenho memória do que foi o Partido Comunista em Portugal, do que fizeram e do que fariam se tivessem podido. Naquela altura, os fascistas no Campo Pequeno não eram uma metáfora. Por isso, pela memória que tenho, a minha resposta seria não.
Tenho dois filhos, de 33 e 31 anos, com ideias políticas próximas das minhas. Se eles fossem artistas iriam actuar na festa do Avante, não tendo a memória que eu tenho do que foi o pós 25 de Abril? Não sei. Perguntei a uma pessoa (que por acaso é artista) e que tem 40 anos. A resposta foi que não iria. Quando lhe perguntei porquê, falou no facto do comunismo ter morto mais de 100 milhões de pessoas. A minha recusa assenta numa dimensão mais pequena: a memória de anos que eu vivi com intensidade; tempos perigosos, de alguma violência e grande combate político.
É curioso pensarmos onde traçamos a linha que separa o sim, iria, do não, não iria. Actuaríamos num festival da IURD? Ou da Iniciativa Liberal que, segundo me parece, tem no seu programa o apoio à eutanásia? E se fosse o PS? Ou a maçonaria como ela é hoje?
JdB
13 maio 2020
Duas Últimas
Nunca se usou tanto a palavra separação como agora: pais separados de filhos, avós separados de netos, namorados separados entre si, alunos separados dos professores, sonhos separados da realidade. Foi tudo muito súbito, muito rápido. Foi tudo de repente, não mais que de repente, dirá Vinicius, o poeta.
JdB
12 maio 2020
Textos dos dias que correm
A fé não nos separa, nem nos confunde
Bebemos a fé a partir da situação em que a recebemos. É diferente ser crente desde a nascença ou experimentar a conversão na vida adulta. Quando a fé surge à nascença, recebemo-la como um dom encarnado naquilo que já tínhamos começado a ser ainda antes de vermos a luz. Quando a chegada à Fé implica uma exigente experiência de conversão pode trazer consigo a necessidade de romper com formas e hábitos antigos.
A fé é por isso transmitida entrelaçada com uma experiência concreta, seja da família a que pertencemos, seja de valores e normas sociais ou de diferentes visões do mundo. Por isso, muitas vezes é difícil distingui-la de tudo isso. E, no entanto, a fé não se confunde com as diferentes esferas e heranças da nossa vida. Pode, no nosso entretanto, ser o suporte de cada uma delas e a liberdade que nos impede de absolutizá-las porque o Deus, no qual nos apoiamos, é sempre maior.
Em diferentes momentos da história, as diferentes tradições religiosas deixaram-se apreender pelo poder ou pelas ideologias, manipularam e foram manipuladas. E isso também faz parte da nossa herança católica e, eventualmente, da nossa herança pessoal da fé. É bom aprender a viver em paz com isto, mas é também importante aprender a viver com liberdade esta herança.
Só um catolicismo manietado por ideologias desfocadas, por alguma ideia de superioridade ou privilégio, pode em algum momento achar que confinamentos seletivos têm alguma semelhança com o Evangelho. Jesus morreu por ter rasgado o véu que alimentava uma visão religiosa sustentada por confinamentos que separavam puros de impuros, trouxe a Salvação como oferta universal sem exclusivos ou privilégios.
Ora isto convida-nos a recusar formas sectárias de nos situarmos diante da realidade seja ela a realidade familiar, social, política, cultural ou natural. Somos criados em cada dia à imagem de Deus. E Jesus é o nosso ícone, a referência a que aspiramos. Só podemos ser reflexo dessa imagem em abertura e acolhimento. Fechados, superiores ou privilegiados não somos como Jesus.
Esta abertura faz-se não como fuga da realidade ou do mundo mas como pertença assumida a essa realidade. A fé vive-se na contingência social e corporal que nos toca, precisa de uma dimensão material. Não se opõe nem à sociedade, nem à natureza. A comunidade constitui-se como corpo concreto de gestos e práticas. Alimenta-se de sinais visíveis que precisam da água, do trigo e da uva amadurecida pelo sol.
