Lembramo-nos da disposição com que entrámos nas cidades que conhecemos? Ir a Paris por alturas de Maio com o divórcio unilateral marcado para o início de Junho? Aterrar no Rio de Janeiro com uma conjuntivite que nos obriga a um semi-olhar? Ter uma semana inteira em Istambul e não poder adquirir nenhum bem local? Chegar a Veneza de avião e saber, à partida da Portela, que o grande canal está fechado para desintoxicação? Ganhar uma semana de férias em Benidorm - em simultâneo com as viagens de fim de curso - acompanhados da mulher da nossa vida e no momento da nossa vida? Um fim de semana em Badajoz, por alturas de Agosto, depois de nos ter sido anunciada a promoção aguardada desde o final dos anos 90? Tudo isto é uma caricatura, obviamente, mas adequa-se ao meu raciocínio: como olharíamos para estas e outras cidades afectados por um estado de espírito tão marcante? Estou certo que o belo e o horror se esbateriam, amortecidos, ambos, por um ânimo interior tão diverso mas tão forte.
Estou em Harare há 15 dias. A minha primeira impressão, como partilhei com os meus leitores, foi negativa. Globalmente feia, suja, com um ou outro pormenor bonito. A minha cabeça está formatada, seguramente, para a visão de uma cidade ocidental. O contraste não me foi favorável, confesso. E talvez tenha olhado para a capital do Zimbabué com os mesmos olhos que se admiraram com Berlim, Nova Iorque, Sevilha, o Cairo mesmo.
À medida que vou conhecendo ou reconhecendo os pormenores desta cidade vou-lhe vislumbrando sinais de algum encanto. As ruas largas e arborizadas, um renque bonito de jacarandás que florirão um dia,
Flor do jacarandá
Cai, leve no passeio
Céu d´outro mar sonhado
Chão de anilado estio
uma fiada de palmeiras que decora uma via, alguns edifícios relativamente modernos e interessantes, um pormenor de um hotel do início de século rodeado por uma parte urbana substancialmente mais limpa, um permanente bulício tão diferente daquele a que estou acostumado.
Num raciocínio um pouco simplista - e sem querer comparar o que quer que seja - imaginem que Harare é do tamanho de Lisboa, que o seu centro tem a dimensão da baixa pombalina e o resto (o que aqui se chamam os subúrbios) é completado por um restelo. É assim que vejo esta cidade.
Se conseguir retirar dos meus olhos o trompe l'oeil que me faz ver o ocidente a toda a hora e momento, os motivos de graça vão-se revelando. É imperioso, no entanto, fazer a agulha arquitectónica mental. Não existe a dimensão cultural da velha Europa, o modernismo tecnológico norte-americano, o exotismo do Oriente, a envolvente natural brasileira. Harare é uma cidade africana - tipicamente africana - e é com essa evidência que os nossos sentidos têm de percorrer a cidade. Se assim não for, talvez só lhe vejamos sujidade, decadência, as estradas largas que ligam as redondezas ao centro uma triste imagem de tráfego confuso.
Harare não é uma cidade francamente bonita. Mas é uma cidade que merece um segundo olhar.
5 comentários:
Bom dia, JB. Adorei a sua crónica de hoje pela forma como encerra. Sexta-feira fui tirar o meu BI de divorciada. Cheguei ao Areeiro e tirei a senha 489 quando me apercebi que tinham acabado de chamar pelo nr 360. Penso que nunca esperei tanto nem nunca tive tanta gente à minha frente para cumprir qualquer finalidade. Foi uma lição de humildade: sentar e esperar como os outros, sem apelo nem agravo. A princípio, toda aquela gente me pareceu tão medonha e indesejável como a minha espera. Depois, pouco a pouco, fui encetando conversa com os meus vizinhos, tão conformados como eu à sua sorte. Bom, para resumir: fiquei amiga de uma família cigana, com quem discuti de tudo: racismo, direitos humanos, liberdade, preguiça, you name it! Às tantas, todo o Arquivo se suspendeu naquele diálogo, julgando que acabava mal. O patriarca provocava-me: «Sabe, para estes tipos, a minha filha não é portuguesa, é uma cigana!» «E para si, o que é?», respondia-lhe eu. TAMBÉM NÃO É UMA CIGANA? Ou será que não se orgulha disso?» As coisas foram aquecendo, para nervosismo geral. Por fim, o homem já me dizia. «A senhora pode encontrar de tudo: mas não encontra um cigano que seja pedófilo ou faça mal a uma criança! Pense lá bem!» Não desarmei: «Apanho-o já!», disse-lhe eu.» Pedófilo não sei, dessas coisas a gente só tem notícia de uma parte ínfima do que acontece. Mas que fazem mal às crianças, fazem, tal como os outros!» «Como?», perguntava o cigano, incrédulo. E logo eu, tirando esta da cartola: «Não traficam droga? E esta não vai parar às escolas?» Bom, foi uma espera olímpica. Trouxe o número de telefone do cigano. Ficámos amigos para a vida. Era um bom homem, justo, e, sempre que o apanhava com a lógica, cedia. Lembrei-me de ontem lendo o teu texto de hoje. Harare é, pelos vistos, como a paisagem lúgubre de uma sala de espera de uma repartição oficial, ou de uma «assustadora» comunidade cigana: merece, sempre e em qualquer circunstância, um segundo olhar. Extenso
Bela crónica, JB. Acho que o erro de aferição é esse mesmo: a referência mental e estética que há sempre nos nossos olhos. Gosto de saber que o seu olhar se vai alargando cada vez mais...
Aqui nos Açores não é preciso qualquer esforço de vontade: é a natureza que domina tudo e é esplendorosa! Tudo o resto (incluindo nós) é absolutamente insignificante.
Beijos meus e das outras duas exiladas.
ouvi dizer que as exiladas se estamparam com o único carro que havia na ilha
sabias JB?
quanto á tua descrição de Harare não me consola muito ....
exilados ou não ... vocês fazem-me muita falta ...todos
bjs da
ex-futura
ritz_on_the_rocks
Caro Tio Joao,
Visto que ambos nos encontramos em paises, considerados, terceiro-mundistas, nao queria passar sem deixar aqui uma saudacao ( Benfiquista de preferncia). Tenho curiosidade de saber como e pagar um papo seco com uma nota de 4000000 de Dolares!
Entretanto, fica aqui o endereco do meu blog, que esta a relatar a experiencia indiana: nopaisdegandhi.blogspot.com.
Um abraco,
Donizete
Olá JB,
Esta "blog addition" (anónimo dixit) está galopante !
Que ternura que senti ao ler a troca de comentários entre Jodpur e Harare. O mundo virou "aldeia".
Beijos saudosos
Francisca
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