Era atleta especializada nos 20km marcha, fascinada pelo gingar do corpo, pela regra obrigatória de um pé sempre assente no chão, pelo olhar - que alguns diriam quase esgazeado - com que se vislumbrava a meta. Herdara do pai, militar na Legião Francesa, o gosto pela disciplina, pelo espírito de sacrifício, por aquelas três palavras - Legio Patria Nostra - que o comoviam como mais nada.
Um dia, ao 18º quilómetro, num ritmo seguro e de campeã, assentou mal o pé e deu um grito de dor, provocado por um ligamento que se estirava numa rotura sem retorno e por uma alma premonitória que lhe anunciava o fim da carreira. Tudo se consumou ao quarto dia, quando lhe disseram que podia guardar o equipamento, se isso não a corroesse de saudades. Falaram-lhe também de um possível coxear em permanência, resultado da gravidade da situação e da ausência de tratamentos modernos.
Foi então que conheceu um português, fisioterapeuta, com um coração de ouro e umas mãos de escolhido e que, numa persistência que envergonharia qualquer atleta de alta competição, lhe recuperou o pé, eliminou o coxear, ensinou a virtude do toque em zonas para lá do tornozelo.
Cruzei-me com ela hoje no paredão, como já me tinha cruzado ontem, há dois dias, na semana passada, no mês de Junho. Posso garantir que o ritmo está cada vez melhor, o terço que percorre com as mãos agita-se mais, o mexer dos lábios vai num frenesim crescente. Apostaria que as suas orações acabam ao quilómetro treze, quando na 2ª feira acabariam ao oito - sinal de que a velocidade se aproxima do que é possível, considerando a entorse de há 35 anos.
Quando chega a casa encontra o fisioterapeuta a esfregar as mãos - não só de contentamento, mas para as aquecer, porque ela se queixa que um percorrer frio lhe arruina o erotismo.
É a filha do tenente francês, porque aposto que a vida dela é esta. Se eu me cruzo com ela todos os dias, não havia eu de saber?
JdB
JdB
Nota: texto publicado neste espaço há três anos mas ainda válido, porque continuo a cruzar-me com ela...
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