Para permanecer livre, apoiada em Deus, a fé não pode confundir-se nem com os outros, nem com a cultura, nem com a natureza. Tornar-se-ia idolatria ou panteísmo. Por outro lado, uma fé sectária, separada dos outros, da cultura e da natureza é fundamentalismo sem transcendência é a ideia de um deus desligado da realidade. Em ambos os casos seria uma fé sem Jesus e sem o Evangelho.
P. José Maria Brito, sj
Diretor do "Ponto SJ"
Publicado pelo SNPC em 11.05.2020
Bebemos a fé a partir da situação em que a recebemos. É diferente ser crente desde a nascença ou experimentar a conversão na vida adulta. Quando a fé surge à nascença, recebemo-la como um dom encarnado naquilo que já tínhamos começado a ser ainda antes de vermos a luz. Quando a chegada à Fé implica uma exigente experiência de conversão pode trazer consigo a necessidade de romper com formas e hábitos antigos.
A fé é por isso transmitida entrelaçada com uma experiência concreta, seja da família a que pertencemos, seja de valores e normas sociais ou de diferentes visões do mundo. Por isso, muitas vezes é difícil distingui-la de tudo isso. E, no entanto, a fé não se confunde com as diferentes esferas e heranças da nossa vida. Pode, no nosso entretanto, ser o suporte de cada uma delas e a liberdade que nos impede de absolutizá-las porque o Deus, no qual nos apoiamos, é sempre maior.
Em diferentes momentos da história, as diferentes tradições religiosas deixaram-se apreender pelo poder ou pelas ideologias, manipularam e foram manipuladas. E isso também faz parte da nossa herança católica e, eventualmente, da nossa herança pessoal da fé. É bom aprender a viver em paz com isto, mas é também importante aprender a viver com liberdade esta herança.
Só um catolicismo manietado por ideologias desfocadas, por alguma ideia de superioridade ou privilégio, pode em algum momento achar que confinamentos seletivos têm alguma semelhança com o Evangelho. Jesus morreu por ter rasgado o véu que alimentava uma visão religiosa sustentada por confinamentos que separavam puros de impuros, trouxe a Salvação como oferta universal sem exclusivos ou privilégios.
Ora isto convida-nos a recusar formas sectárias de nos situarmos diante da realidade seja ela a realidade familiar, social, política, cultural ou natural. Somos criados em cada dia à imagem de Deus. E Jesus é o nosso ícone, a referência a que aspiramos. Só podemos ser reflexo dessa imagem em abertura e acolhimento. Fechados, superiores ou privilegiados não somos como Jesus.
Esta abertura faz-se não como fuga da realidade ou do mundo mas como pertença assumida a essa realidade. A fé vive-se na contingência social e corporal que nos toca, precisa de uma dimensão material. Não se opõe nem à sociedade, nem à natureza. A comunidade constitui-se como corpo concreto de gestos e práticas. Alimenta-se de sinais visíveis que precisam da água, do trigo e da uva amadurecida pelo sol.
Para permanecer livre, apoiada em Deus, a fé não pode confundir-se nem com os outros, nem com a cultura, nem com a natureza. Tornar-se-ia idolatria ou panteísmo. Por outro lado, uma fé sectária, separada dos outros, da cultura e da natureza é fundamentalismo sem transcendência é a ideia de um deus desligado da realidade. Em ambos os casos seria uma fé sem Jesus e sem o Evangelho.
P. José Maria Brito, sj
Diretor do "Ponto SJ"
Publicado pelo SNPC em 11.05.2020
11 maio 2020
Da pintura e dos alienados
Num texto intitulado Questões de Estética (Da Pintura, Gradiva, 2017) diz Eduardo Lourenço:
No asilo de alienados de Verona há mil e quinhentas pessoas em vias de cura. Entre essas 1500 encontram-se uma vintena com disposições reais para a pintura. Esta disposição é um dos maiores mistérios. Os pintores dos hospitais psiquiátricos antes de serem enterrados não eram artistas, mas artífices, simples cidadãos.
