18 julho 2011

Vai um gin do Peter’s ?

É discutível se entra na categoria de cinema puro uma narrativa onde a imagem não esgota o que o filme pretende mostrar, assemelhando-se a um aperitivo do universo invocado pela voz-off, que verbaliza o pensamento do protagonista. O implícito sobrepor-se ao explícito foi a opção pouco convencial de Terrence Malick, consolidando o estilo malickiano.

Licenciado em filosofia, tradutor de Heiddeger, tendo deixado o doutoramento incompleto, em Oxford, por desentendimento com o orientador da tese, Malick exibe um currículo nada hollywoodiano, realizando filmes a um ritmo anti-comercial, com intervalos de 10 a 15 anos! Todos estes desvios ao padrão podem ajudar a enquadrar «A ÁRVORE DA VIDA»(1), que  cruza a biografia de um ser humano com a evolução do planeta.

Convoca-se nada menos do que a história da criação para enriquecer e propor uma leitura mais ampla da história da humanidade, ali representada por um cidadão da América profunda (Texas), nascido nos pacatos anos 50, numa família trivial da pequena burguesia. Uma explosão de banalidade que, sob o pano de fundo dos grandes ciclos de progressão do planeta, se eleva a uma sacralidade única. Porque recuando para o momento zero do planeta, ninguém duvida da importância de cada passo até à habitabilidade da terra. A partir daí, tendemos a banalizar a criação, valorizando-a apenas ao sabor dos subjectivismos. Assim, a introdução da escala cósmica rasga uma nova dimensão (agigantada) na pequena vida de um yuppie, sem outras referências para lá das memórias de infância.


Ao percorrer o passado, o yuppie acaba por afinar o olhar sobre o mundo e sobre a forma de interpretar o que viveu. De certo modo, a história do universo modifica-se ligeiramente nele e com ele, como se a mudança operada no seu interior se repercutisse no pulsar do cosmos! Malick arrisca justapor o infinitamente grande ao infinitamente pequeno, o maximamente insignificante ao aparentemente crucial, que é uma associação q.b. espontânea num crente. Talvez até seja das diferenças significativas entre quem tem fé e quem não tem.

Não é por acaso que os cognomes de Malick se focam na sua espiritualidade muito própria, parecendo ignorar os atributos de cineasta: «ermita», «monge», «impressionista», «experimental», etc. Os desabafos de Brad Pitt e do Director de Fotografia, Emmanuel Lubezki, são bem expressivos de uma atitude incomum, para dizer o mínimo, num realizador: «So the actors are performing the dialogue, but Terry (Malick) isn’t interested in dialogue. So they’re talking, and we’re shooting a reflection or we’re shooting the wind… Photography is not used to illustrate dialogue or a performance. We’re using it to capture emotion so that the movie is very experiential. It’s meant to trigger tons of memories, like a scent or a perfume.»

A fotografia é dos pontos fortes do filme, premiado com a Palma de Ouro em Cannes. Superabundam as vistas aéreas a uma intensa actividade vulcânica ou ao demais esplendor da natureza, sobrevoando paisagens magníficas dos EUA, de Itália (cf locais na nota-de-rodapé) e da abóbada celeste.


Ao desfiar a memória, Jack (Sean Penn) entrega-se a deambulações pessoais, totalmente alheadas do presente yuppie, para mergulhar interiormente nos passos decisivos do seu crescimento, parecendo reajustar o que guarda dessa memória. Como se houvesse responsabilidade no olhar com que cada um encara e recria o passado. Os primeiros momentos são recordados gloriosamente, numa inocente celebração da vida. Saboreia-se o espanto perante o mistério da pequenez, da fragilidade, perdida num universo imenso… não fora a protecção paternal.   


Há uma tonalidade levemente onírica neste longo flash back, que nos remete para o espaço de subjectividade do protagonista, para lá dos factos em si. Aliás (conforme me alertou um amigo investigador), a câmara situa-se ao nível dos olhos da criança, mostrando um universo desfigurado pela escala infantil.

À infância segue-se o olhar crítico do adolescente, a distanciar-se dos antigos tutores – em primeira instância, dos pais– e dos seus ensinamentos, nem sempre condizentes com a prática. Aqui introduz-se a primeira perturbação, que se agrava com os reveses da própria família (agora encarada com reservas e objecções, sem a confiança pueril dos pequeninos), até ao momento de ruptura, causado pela morte prematura do irmão querido, aos 19 anos de idade! Curiosamente, nem o ciclo de vida do planeta, sobejamente mostrado no filme – onde há lugar à morte e ao despontar das sucessivas gerações– atenua minimamente aquela perda. Porque a história individualizada –i.e., na perspectiva de quem ama– torna o protagonista único e insubstituível. Aliás, amar é reconhecer isso. Gabriel Garcia Marquez exprime-o lapidarmente: «Podes ser apenas uma pessoa para o mundo, mas para alguém tu és o mundo». 

Não por acaso, o filme abre com a notícia da perda do tal irmão, na perspectiva dos pais, dilacerados por uma dor indizível. É a partir desta incompreensão e até revolta contida que a película se lança na exploração incessante do sentido da vida, desde o alvor dos tempos.

