Chego sempre à hora certa,
contam comigo, não falho,
pois adoro o meu emprego:
o que detesto é o trabalho.
Millôr Fernandes, in "Pif-Paf"
***
Fábrica
Oh, a poesia de tudo o que é geométrico
e perfeito,
a beleza nova dos maquinismos,
a força secreta das peças
sob o contacto liso e frio dos metais,
a segura confiança
do saber-se que é assim e assim exactamente,
sem lugar a enganos,
tudo matemático e harmónico,
sem nenhum imprevisto, sem nenhuma aventura,
como na cabeça do engenheiro.
Os operários têm nos músculos, de cor,
os movimentos dia a dia repetidos:
é como se fossem da sua natureza,
longe de toda a vontade e de todo o pensamento;
como se os metais fossem carne do corpo
e as veias se abrissem
àquela vida estranha, dura, implacável
das máquinas.
Os motores de tantos mil cavalos
alinhados e seguros de si,
seguros do seu poder;
as articulações subtis das bielas,
o enlace justo das engrenagens:
a fábrica, todo um imenso corpo de movimentos
concordantes, dependentes, necessários.
Ontem publicou-se neste estabelecimento um texto encimado por um título: bem-aventurados os mansos. Neste vendaval que por vezes me assola comecei a associar muitas coisas, todas elas derivadas do título: KGB, música triste ou alegre, sinais gráficos de exclamação ou de interrogação, Outono ou Verão, gente irada ou gente triste.
Um dia contaram-me uma história (totalmente verídica) que penso já ter revelado neste estabelecimento: dois elementos do KGB foram a uma casa de fado; não percebendo português fixaram-se na melodia, na entoação, nos sons da voz ou da guitarra, no ambiente. E, afiançam-me, comoveram-se ao ponto das lágrimas. Ora, esta história é uma contradição em termos e há nela, por isso, algo de potencialmente falso. Eu explico, recorrendo a um silogismo:
1ª premissa: o fado é uma música triste;
2ª premissa: a música triste é uma música centrípeta;
Conclusão: o fado é uma música centrípeta.
Ora, um agente da KGB, habituado à tortura, à eliminação dos homens, à violência verbal e física, à ausência de remorso, é um homem com um potencial de fúria grande, com um tom de voz todo projectado para fora, para a defesa do Estado; é um ponto de exclamação, uma afirmação. A ira, pela sua própria natureza (tal como a alegria) é centrífuga. Assim sendo, um homem da KGB não pode gostar de fado porque é protagonista de uma força para dentro em simultâneo com outra para fora. A história tem de ser, por isso, mentira. Ou o fado é uma música alegre, o que não se afigura correcto.
Gostamos da música que revela o nosso íntimo. Gente pessimista (o pessimismo é, na sua versão mais arrojada, um ponto de interrogação, embora na maioria das vezes seja apenas uma reticência) gosta de Outono, de música triste. Podem até ter um pendor para a nostalgia, para a mansidão que não é a mencionada nas bem-aventuranças, mas a que se refere ao desequilíbrio de fluidos, a uma certa hidropisia, ao curvar-se sobre si mesmo que sugere o sinal gráfico já referido. A pessoa alegre é hirta, exclama, pontua, enche o peito de ar com vista ao esvaziamento assertivo, deseja a alegria que provoca a centrifugação da tristeza e a desfaz contra as paredes escuras do destino.
Desconfiem de gente irada, alegre ou que tortura, mas que gosta de música triste. Há uma contradição dentro delas que pode ser altamente perigosa, como se no interior dessa gente não houvesse equilíbrio, mas um estraçalhar de forças contrárias, um rasgamento violento.
Neste pequeno texto há dois personagens, Vítor e Rafael, ambos gémeos. São tão gémeos que, para efeitos de narrativa, não só não se distinguem um do outro como dizem exactamente o mesmo, e encontram-se nos mesmos locais com uma simultaneidade sem explicação científica. O que diz um diz o outro – sendo que a inversa também é verdadeira. Onde está Rafael pode ler-se Vítor. Diria ainda, correndo o risco da repetição, que a inversa também é verdadeira.