E mais à frente:
A vista destas telas [a dos alienados] põe algumas questões inquietantes. Por exemplo: no tempo de Rafael, os doentes mentais, se tivessem tido a possibilidade de pintar, teriam pintado à maneira de Veronese ou à maneira de Rafael? Não estou muito seguro disso, mas penso que ela teria sido abstracta como a dos dementes de hoje. E isto porque a loucura se encontra fora do tempo e da História, e porque é sempre igual a si mesma.
Esta percepção de Eduardo Lourenço suscita devaneios interessantes. Como seria vista a pintura abstracta no início do século XV? Provavelmente como a obra de um alienado. Como é vista a pintura abstracta no século XX? Como um estilo, aqui e ali como uma genialidade. Entre a abstracção daquele tempo e a deste existem cinco séculos. Se a percepção de Eduardo Lourenço estiver certa, foram precisos 500 anos para dar um carácter de sanidade a um estilo. Ou, numa visão mais arrojada e provocadora, os alienados do século XV são os lúcidos do século XX: ambos pintam o que conseguem, não forçosamente o que querem.
JdB
10 maio 2020
5º Domingo da Páscoa
EVANGELHO - Jo 14,1-12
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Não se perturbe o vosso coração.
Se acreditais em Deus, acreditai também em Mim.
Em casa de meu Pai há muitas moradas;
se assim não fosse, Eu vo lo teria dito.
Vou preparar vos um lugar
e virei novamente para vos levar comigo,
para que, onde Eu estou, estejais vós também.
Para onde Eu vou, conheceis o caminho».
Disse Lhe Tomé:
«Senhor, não sabemos para onde vais:
como podemos conhecer o caminho?»
Respondeu lhe Jesus:
«Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
Ninguém vai ao Pai senão por Mim.
Se Me conhecêsseis, conheceríeis também o meu Pai.
Mas desde agora já O conheceis e já O vistes».
Disse Lhe Filipe:
«Senhor, mostra nos o Pai e isto nos basta».
Respondeu lhe Jesus:
«Há tanto tempo que estou convosco
e não Me conheces, Filipe?
Quem Me vê, vê o Pai.
Como podes tu dizer: 'Mostra nos o Pai'?
Não acreditas que Eu estou no Pai e o Pai está em Mim?
As palavras que Eu vos digo, não as digo por Mim próprio;
mas é o Pai, permanecendo em Mim, que faz as obras.
Acreditai Me: Eu estou no Pai e o Pai está em Mim;
acreditai ao menos pelas minhas obras.
Em verdade, em verdade vos digo:
quem acredita em Mim fará também as obras que Eu faço
e fará ainda maiores que estas,
porque Eu vou para o Pai».
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Não se perturbe o vosso coração.
Se acreditais em Deus, acreditai também em Mim.
Em casa de meu Pai há muitas moradas;
se assim não fosse, Eu vo lo teria dito.
Vou preparar vos um lugar
e virei novamente para vos levar comigo,
para que, onde Eu estou, estejais vós também.
Para onde Eu vou, conheceis o caminho».
Disse Lhe Tomé:
«Senhor, não sabemos para onde vais:
como podemos conhecer o caminho?»
Respondeu lhe Jesus:
«Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
Ninguém vai ao Pai senão por Mim.
Se Me conhecêsseis, conheceríeis também o meu Pai.
Mas desde agora já O conheceis e já O vistes».
Disse Lhe Filipe:
«Senhor, mostra nos o Pai e isto nos basta».
Respondeu lhe Jesus:
«Há tanto tempo que estou convosco
e não Me conheces, Filipe?
Quem Me vê, vê o Pai.
Como podes tu dizer: 'Mostra nos o Pai'?
Não acreditas que Eu estou no Pai e o Pai está em Mim?
As palavras que Eu vos digo, não as digo por Mim próprio;
mas é o Pai, permanecendo em Mim, que faz as obras.
Acreditai Me: Eu estou no Pai e o Pai está em Mim;
acreditai ao menos pelas minhas obras.
Em verdade, em verdade vos digo:
quem acredita em Mim fará também as obras que Eu faço
e fará ainda maiores que estas,
porque Eu vou para o Pai».
