14 agosto 2008

Harare



Tinham-me dito que era uma cidade tipicamente africana, com o que as cidades tipicamente africanas têm de feio. Deste continente onde me encontro conheci Pretória e Joanesburgo (em 1981, pleno apartheid, e tenho poucas recordações) , uma cidade pequena em Marrocos de cujo nome não me lembro, e o Cairo, onde estive há cerca de ano e meio. Mas, entre a capital do Egipto e a capital do Zimbabué existe um Sahara e isso, em termos de caracterização africana, fará toda a diferença.
Vamos por partes, como diria Jack, o estripador:
Beleza: Harare não é, definitivamente (pelo menos na minha opinião) uma cidade globalmente bonita. Tem, como qualquer localidade no mundo, pormenores bonitos - um edifício, umas árvores, um enquadramento. Mas, ao deambular ontem pelo centro, não vislumbrei nada de extraordinário. E vi muita sujidade.
Arruamentos: da chancelaria (os escritórios da embaixada portuguesa) até ao centro da cidade são cerca de 15 - 20 minutos a pé. Grande parte do caminho é feito por avenidas largas, com a parte dedicada aos carros estreita q.b. e de qualidade média. Os passeios são grandes, cheios de jacarandás, num estado não muito bom, sendo metade da largura do passeio em terra batida.
Transeuntes: andei cerca de hora e meia deambulando pelo centro da capital. Não encontrei um único branco (dizem-me ser normal, pois estes não vão ao centro da cidade). As ruas estão apinhadas de gente: encostados a esquinas, a andar de um lado para o outro, enchendo estabelecimentos tipo Kentucky Fried Chicken. A população não é, na generalidade bonita, embora tenha encontrado mulheres elegantes, de feições correctas e agradáveis. Há um pormenor curioso: os apertos de mão são moles (percebe-se à distância) e as pessoas prolongam o cumprimento agitando a mão uma na outra quase como se fossem namorados. É um hábito.
Segurança: comportei-me como um turista típico: mapa na mão, máquina fotográfica em punho, a parar aqui e ali para apanhar um ângulo, observar uma loja. Nem sempre me senti seguro, e, por vezes, para consultar a planta da cidade, encostei-me a uma parede, protegendo conscientemente (e se calhar ridiculamente) a rectaguarda. Mas nunca - digo mesmo nunca - me senti verdadeiramente ameaçado. Algumas pessoas olhavam para mim - o contraste era evidente - outras ignoravam-me completamente. Não me ofereceram dinheiro a câmbios milagrosos, não me pediram nada - com excepção de um miúdo que pedia esmola a torto e a direito.
Comércio: as lojas são, na generalidade, confrangedoras. Não têm preços, devido ao ritmo cambial frenético, têm poucos artigos. A evidência mais chocante foi uma sapataria, chamada World of Shoes, que tinha redes metálicas a proteger montras amplas completamente vazias. À porta, um empregado observava o movimento do quotidiano, queixando-se, seguramente, que o negócio está fraco. Vi lojas de ferragens de vitrines decoradas com meia dúzia de alicates ou martelos que, num estabelecimento de outro país mais rico, estariam a monte num caixote de madeira. As lojas de brinquedos evidenciam artigos para crianças que em Portugal se dariam aos pobres.
Parque automóvel: quem me conhece sabe que não sou muito de ligar a automóveis: tenho dificuldade em distinguir marcas, a menção a modelos (gente que se refere ao seu carro como sendo um 3.si, ou xktl turbo) recorda-me a engenharia espacial. Não serei por isso, o informador privilegiado desta vertente de Harare. Noutros pontos da cidade vêem-se alguns bons Mercedes que são viaturas diplomáticas ou de gente do partido. Há, aqui e ali, bons jeeps, uma profusão de veículos do tipo Toyota Carina (dá para perceber?) e, acima de tudo, carrinhas de caixa aberta, onde se acomoda, como sardinhas em lata, uma quantidade imensa de gente local. As fotografias que circulam na internet podem ter sido tiradas aqui.
Nota final: sou, estatisticamente, um viajante europeu - ou pelo menos ocidental. Estes dez dias em Harare abriram-me os olhos para uma realidade que eu sabia existir mas que não conhecia de perto. Vivo num mundo diferente, decididamente, daquele a que estou habituado. Não gostaria, de forma alguma, que as descrições que aqui faço - e continuarei a fazer no futuro - fossem lidas como uma manifestação de racismo ou desprezo pelo país. Apercebo-me da crise, da instabilidade, das características próprias de um país africano que tem da democracia, das leis do mercado, da cultura, uma visão diferente da nossa. Parece-me importante esta nota final, para poder ter a liberdade de escrever, sem sentir o melindre em quem me lê.

5 comentários:

Anónimo disse...

Cautela com esses passeios pedestres que em nada se parecem com os nossos!
Gosto de ler as suas descrições . Pena não as poder mandar com cheiro...
Até já,

JdB disse...

Por aquilo que "cheirei" ontem, não valeria a pena mandar cheiros. Quando for para o mato, então sim... Até já

ana v. disse...

Quando for para o mato aproveite para espreitar a nova relva que nasce sempre depois das queimadas...

E cuidado com as feras!
;)

JdB disse...

Ana V.: aqui vai a letra de um música a propósito:

Why do you whisper, green grass
Why tell the trees what ain't so?
Whispering grass
The trees don't have to know
Why tell them all your secrets
Who kissed there long ago?
Whispering grass
The trees don't need to know

Quanto às feras, a quais se refere, especificamente?

ana v. disse...

Ok, the trees will never know.

Quanto às feras? Sei lá... as que lhe sairem ao caminho!

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