Depois de Jack revisitar o passado, percorrendo esse património pessoal da história guardada num arquivo de escolha (e de responsabilidade) afectiva –tendo presente que a memória humana envolve dramaticamente a afectividade e a liberdade– o final desvenda uma resposta possível, ou melhor, uma atitude possível face à tragédia da morte. A resposta generosa da mãe liberta-a e contagia toda a família na mesma onda regeneradora, reunindo os vivos e os que já partiram, numa prefiguração da chamada «comunhão dos santos». A ponto de ser o momento de reconciliação de Jack com todo o passado, em especial com a aspereza e austeridade incompreensíveis (para ele) do pai. A dor vivida ganha algum sentido ou, ao menos, aceitação. E o imenso bem da infância e adolescência adquire uma limpidez, que nunca tivera olhos para reconhecer nem apreciar. É nessa viragem da idade adulta, despoletada pelo perdão e por um despojamento libertador, que recupera, com maior realismo, a paz que se extraviara na tenra idade.


Parecendo vaguear entre erupções vulcânicas e longos desabafos de um adulto com uma vivência familiar afinal rica, embora crivada de estilhaços dolorosos, a película abarca tanta memória, que se torna difícil digerir a pluralidade de estratos acumulados nessas duas horas (em boa verdade, a versão original dura oito, fortemente condensadas para ser comercializável). Ainda assim, focando-nos na voz-off, percebe-se como um passado bem revivido pode purificar a memória e reanimar o presente, reacordando o significado da vida, ainda que em flashes. Sobretudo, se o dia-a-dia for vivido em diálogo aberto com o Ser (não ficam dúvidas sobre a formação filosófica do realizador), ampliando a consciência a todo o universo de modo a não se deter no pequeno ego individual, mas antes recolocá-lo num horizonte sem limites, à medida do desejo de infinito. Fora essa a opção de vida transmitida pela mãe como bússola para o bom uso da liberdade, incutindo-lhe a noção clara das consequências: «There are two ways through life (podia ser o subtítulo do filme): the way of nature, and the way of Grace. You have to choose which one you'll follow. Grace doesn't try to please itself…No one who loves the way of grace ever comes to a bad end… Nature only wants to please itself… To have its own way. It finds reasons to be unhappy when all the world is shining around it

Adoptando um título evocador dos Génesis, «A Árvore da Vida» parece desfiar no ecrã um moleskine com os pensamentos de Malick, numa reflexão em que a história da humanidade decorre menos de um paraíso perdido e bem mais de um jardim do Éden em devir. A contar connosco para desabrochar algo ainda em potência na criação. A nota de esperança do fim, pontuada ao longo do filme por múltiplas indicações para a caminhada na terra, merecem ser gravadas num moleskine.     
No filme: 
- (Conselho da mãe) «The only way to be happy is to love. Unless you love, your life will flash by.[…] Do good to them. Wonder. Hope
- (Outro conselho da mãe) «Help each other. Love everyone. Every leaf. Every ray of light. Forgive
- (pequeno Jack, em tom de oração) «Help me not answer my dad... Help me not to get dogs in fights... Help me to be thankful for everything I've got...»
- (pequeno Jack, dirigindo-se a Deus para formular um pedido espantoso) «Are You watching me? I want to know what You are. I want to see what You see

De Malick, em entrevista recente:
- «This story is that of adult Jack, a lost soul in a modern world, seeking to discover amid the changing scenes of time that which does not change: the eternal scheme of which we are a part.  When he sees all that has gone into our world’s preparation, each thing appears a miracle—precious, incomparable.  Jack, with his new understanding, is able to forgive his father and take his first steps on the path of life. The story ends in hope, acknowledging the beauty and joy in all things, in the everyday and above all in the family—our first school—the only place (where) most of us learn the truth about the world and ourselves, or discover life’s single most important lesson, of unselfish love

Aplica-se à letra a expressão espectacular, que todos nos habituámos a ouvir na toada rouca e quente do grande Louis Armstrong: What a wonderful world. Teremos olhos para o ver?...

http://cinecartaz.publico.pt/Filme/282153_a-arvore-da-vida




Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1)   FICHA TÉCNICA

Título original:
THE TREE OF LIFE
Título traduzido em Portugal:
A ÁRVORE DA VIDA

Realização:
Terrence Malick (que já foi premiado com Óscares)
Argumento:
Terrence Malick
Produzido por:
Dede Gardner, Sarah Green, Grant Hill, Brad Pitt e
Bill Pohlad
Director de Fotografia: 
Emmanuel Lubezki
Banda sonora:
Alexandre Desplat

Duração:
138 min.
Ano:      
2011
País:
EUA

        Elenco:

Brad Pitt (o pai, Mr. O’Brien),
Sean Penn (o filho em adulto, Jack),
Hunter McCracken (o filho em adolescente, Jack)
Jessica Chastain (a mãe, Mrs. O’Brien),
 Tye Sheridan (um dos irmãos, Steve)
Locais das filmagens:

No Texas (EUA): Austin, Bastrop, Dallas, Houston, Goblin Valley State Park - Highway 24 (Green River, Utah), La Grange, Matagorda, Smithville e Waco

Na Califórnia (EUA): Death Valley National Park.

No Lazio (Itália): San Marcos -Parco dei Mostri, Bomarzo, Villa Lante.

Site oficial:

http://www.foxsearchlight.com/thetreeoflife/


Premiado em 2011 com a Palma de Ouro em Cannes.

3 comentários:

Ana LA disse...

Talvez um dos melhores filmes que já vi. Tão pouca palavra e tanta coisa dita.
Maria, gostei da sua apreciação. Obrigada.

Anónimo disse...

É,de facto, um filme marcante. Vê-se bem que foi concebido por um filósofo, com mta mensagem implícita. Abç, MZ

Anónimo disse...

Conheço pessoas que saíram a meio do filme... calculo que seja o tipo de filmes que ou se entra ou se não entra... não há volta a dar-lhe! Com a tua explicação, só se pode gostar do filme. Porque mesmo que não se perceba tudo, as tuas explicações já são umas guidelines luminosas! Bjs. pcp

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