08 maio 2020
Poemas dos dias que correm
Antes do Nome
Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,
o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
Adélia Prado, in 'Bagagem'
***
Os Lugares-Comuns
Quando o homem que ia casar comigo
chegou a primeira vez na minha casa,
eu estava saindo do banheiro, devastada
de angelismo e carência. Mesmo assim,
ele me olhou com olhos admirados
e segurou minha mão mais que
um tempo normal a pessoas
acabando de se conhecer.
Nunca mencionei o facto.
Até hoje me ama com amor
de vagarezas, súbitos chegares.
Quando eu sei que ele vem,
eu fecho a porta para a grata surpresa.
Vou abri-la como o fazem as noivas
e as amantes. Seu nome é:
Salvador do meu corpo.
Adélia Prado, in 'Bagagem'
Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,
o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
Adélia Prado, in 'Bagagem'
***
Os Lugares-Comuns
Quando o homem que ia casar comigo
chegou a primeira vez na minha casa,
eu estava saindo do banheiro, devastada
de angelismo e carência. Mesmo assim,
ele me olhou com olhos admirados
e segurou minha mão mais que
um tempo normal a pessoas
acabando de se conhecer.
Nunca mencionei o facto.
Até hoje me ama com amor
de vagarezas, súbitos chegares.
Quando eu sei que ele vem,
eu fecho a porta para a grata surpresa.
Vou abri-la como o fazem as noivas
e as amantes. Seu nome é:
Salvador do meu corpo.
Adélia Prado, in 'Bagagem'
07 maio 2020
06 maio 2020
Vai um gin do Peter’s ?
DIÁLOGO INSÓLITO COM O SANTO DO HUMOR – PIPPO O BOM
S.Felipe Néri (1515-1595) é conhecido por ser o Santo da Alegria mas, como bem observava a actriz Maria Rueff, especialmente devota daquele inspirador da boa comédia, deveria ser antes reconhecido por uma boa disposição a extravasar de humor e audácia, sempre com lealdade. Nem o Papa foi poupado à sua ironia benigna e lúcida, para se perceber até que ponto ultrapassou a alegria comum nos santos. É, compreensivelmente, o padroeiro dos comediantes e também dos educadores, porque ensinou catequese pelas ruas de Roma, no tempo dos cismas protestantes, indignados (e não só) com a falta de fé generalizada, corrupção e frivolidade que grassavam na Cidade Eterna. Século de contraste é o menos que se pode dizer daquela época conturbada.
Néri dava-se com gente de todas as origens e idades, que o chamavam de Pippo o Bom. Também acolhia animais abandonados, entre gatos, pássaros e um cão malhado a que chamou de «Capriccio» (qual pizza!). Nunca os tinha presos, nem mesmo aos pássaros que, de dia, voavam pelos céus de Itália. Espantoso era voltarem todas as noites ao quarto de Felipe, para os alimentar e lhes dar guarida.
Das suas frases incisivas, que o tornaram famoso, estão: «A batalha contra o mal (pecado) é a única batalha na qual vence aquele que foge»; É melhor pensarem que sou louco do que santo. É mais divertido e menos comprometedor (citado por aproximação); «Longe de mim o pecado e a tristeza»; «Prefiro o paraíso»; rezava «Deixem-me terminar hoje, e não terei medo amanhã».
Entre os seus múltiplos talentos, conta-se que confessava especialmente bem, até porque conseguia ler a mente dos penitentes e ser, em simultâneo, muito paciente e divertido a incitá-los a melhorarem. Até nas penitências jogava uma cartada de surpresa e originalidade. A uma mulher viciada em intrigas e insinuações, disse-lhe para espalhar por toda a cidade as penas de uma galinha já morta, antes de a cozinhar. Entusiasmada com a bizarria, a mulher cumpriu a tarefa num ápice e voltou a Felipe, que lhe deu nova incumbência: agora vem o principal -- vais recolher cada uma das penas e trazer-mas todas aqui. A mulher, sem perceber o sentido daquilo, explicou-lhe que já não seria possível, porque tinham sido levadas pelo vento. Então o santo mostrou-lhe que equivalia ao efeito devastador da sua maledicência, cujos danos também não poderiam ser revertidos, deixando pelo caminho vidas irremediavelmente estragadas. Parece que a senhora ficou impressionada com a imagem e largou o péssimo vício.