***
Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.
Rafael – como poderia ser Vítor – de há muito que sorria ao ouvir esta frase do sermão da montanha. Apanhara o hábito de seu pai, um homem sério, austero e grave que se vira precocemente viúvo quando a esposa tombara no chão, silenciosa e discreta, num desgraçado e chuvoso domingo de Ramos.
Vítor – como poderia ser Rafael – voltara a ouvir o texto sagrado, já sem sorriso. Franzira-se-lhe um sobrolho e correra-lhe uma lágrima furtiva derivada de uma orfandade paterna recente. De facto, o pai dos gémeos – entre si, e inversamente falando – finara-se com um sorriso segurando entre as mãos fortes e grandes um diário. Foram encontrá-lo com os olhos abertos, um fio de saliva a escorrer-lhe pelo canto da boca fina e séria e um estetoscópio – totalmente desenquadrado da decoração envolvente – numa banqueta ao lado.
Rafael – como poderia ser Vítor – fechara-lhe os olhos, arrumara o instrumento médico com um misto de espanto e temor de que sempre se reveste o inexplicável, e sentara-se a ler o diário. Um dos gémeos – ou seria o outro? – sugerira que se começasse pela página aberta, que talvez se derramasse uma luz sobre o funesto evento.
17 de Fevereiro. Voltei a casa de AT. Recebeu-me linda e deslumbrante, com um sorriso convidativo e pecaminoso. Estava vestida de enfermeira, o meu fetiche mais recorrente. A farda justa realçava-lhe as formas volumosas e, junto a um peito que a cirurgia estética tinha retocado, um relógio pequeno marcava as 15 horas. Estendeu-me uma mão forte e profissional, lamentando o meu ar macilento. Instou-me à posição horizontal na marquesa, alegando a necessidade de um exame completo. Na hora que se seguiu observou-me de norte a sul, de nascente a poente, de A a Z. Usou todos os seus sentidos, justificando a necessidade de um diagnóstico perfeito. Quando a possuí – e foi ela, AT, quem explicitamente me pôs o verbo nos lábios – revesti-me de uma felicidade imensa, como o doente a quem o médico transmite palavras de cura. A enfermeira levou-me à porta, solícita, confiante, amável – e desnuda. Mantivera sempre um estetoscópio ao pescoço, como quem mostra ao paciente que todos somos serviço e prazer. Estendeu-me a mão profissional e forte e pediu que lhe devolvesse o instrumento médico aquando da próxima visita. Detectou-me um corpo pouco ginasticado, mencionando que talvez fosse bom convidar uma acrobata da vez seguinte. Amo-te, AT, e não vejo o dia de te possuir de novo.
Vítor – como poderia ser Rafael – interrompera a leitura do diário para aplicar de novo o verbo abrir – já abrira a boca, faltava abrir a porta. Na soleira da dita encontrava-se uma senhora muito bonita, fardada de enfermeira, com um relógio pequeno a compor um decote displicente onde saltitava um peito retocado pela cirurgia.
Muito boa tarde. Estou a falar com os donos da empresa Irmãos Mansos e Herdeiros? Talvez tenham ouvido falar na minhas iniciais – AT... O meu nome é Andreia Terra, e conheci bem o vosso pai...
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Dois dos discípulos de Emaús
iam a caminho duma povoação chamada Emaús,
que ficava a sessenta estádios de Jerusalém.
Conversavam entre si sobre tudo o que tinha sucedido.
Enquanto falavam e discutiam,
Jesus aproximou Se deles e pôs Se com eles a caminho.
Mas os seus olhos estavam impedidos de O reconhecerem.
Ele perguntou lhes.
«Que palavras são essas que trocais entre vós pelo caminho?»
Pararam entristecidos.
