17 agosto 2008

Tengenenge



Fomos ontem a Tengenenge, uma cooperativa com mais de 200 escultores locais que produzem o que de melhor se faz na arte shona. O local situa-se entre Mvurwi e Guruve, a cerca de 150km a norte de Harare, em plena Mashonaland. A 200km, zambianos, zimbabueanos e moçambicanos estão à distância de um aperto de mão, estando todos em casa.
O caminho até lá faz-se por uma estrada secundária (portuguesmente falando) em relativo mau estado e com algum trânsito de carros ligeiros (as tais carrinhas de caixa aberta cheias de gente local), camionetas de passageiros (que seriam já obsoletas quando os aliados pisaram as praias da Normandia) e um ou outro pesado de mercadorias.
No espaço de 50 a 60km passámos por quatro ou cinco operações stop, algumas tão rudimentares que as barreiras na estrada eram compostas por bidões amolgados com um pau atravessante. Numa prova de província, seria mais um obstáculo numa barrage de cavaleiros amadores. Considerando que íamos em carro de matrícula diplomática nunca nos incomodaram, e apenas uma vez pediram os documentos.
Ao longo da estrada, dezenas, se não centenas de pessoas, apinham-se num pedido de boleia, numa venda de meias dúzias de laranja, de duas ou três couves, algumas delas carregados com malas, sacos, como se partissem de férias para uma estância de eleição. Não sei quanto tempo ali permanecerão, mas admito que possam ficar horas infindas. Talvez regressem ao ponto desmoralizador de partida, para uma nova tentativa no dia seguinte. Ou no seguinte…
A vegetação que nos acompanhou nesta centena e meia de quilómetros é variada. Capim alto à beira da estrada, árvores verdes e altas (ao longe pinheiros ou ciprestes), zonas com um cultivo ordenado e limpo, alguns pomares de laranjeiras, montanhas na linha do horizonte, mas, sobretudo, terra a perder de vista. Quem conhece África não precisa da minha descrição para saber do que falo. Quem não conhece, não será com a pobreza das minhas palavras que lá irá. Se me perguntarem o que me impressionou mais na geografia direi sem sombra de dúvida:
O espaço e a cor
O espaço e a cor
O espaço e a cor
Repito três vezes, porque não me canso de o afirmar - nem me canso de o lembrar.
A orientação por mapa é difícil, nalguns pontos quase impossível. Vale-nos a amabilidade da gente local, sempre disponível para fornecer uma indicação. Não há sinais na estrada, roubados, muitas vezes, para fazer uma fogueira ou aproveitar a chapa metálica.
Chegar a Tengenenge é chegar, talvez, a um misto de cidade fantasma (depreendi, pelas palavras, do “guia” que seríamos as segundas visitas este mês) e cemitério de esculturas. De facto, ao longo de 2 hectares, talvez, de terreno, existem centenas de estatuetas de todos os tamanhos e feitios, esculpidas, maioritariamente, em springstone (ainda não consegui descobrir o que é).
Comprei uma escultura que representa uma mulher zimbabueana, com cerca de 40cm de altura. Negociei o preço: em dólares americanos custar-me-ia 60; quando perguntei o preço em dólares do Zimbabwe, o sistema cambial é tão frenético e incompreensível, que a peça de arte me custou o equivalente a 30, cerca de 22€. Um dos mais afamados escultores do género, chamado Dominic Benhura, vende peças de arte deste género, nos mercados europeus, por 50 vezes mais.
Talvez tenha sido a minha primeira incursão à África profunda, tão pouco recordado do trajecto que fiz entre Pretória, na África do Sul, e Sun City, no então Bophutatswana.
Considerando todas as diferenças no tempo, no clima, na civilização, no povo, na geografia, percebo bem o fascínio e o desaire de quem começou um livro revelando: I had a farm in Africa...
Adeus, até ao meu regresso

4 comentários:

Anónimo disse...

Tchhh, JB, ainda ontem um cristão fervoroso, já hoje a comprar negras anãs de 40 cm por 22 dólares por motivos lúdicos. África dá, de facto, volta à cabeça das pessoas! Fiquei a pensar se, «repetindo três vezes» a frase «espaço e cor», não a deverias ter escrito seis vezes. Mas é uma questão muito densa para esta hora e ainda por cima a um Domingo! Ontem, na festa do Fernando Raposo de Magalhães, dancei desvairadamente com dois gémeos de uma geração mais velha. São conhecidos pelos manos Pyrrait - sabes quem são? Com um deles, falei sobre a vida depois dos 60 - um mote interessante para aferirmos os dois, que ainda estamos longe de lá chegar. Dizia ele que a diferença entre os que já lá chegaram e os que ainda não chegaram via-se na forma como uma criança e um adulto contavam até sessenta. Na difereça de ritmos. E que depois dos sessenta - era isso que mais lhe doía - o que estava feito esta feito e não tinha emenda. Acreditas nisto? Extenso

JdB disse...

A escultura não é só anã - é uma anão primordial o que, como sabes, faz toda a diferença.
Estou longe de saber como é a vida depois dos sessenta. Preocupa-me como é a vida depois de Outubro...
Alguém que conhecemos ambos tem escrito no seu espaço cibernáetico que a vida se escreve sem borracha. O que está feito está feito, embora haja muitas formas - e boas - de compensar os erros.

Anónimo disse...

Começou a aquecer! Esta sua descrição já cheira a África. Muito boa! Fico na expectativa de outras fascinantes incursões. Gosto mesmo de ler três vezes “Espaço e cor”, assim sei que você já descobriu África, para mim é também uma quente imensidão.
(Não admira que nos JO os Africanos se demarquem nas corridas)
Você não tem aí uma “farm” mas está numa residência inesquecível, ainda vai escrever um livro sobre ela... Espero bem.
Beijinhos fãs

JdB disse...

Bom dia Miss Netoj. É bom lê-la, depois de ter ido a banhos. Pois é, já "cheira" a África. Logo que se resolvam alguns pormenores burocráticos rumamos a sul, onde a paisagem, dizem-me, é anida mais africana.
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