De outra vez, um médico veio ter com ele deprimido e acabrunhado com preocupações. Felipe fez logo tantas palhaçadas, que pôs o médico a rir, quebrando a onda negativa que submergira aquele infeliz.
Também previa o futuro, tendo antecipado a data da sua morte. Porém, nem tudo na sua vida foram facilidades e paródia. Ficou órfão em tenra idade e sofreu perseguições dentro da própria Igreja, pois as suas excentricidades escandalizavam uns quantos. Alguns biógrafos referem também invejas, por causa da sua enorme popularidade junto da população romana, com amigos em todos os quadrantes. A ponto de merecer diminutivo e cognome ao jeito dos monarcas – Pippo o Bom. O que nunca lhe faltou foi a boa disposição e as picardias bem humoradas! Até os seus acusadores concordavam nisso, muitos aliás para o apoucarem. Só que Felipe não desarmava: Quer dizer que, se chegarem alegres à porta do Paraíso, não os deixam entrar?
Um dos seus diálogos mais insólitos tem a ver com mais um dos seus dons – o da cura – e foi travado com o filho do seu amigo o príncipe Fabrizio Massimo, numa hora dramática. Está muito bem narrado num artigo que o autor, gentilmente, me autorizou a citar, com a vantagem de encontrar na mensagem de Néri afinidades com esta Primavera de 2020, um tanto inquinada por uma pandemia:
«A estranha pergunta
Ao reler por estes dias uma biografia de S. Filipe Neri («Filipe Neri, o Sorriso de Deus», de Guilherme Sanches Ximenes, Ed. Quadrante), reparei na quase coincidência de datas de um estranho episódio, ocorrido há aproximadamente 5 séculos num dia 16 de Março.
O protagonista viveu os anos duros da Renascença, que dilaceraram a cristandade com as revoltas protestantes (de Lutero, de Zwinglio, de Calvino, de Henrique VIII, de Melanchthon) e fustigaram a Europa com guerras generalizadas, incluindo violências contra a cidade de Roma por parte de imperadores ditos católicos. Estes tempos difíceis foram também uma época de grandes santos, que sacudiram a tibieza e a corrupção da sociedade com propostas exigentes de renovação espiritual. Conviveram com S. Filipe Neri muitas figuras deste calibre, como Santo Inácio de Loyola, S. Pio V, S. Carlos Borromeo e são contemporâneos dele Santa Teresa de Ávila, S. João da Cruz e S. Pedro de Alcântara. Mas Filipe não foi herege nem reformador austero, foi um santo brincalhão, desconcertante, ao mesmo tempo que um grande santo.
Era um homem de profunda oração, mas até nisso não perdeu o humor, por vezes atrevido com o próprio Deus. Até nos milagres, S. Filipe Neri foi original.
O episódio que me chamou a atenção começou de forma dramática quando a Sra. Lavinia, mulher de Fabrizio Massimo, amigo de S. Filipe, estava para dar novamente à luz. O casal já tinha cinco filhas, mas o sexto parto ia muito mal encaminhado. Fabrizio recorreu a S. Filipe e este, depois de rezar, tranquilizou-o com toda a segurança: tudo ia correr bem, iam ter um rapaz saudável e deveriam dar-lhe o nome de Paolo. Realmente, tudo aconteceu como previsto.
Catorze anos depois, já a mãe do rapaz tinha morrido e também uma das irmãs, Paolo adoece gravemente. A doença arrasta-se por vários meses e Filipe visita-o todos os dias. Finalmente, o jovem entra em agonia. Filipe foi chamado à pressa mas, como estava a celebrar a Missa, demorou algum tempo e só chegou quando o rapaz já tinha morrido.
A cena é fácil de imaginar: o cadáver inerte sobre a cama, rodeado pelo pai, as irmãs e os vizinhos, a chorar e a prepararem o enterro.