E um deles, chamado Cléofas, respondeu:
«Tu és o único habitante de Jerusalém
a ignorar o que lá se passou estes dias».
E Ele perguntou: «Que foi?»
Responderam Lhe:
«O que se refere a Jesus de Nazaré,
profeta poderoso em obras e palavras
diante de Deus e de todo o povo;
e como os príncipes dos sacerdotes e os nossos chefes
O entregaram para ser condenado à morte e crucificado.
Nós esperávamos que fosse Ele quem havia de libertar Israel.
Mas, afinal, é já o terceiro dia depois que isto aconteceu.
É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos sobressaltaram:
foram de madrugada ao sepulcro,
não encontraram o corpo de Jesus
e vieram dizer que lhes tinham aparecido uns Anjos
a anunciar que Ele estava vivo.
Mas a Ele não O viram».
Então Jesus disse lhes:
«Homens sem inteligência e lentos de espírito
para acreditar em tudo o que os profetas anunciaram!
Não tinha o Messias de sofrer tudo isso
para entrar na Sua glória?»
Depois, começando por Moisés
e passando por todos os Profetas,
explicou lhes em todas as Escrituras o que Lhe dizia respeito.
Ao chegarem perto da povoação para onde iam,
Jesus fez menção de ir para diante.
Mas eles convenceram n'O a ficar, dizendo:
«Ficai connosco, Senhor, porque o dia está a terminar
e vem caindo a noite».
Jesus entrou e ficou com eles.
E quando Se pôs à mesa, tomou o pão, recitou a bênção,
partiu-o e entregou-lho.
Nesse momento abriram se lhes os olhos e reconheceram n'O.
Mas Ele desapareceu da sua presença.
Disseram então um para o outro:
«Não ardia cá dentro o nosso coração,
quando Ele nos falava pelo caminho
e nos explicava as Escrituras?»
Partiram imediatamente de regresso a Jerusalém
e encontraram reunidos os Onze e os que estavam com ele,
que diziam:
«Na verdade, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão».
E eles contaram o que tinha acontecido no caminho
e como O tinham reconhecido ao partir o pão.
Visitante assíduo e assertivo, "ao" (assim se assina) escreveu o seguinte comentário ao meu post sobre pandemia e fé:
Ninguém é seguramente um cristão. Um cristão tem sempre dúvidas muito importantes acerca da sua Fé. JdB, neste escrito Vexa não foi feliz. O que perdoo, porque é natural, tal afirmação é humana. Não será verdadeira, mas é natural. Depois, o escrever que não acredita na oração é grave. A oração nada mais é do que nós conversarmos com Deus [como Adão fazia no Éden]. Escolhemos a intimidade. Deus que disse que não lhe interessavam os sacrifícios; antes as obras. Deus que tem um plano [divino] para o Universo. Se reler os 10 Mandamentos, verá que são para um 'povo' reles, que colocava o seu conforto acima de tudo. Que sempre desprezou os seus irmãos das outras tribos. Repare o que se passou nos anos de 1930: os ricos foram para os EUA e o pobres, nos guetos, que se tramassem. Mateus, um descendente de Levy, tribo encarregue de fazer as outras cumprir as regras religiosas, era desprezado por ser cobrador de impostos: num povo que venerava o dinheiro. Levita sustentado, por lei, pelos outros judeus, trabalhando para os romanos? Mas que grande pecador. Os fariseus, antes de se cruzarem com um publicano tinham, como regra, de se afastarem 9 passos, em semi-círculo, para não se contaminarem... Tendo eu muitas costelas farisaicas, não o condeno porque sei que eu serei condenado.
***
Sobre o comentário - que agradeço pelo valor que acrescenta ao meu próprio pensamento - gostaria de dizer:
1) O dicionário (se fosse necessário recorrer-lhe) reforça o meu argumento: cristão é aquele que crê em Jesus Cristo, que segue os princípios do cristianismo. Assim sendo, não tenho uma dúvida quanto ao meu cristianismo: leio o que Cristo disse (ou aquilo que me dizem que Cristo disse, em que acredito) e é aquilo que faz sentido eu seguir. Talvez fizesse um esforço tremendo para procurar qualquer coisa sobre a qual pudesse dizer "eh pá! isto não! Com isto não concordo."
