19 julho 2011

Duas últimas

Escrevo sob o signo da nostalgia. Quoi de neuf?, perguntariam os franceses (aplaudidos pelo meu amigo ATM)...

Este estabelecimento festejou, sábado passado, três anos de vida. No meu modesto apartamento ao Monte do Estoril, o nosso embaixador no Zimbabwe mata saudades do solo pátrio enquanto a troika não limita as férias. Hoje, mas há três anos, faltavam dezasseis dias para eu embarcar com destino ao país de Mugabe, numa viagem que me marcaria para sempre.

É difícil - e talvez desinteressante, digamos mesmo - descrever o gosto que tive naqueles dois meses. Não foi só, obviamente, a simpatia e amizade inexcedíveis com que fui recebido. Foi conhecer uma parte significativa da África profunda, menos turística, menos devassada, menos invadida por hordas de turistas que passam por tudo sem se deterem em nada; foi sentir a fragilidade mais confrangedora na ala das crianças com cancro de um grande hospital em Harare; foi encontrar as paisagens mais deslumbrantes, os ocasos mais inesquecíveis, as cores e os cheiros que me acompanharão para sempre; foi conhecer o encanto dos jacarandás em flor e a ternura das crianças fardadas em bandos;  foi dessedentar-me com um gin tónico ao pôr-do-sol, quando a poucos metros um rinoceronte fazia o mesmo num charco; foi subir ao monte Ngomakurira e perceber onde está o infinito.

Escrevo hoje, tendo na memória esse tempo que ficou cá dentro como mais nenhum ficou. Dessa época guardo também o Mia Couto e uma frase com que me cruzei e que, como tantas coincidências significativas, não pode ser vista à luz de um tempo que é, mas de um tempo que vai sendo. Como se as coisas verdadeiramente importantes fossem um percurso, mais do que um destino, ou  o mistério dos encontros e desencontros fosse algo resplandecente e tivesse, só por si, um brilho que perdura e que ilumina a bacidez dos dias.

A vida é uma casa com duas portas. Há uns que entram e que têm medo de abrir a segunda porta. Ficam girando, dançando com o tempo, demorando-se na casa. Outros se decidem abrir, por vontade de sua mão, a porta traseira. Foi o que eu fiz, naquele momento. A minha mão volteou o fecho do armário, a minha vida rodeou o abismo.

Passado este momento de nostalgia críptica tendo o Zimbabwe como pano de fundo, fechem os olhos e imaginem a sensualidade africana, que foi sempre um misto de tentação e libertação.

JdB

3 comentários:

Ana LA disse...

Bom dia JdB,
sempre agradável começar o dia com estes seus desabafos.
Rodésia em 1972, marcou-me pela organização, pelo poder frondoso da vegetação e foi, durante 3 anos, o único sítio em África onde usei e pude mostrar o meu belíssimo ponche de lã, comprado nas férias de Natal na metrópole.
Ainda a propósito do seu propósito, da minha essência africana e de Mia Couto,

"Eis o que aprendi nesses vales onde se afundam os poentes: afinal, tudo são luzes e a gente se acende é nos outros. A vida é um fogo, nós somos suas breves incandescências".

(fala de João Celestioso em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, Mia Couto)

JdC disse...

A minha descoberta do Zimbabwe foi feita também ao longo desses dois meses e na companhia do autor destas linhas. Tenho pena que a visita muito provavelmente não se repita.
No entanto, outras descobertas certamente virão.
Oliver Mtukudzi é uma das almas do Zimbabwe. Vale a pena ouvir e, se não se gostou à primeira, ouvir de novo. Mas é nos espectáculos ao vivo que Mtukudzi cativa mais os seus fãs. Pelo menos a mim, foi assim que me cativou.

Anónimo disse...

Caro JdB,
Tarde e a más horas, não quero deixar de dizer que embora tenha estado no Zimbabwe apenas 10 dias, foi uma viagem muito impressiva, inesquecível mesmo. Revejo-me mais na descrição e comentários que fazes do que na música, que, como diz o JdC, precisa de uma 2ª escutadela!
Um abraço,
fq

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