Creio que vários elementos positivos convergem nesta narrativa, justificando tamanha popularidade, muito para lá da excelente reposição da época ou do glamour da vida de corte, bem pouco filmada. Aliás, o espaço mais visto até é a clínica de um talentoso terapeuta da fala, improvisada numa subcave obscura de Londres. O próprio elevador acatitado dá nota da falta de sofisticação do prédio e do bairro modesto onde Sua Alteza Real iria passar boas temporadas. E aí arranca a história no sentido de que um novo horizonte, inimaginável mas possível (aliás, verídico), se franqueou generosamente a quem tanto precisava de apoio de vária ordem.
Um passo atrás para se desbravar melhor a arquitectura de um argumento: claro que a narrativa começa pela exposição do problema – uma disfunção clamorosa para um príncipe, votado a um futuro quase de clausura social para se proteger dos olhares (e ouvidos) do mundo. Pobre menino rico!
O príncipe
Esgotadas as buscas incessantes (e algo humilhantes) de ajuda nos consultórios dos especialistas conceituados, acabaram por ceder às solução de recurso, nada ortodoxa e com o desconforto do vão-de-escada, neste caso do bas-fond, em sentido estrito. Aí, the sky was the limit… e aquilo que parecia condenado ao fracasso converteu-se em trunfo. Como foi possível de um homem tão amachucado e algo diminuído emergir um soberano corajosíssimo, irredutível e até com um dom de comunicação muito frontal e genuíno? Um dom talhado no combate esforçado para suprir a sua fragilidade endémica, domada com suor e lágrimas, bem perto da fórmula de Churchill a convocar a nação para as armas, salvaguardadas as devidas proporções. Ninguém melhor que o príncipe lutador para enfrentar a onda nazi, que ensombrava a Europa, ameaçando devastá-la de um trago. Revelar-se-ia a pessoa certa na hora e no sítio certos. Uma história providencial até ao mais ínfimo detalhe.
Na óptica da narrativa cinematográfica, o desafio assumido perante o espectador foi assim expresso: «Simply fill(ing) you with joy» (sic). Nesse sentido, escolheu-se o melhor happy-end: a confirmação da possibilidade de superação do ser humano. Fruto de um processo árduo mas tanto mais credível e sólido quanto tenha sido sustentado pelo maior poder transformador da humanidade – o amor gratuito, a amizade profunda. Daí que boa parte do filme acompanhe as sessões terapêuticas, onde a amizade entre o difícil doente e o talentoso ortofonista se revelou um fármaco prodigioso. De certo modo, o milagre começara a rolar logo na primeira consulta, bem atribulada, quando Sua Alteza passou a ser reconhecida pelo diminutivo exclusivo da família – Bertie (simplificação carinhosa de Albert), sem quaisquer formalidades, nem outras barreiras que se adivinhavam vir a ser derrubadas com a eficiência da Luftwaffe. «My castle, my rules», exigia Lionel George Logue (1880-1953) no perímetro do seu consultório. Todos os ingredientes da relação de amizade foram emergindo, conquistados a pulso pela perseverança incrivelmente audaciosa de Logue. Coube, depois, ao príncipe a audácia de desafiar o protocolo e exigir a presença do seu salvador na cerimónia da coroação, na própria tribuna real.
O eficiente terapeuta / o alterego no filme
Até na ortofonia os Duques de York eram cúmplices
Os momentos cruciais dos avanços terapêuticos de Bertie são enfatizados por peças musicais que condizem com o estatuto do doente e com a cultura de Logue, um shakespeareano inveterado. Nas palavras do responsável pela banda sonora – compositor de uma peça original para a película – «Este é um filme sobre o som da voz. A música deve lidar com isso. A música tem de lidar com o silêncio. Tem de lidar com o tempo.» Na consulta inicial somos embalados pela Abertura das Bodas de Fígaro, de Mozart, enquanto decorre a gravação de uma voz fluente em que o príncipe (mais tarde) dificilmente se reconheceria. No discurso a anunciar o estado de guerra ressoa o fundo majestoso da VII de Beethoven (Allegretto), considerada por Wagner, Schumann e tantos outros a «celebração da vida», a «Sinfonia de Festa». Acresce ainda que a VII (de 1813) carrega o peso e o privilégio de ter comemorado um triunfo mais antigo, sobre o maior estratega militar de todos os tempos – Napoleão Bonaparte. Sob a batuta de Beethoven, foi executada durante o Congresso de Viena (Dez.1814) para as Casas reinantes da Europa, reunidas na capital do Império Austro-Húngaro:
Curiosamente, esquivaram-se à escolha previsível da V Sinfonia, cujas célebres notas inaugurais abriam as emissões da BBC dirigidas à Resistência. Aliás, o «V» tornou-se rapidamente o gesto de vitória reivindicada, desde a primeira hora, pelos adeptos da causa aliada.
Curiosa também a escolha da sonoridade radiosa do «Imperador» de Beethoven, a assinalar o êxito pouco óbvio do discurso real, que nos envolve na alegria festiva e cheia de afectividade que Jorge VI tanto apreciava, nada dado ao rodopio social em que o seu irmão mais velho era viciado.
Abbado e Barenboim numa dupla fantástica a executar
o «Imperador» de Beethoven – Concerto para Piano nº 5, Op. 73.
A relação de cumplicidade em crescendo, ao ritmo empolgante das melhoras do soberano, fazem-nos ter pena de que o filme acabe, até porque em Setembro de 1939 a Grã-Bretanha lançava-se num empreendimento heróico, que apetecia rever no ecrã. Reza a história que na luta anti-nazi os reis assumiram a sua parte, ao lado do povo, consolando os doentes, animando as tropas, visitando os desalojados nos escombros, recusando-se a deixar Londres, sem medo dos bombardeamentos nem dos black-outs diários. Percebe-se que Hitler tenha declarado a rainha inglesa como a mulher mais perigosa da Europa, incapaz de vergar. Um elogio rasgado, vindo de onde vinha!
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA
Título original: THE KING’S SPEECH
Titulo traduzido em Portugal: O DISCURSO DO REI
Realização: Tom Hooper
Argumento: David Seidler.
Produção: Iain Canning, Emile Sherman, Gareth Unwin
Elenco
Colin Firth (Bertie)
Geoffrey Rush (Logue)
Helena Bonham Carter (Elisabeth)
Música original de: Alexandre Desplat
Estúdios See Saw Films Bedlam Productions
Duração: 111 min.
País: Reino Unido
Site official - http://kingsspeech.com/
Prémios: galadoardo com Globos de Ouro e nomeado para 12 Óscares.