(Podia usar uma expressão engraçada que ouvi há uns tempos, "tal como disse Jesus Cristo, e com o qual estou de acordo...")
Assim, procuro ser cristão: o amor ao próximo, a justiça, a atenção aos desfavoráveis, as obras antes dos sacrifícios, as bem-aventuranças. Não é (só) fé, é uma prática de vida, um manual de procedimentos, o que dificulta a coisa....
2) Acredito na oração, mas não como forma de pedir a chuva e a interrupção da chuva, a cura de uma criança doente, a vitória num jogo de futebol, a descoberta de uma vacina. Acredito na oração para mudanças de comportamentos próprios ou alheios, para a tomada de consciência, para que tenhamos discernimento e força em doses suficientes para fazer deste mundo (ou do nosso pequeno mundo) um lugar melhor, para que cada um suporte a cruz que o destino lhe deu ou saiba dar sentido à sua vida. Acredito na oração para pedir milagres - mas os milagres da transformação humana, não os da cura do pé de atleta ou da artrose persistente.
3) Já fora da resposta ao comentário: apesar de todas as minhas críticas (que nem serão muitas...) não concebo a minha vida fora da Igreja Católica. Apesar de todos os defeitos que lhe encontro (e serão alguns) não concebo a minha vida fora da Igreja Católica. Acredito que haja salvação fora da Igreja Católica, mas eu quero salvar-me lá dentro.
Não posso dizer que seja um sonho com a dimensão daquele que levou Martin Luther King ao martírio por uma causa. Não posso dizer que seja uma vontade, porque vontade talvez seja outra coisa. Talvez seja, então, um desejo, não como aqueles que levam as grávidas a comer feijoada com uma rodela de ananás mas, mesmo assim, um desejo. Qual é ele? Ligar a televisão pelas oito da noite e não estranhar que ninguém fale de COVID-19. Não ver o competente José Alberto Carvalho agarrado diligentemente aos gráficos dos mortos, dos infectados, dos concelhos e dos grupos de risco; não ver o competente Rodrigo Guedes de Carvalho a dizer frases acertadas e conselhos válidos sobre o afastamento das pessoas e sobre a necessidade de ficar em casa por amor; não ver, por último, o competente José Rodrigues dos Santos com calça afunilada e olhar dramático a agitar os braços com sabedoria de orador, a inflectir a voz para realçar a dimensão da tragédia, a piscar o olho (ainda pisca?) para transmitir confiança, para passar a mensagem que a vitória é nossa e que o vírus (dava mais jeito ser plural, para colar à citação) não passará.
Penso que nada ficará como dantes quando vencermos o vírus - embora não se saiba se esse "quando" é este ano, em 2023 ou nunca. Porém, enquanto esse "quando" não chegar, gostava de fazer uma quarentena (nem que fosse uma quarentena de minutos) ao vírus, às tendências, aos dramas, ao morcego, à OMS, à incompetência deste ou daquele, ao flagelo previsível do desemprego e da desestruturação de tantas famílias. Gostava que um dia todos os canais se unissem para abrir os telejornais com histórias triviais, com receitas de cozinha, com a leitura de poemas, com a passagem de playlists de pessoas anónimas, com entrevistas a gente desconhecida que, num descampado nos confins de Portugal, não consegue dizer COVID-19 ou não sabe o que é o pangolim, confundindo o animal com um instrumento musical. Gostava que houvesse um certo deus das pequenas coisas nas aberturas do horário nobre e que, durante uma quarentena de minutos, fizéssemos uma desintoxicação daquilo que nos intoxica há semanas. Não porque os temas aflorados pelos competentes jornalistas não sejam importantes; apenas porque precisamos de um jejum, de comer maçãs durante uma semana para limpar o organismo, de ouvir frases diferentes, gráficos diferentes, tragédias diferentes.