Filipe ajoelhou-se perto da cama em oração. Rigoroso silêncio. A seguir, pegou num frasco de água benta, aspergiu o corpo e chamou com força: «Paolo! Paolo!». Paolo abriu os olhos e disse «Padre». Filipe e Paolo ficaram a conversar um quarto de hora, como se nada fosse, rodeados pelos circunstantes, boquiabertos. A certa altura, Filipe pergunta a Paolo se queria continuar vivo ou se preferia ir para junto da mãe e da irmã, no Céu. Paolo escolheu a segunda alternativa. No processo de canonização, o próprio pai testemunhou o acontecido: «Então, Filipe, na minha presença, deu-lhe a bênção e, impondo-lhe a mão sobre a fronte, disse-lhe –e eu o ouvi–: “Vai, sê abençoado e reza a Deus por mim”. E tendo Filipe dito estas palavras, Paolo, com o semblante sereno, sem fazer nenhum gesto, nas mãos desse bem-aventurado sacerdote, na minha presença..., voltou subitamente a morrer».
No castelo da família Massimo celebra-se todos os anos, no dia 16 de Março, data do milagre, uma Missa em recordação deste episódio.
Nestes dias, em que talvez morram conhecidos nossos vítimas do coronavírus, nestes dias que abalam o nosso sonho de vir a celebrar 100 anos, em que o espectro da morte nos espreita do lado de lá da porta da casa, Deus pergunta-nos o que preferimos. Um grande amigo meu respondeu-Lhe: «Senhor, deixo a minha vida nas tuas mãos. Sei que escolhereis o que for melhor para mim».
José Maria C.S. André
(5-IV-2020)
Fazendo jus a S.Felipe Néri, segue um sketch com uma das suas seguidoras mais fiéis da actualidade – Maria Rueff – num directo a partir do céu, gravado num pacato serão de Sábado de 2011, em que calhou juntar-se a dupla mais improvável: a Amy Winehouse e a Beatriz Costa… Daqueles acasos que só acontecem para lá das nuvens:
Ainda outro diálogo insólito e maravilhoso é protagonizado por uma irlandesa de 9 anos, hiper convicta no pedido e na argumentação, pondo à gargalhada os adultos no outro lado da linha. Nem conseguem disfarçar, limitando-se a distribuir auscultadores pelo maior número de colegas da empresa:
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
05 maio 2020
Do sexo e de tudo o resto
Vejo um episódio de uma série inglesa que acompanho erraticamente. A mulher, uma advogada casada, diz a um colega com quem se percebe que teve um caso - ou com quem está sempre na iminência de ter um caso: o sexo contigo era melhor; e eu disse-lhe isso [ao marido]. Percebe-se (porque não vi o episódio anterior) que entre o casal houve uma discussão, e que ele sai de casa.
Advogada e presumível (ou potencial) amante encontram-se numa festa. Ela diz-lhe: o sexo contigo era melhor. Mas tudo o resto era melhor com ele [o marido]. Na última cena do episódio o casal participa a separação aos filhos.
Diz-se que aquilo que leva um homem ao desespero por saber que a mulher teve um caso não é o sentimento de traição, mas o pavor da comparação. Percebe-se, por isso, que o marido enganado sinta que só tem uma saída, que é uma mala com uma muda de roupa e um hotel. Não só se sentiu brutalmente comparado, como ficou a perder. Percebe-se, pois, que ele tenha saído de casa depois de ter constatado a traição, para além de que, na competição com o amante da mulher, ficou em segundo lugar. E percebe-se também que o facto de ser melhor em tudo o resto não é suficiente para regressar a casa.
Todos conhecemos casos de pessoas que põem os seus cônjuges na rua depois de saberem de um caso extra-conjugal. O mundo está cheio disso. Porém, talvez não se conheçam tantos casos de pessoas que puseram os cônjuges na rua depois de saberem de corrupções, tráficos de influências, aldrabices nos negócios ou faltas de ética nas relações profissionais. Nem sei se os casamentos suspensos por motivo de prisão de um dos cônjuges se retoma com a liberdade da pessoa em questão.