Quarenta minutos, vá. Depois voltamos ao mesmo, juro.
LIXO RECICLADO A DESAGUAR EM ARTE & ALERTA DOS MAIS NOVOS
O norte-americano Thomas Deininger (1) é um apaixonado na arte ocidental clássica, pura e dura. Já o lixo surgiu como desafio para reutilizar os trapos e as velharias que perdem validade num prazo curtíssimo, segundo o ritmo frenético e insaciável de uma sociedade viciada em consumir-e-deitar-fora. A colecção de brinquedos fora de uso é só uma das montanhas de desperdícios que o artista apanha na rua. Porque as ruas e avenidas das grandes cidades transbordam de matéria-prima para as suas obras. Pudesse ele aproveitar tudo…
A segunda paixão da sua infância, logo depois do desenho, era o surf. E só não enveredou pelo desporto para não desgostar os pais, que lhe queriam proporcionar estudos universitários. Tinham poupado para isso, pois as propinas das universidades americanas são altíssimas, pelo que exigem poupanças acumuladas desde que a criança nasce, para uma família da classe média. Concluídos os estudos, Tom optou pelas artes plásticas. E, em 1994, já tinha lugar nos museus de arte moderna e em colecções privadas:
Outros artistas, com semelhantes preocupações ambientais, lançaram mão da mesma ideia, produzindo peças interessantes a partir dos sobejos de botões, tecidos, utensílios domésticos, bibelots, etc. A norte-americana Angela Pozzi (2) recriou um zoo paralelo com o lixo resgatado aos oceanos, num alerta claro contra a poluição marítima crescente nas águas do planeta. A quantidade gigantesca de detritos que apanhou permitiu-lhe construir feras aquáticas (a maioria) colossais, que fazem as delícias das crianças:
Retratistas exímios não se furtaram ao esforço de reproduzir rostos expressivos, recorrendo a materiais sumamente pobres, daqueles em que mais ninguém repara:
Até jornais velhos puderam ganhar sentido decorativo e artístico. Dificilmente algum jornalista se teria atrevido a antecipar o resultado final:
Há dois anos, precisamente no mês de Abril, abriu na capital checa o primeiro museu de arte ilusionista, junto ao celebérrimo relógio astronómico – o «Orloj» -- situado na icónica Old Town Square de Praga. Nesse «Illusion Art Museum Prague» (IAM Prague) muitas das ilusões ópticas provêm de obras feitas com sobras, numa aplicação oportuna e original da badalada ‘economia-circular’. Percebe-se por que Deininger tem lugar de honra no acervo do divertido jogo de aparências exibido no IAM, com possibilidade de visita virtual:
Num aviso também com ressonâncias ecológicas, Michael Jackson dedicou às crianças do mundo a sua célebre composição «Heal the World». Calha que uma das melhores interpretações da música é feita por crianças, que cantam com a autoridade de serem a geração que será mais afectada pelo que for hoje decidido e feito. Somam ainda a ternura da sua pouca idade e um incrível talento musical, como ressalta na curta-metragem montada pelo indiano Maati-Baani, onde desfilam pequenos cantores e mini-instrumentistas, desde os 5 anos de idade e de diferentes pontos do planeta! Verdadeiros prodígios:
As potencialidades incríveis da mente humana também contam com esta capacidade apaixonante de devolver interesse a realidades descartáveis para a maioria. Quando se junta sentido artístico recriam uma nova realidade, revalorizada e linda, ainda por cima! Mas não tenhamos ilusões de que qualquer recauchutagem ao lado menos atraente da vida parte sempre e depende sempre do interior de cada um. Madeleine Albright (braço direito de Bill Clinton na Casa Branca, de origem judia, nascida na Checoslováquia) deu uma dica gira, numa entrevista a Fareed Zakaria no programa da CNN «GPS». Estava a explicar o que aprendera em situação limite -- durante os bombardeamentos de Londres, onde viveu durante a Segunda Guerra, depois de deixar o seu país para fugir aos nazis— não hesitou numa saída simples, mas exigentíssima: Bom, como estava à mercê da pontaria da Luftwaffe, só estava ao meu alcance ter controle sobre o que pensava e fazia. Descobri que isso era, afinal, o mais importante e serviu-me para a vida!… Poderá ser uma pista para encarar este tempo estranho sob o efeito de um surto pandémico, inédito para quase todos os habitantes do planeta.