Esta duplicidade de valores sempre me fez confusão, mas talvez tudo isto se deva a uma importância demasiadamente negativa que se dá ao corpo, ao sexo, ao prazer. A infidelidade pode não ser (como também pode ser) uma falha de carácter, mas uma fraqueza, tantas vezes momentânea ou localizada num espaço de tempo. Há sempre desrespeito pelo outro, mas poderá haver atenuantes. Ora, um aldrabão (no masculino ou no feminino) que persiste é um aldrabão por natureza - e isso é uma falha de carácter. Conhecemos affaires pontuais, não conhecemos cheques carecas pontuais. Aparentemente, a honestidade nos negócios é menos importante do que os prazeres da carne na manutenção de uma relação.
Na longa lista de que se reveste uma relação conjugal, há sexo e há tudo o resto. Para o homem que deixou a aliança e as chaves em casa e saiu com uma muda de roupa para um hotel, o primeiro tem um peso superior ao do segundo. Sexo vale mais que tudo o resto. Isto quer dizer alguma coisa.
JdB
04 maio 2020
Duas Últimas
Este comboio espanhol faz mais do que uma simples viagem entre Guadalquivir e a Velha Sevilha. Lá dentro, disputando as almas, duas forças em combate – o Bem e o Mal; a vida e o vírus, a doença e a saúde. And far away in some recess / The Lord and the Devil are now playing chess / The Devil still cheats and wins more souls / And as for the Lord, well, he's just doing his best. Deus ganha sempre, mas ainda não é hoje…
JdB
JdB
03 maio 2020
4º Domingo da Páscoa
EVANGELHO - Jo 10,1-10
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo, disse Jesus:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Aquele que não entra no aprisco das ovelhas pela porta,
mas entra por outro lado,
é ladrão e salteador.
Mas aquele que entra pela porta é o pastor das ovelhas.
0 porteiro abre lhe a porta e as ovelhas conhecem a sua voz.
Ele chama cada uma delas pelo seu nome e leva as para fora.
Depois de ter feito sair todas as que lhe pertencem,
caminha à sua frente
e as ovelhas seguem no, porque conhecem a sua voz.
Se for um estranho, não o seguem, mas fogem dele,
porque não conhecem a voz dos estranhos».
Jesus apresentou lhes esta comparação,
mas eles não compreenderam o que queria dizer.
Jesus continuo: «Em verdade, em verdade vos digo:
Eu sou a porta das ovelhas.
Aqueles que vieram antes de Mim são ladrões e salteadores,
mas as ovelhas não os escutaram.
Eu sou a porta.
Quem entrar por Mim será salvo:
é como a ovelha que entra e sai do aprisco e encontra pastagem.
O ladrão não vem senão para roubar, matar e destruir.
Eu vim para que as minhas ovelhas tenham vida
e a tenham em abundância».
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo, disse Jesus:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Aquele que não entra no aprisco das ovelhas pela porta,
mas entra por outro lado,
é ladrão e salteador.
Mas aquele que entra pela porta é o pastor das ovelhas.
0 porteiro abre lhe a porta e as ovelhas conhecem a sua voz.
Ele chama cada uma delas pelo seu nome e leva as para fora.
Depois de ter feito sair todas as que lhe pertencem,
caminha à sua frente
e as ovelhas seguem no, porque conhecem a sua voz.
Se for um estranho, não o seguem, mas fogem dele,
porque não conhecem a voz dos estranhos».
Jesus apresentou lhes esta comparação,
mas eles não compreenderam o que queria dizer.
Jesus continuo: «Em verdade, em verdade vos digo:
Eu sou a porta das ovelhas.
Aqueles que vieram antes de Mim são ladrões e salteadores,
mas as ovelhas não os escutaram.
Eu sou a porta.
Quem entrar por Mim será salvo:
é como a ovelha que entra e sai do aprisco e encontra pastagem.
O ladrão não vem senão para roubar, matar e destruir.
Eu vim para que as minhas ovelhas tenham vida
e a tenham em abundância».
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