Sou seguramente um cristão; sou-o sem dúvidas quanto à convicção, com muitas dúvidas quanto à qualidade. Não sei se serei sempre um católico convicto, isto é, se me reverei sempre na forma como a Igreja Católica aborda / abordou alguns problemas ou sobre o modo como, até no meu tempo (e tenho 62 anos...) formatou muitas mentes. Este meu pensamento manifesta-se muito no desagrado com que recebo a ideia de que Deus está por trás de tudo o que acontece, e que temos de rezar a Deus para que venha a chuva, ou para que pare a chuva, ou para que se elimine o COVID-19 ou se salvem algumas vidas. Talvez por isso me tenha sabido bem ler uma citação de Jean-Miguel Garrigues que o Padre Pedro Quintela usou num texto que mão amiga me enviou (e que poderão ler na íntegra aqui): "falando adequadamente Deus não permite o mal. Permite a liberdade que o pode colocar no mundo."
Não sou teólogo, sou fraco pensador. Mas não gosto de ideia de que Deus está por trás das coisas boas e que, por trás das tragédias, está um desígnio que é imperscrutável. A pandemia não é obra de Deus, mas dos Homens; a cura de tanta gente não é obra de Deus, mas dos Homens. Aquilo que nos dias de hoje parece um milagre é obra dos Homens, não de Deus. Porquê? Porque eu concebo um Deus que não é senão amor, e que não optaria por deixar morrer milhares de pessoas por via de um vírus para salvar uma senhora de ficar cega quando lhe saltou óleo quente para os olhos. Esta pandemia obriga a uma escolha: ou se acredita que é um castigo (ou uma obra) de Deus ou não se acredita. Eu sou dos últimos, porque não quero crer num Deus que permite ou que promove esta tragédia.
Não consigo rezar para que a pandemia desapareça ou a vacina venha já amanhã; só conseguiria rezar (se fosse pessoa mais decente do que sou) pela iluminação das pessoas que decidem, pela resistência física dos profissionais de saúde, pela estabilidade emocional das famílias confrontadas com o confinamento, a perda de rendimentos ou a ameaça do desemprego. Talvez gostasse de rezar por cada um deles individualmente, mesmo que não conheça mais de vinte nomes: que cada um deles, médicos, enfermeiros, pessoal do lixo, políticos, caixas de supermercado, gestores, professores, empregadas domésticas, encontrem a sua fonte de inspiração que não os deixe soçobrar, que lhes permita tomar decisões certas pelo bem comum, que sejam um exemplo para quem têm de ser um exemplo. Que rezem a Deus se forem crentes; que se inspirem em outra coisa qualquer.
Por último, rezar pelo fim de qualquer coisa apresenta um problema de eficácia: quando é que Deus ouve? E quando é que sabemos que Deus ouve? Rezar por nós é mais egoísta mas talvez mais fácil: Santo Agostinho sabia que Deus o escutava pela medida das transformações na sua própria vida.
Termino com uma citação que me é cara e repetida neste estabelecimento: Albert Camus, n'A Peste, um livro particularmente actual nestes tempos de pandemia:
Nesse instante dizia o padre que a virtude da aceitação total de que falava não podia ser compreendida no sentido restrito que se lhe dava habitualmente, que não se tratava da banal resignação, nem sequer da difícil humildade. Tratava-se de humilhação, mas de uma humilhação consentida pelo humilhado. Sem dúvida o sofrimento de uma criança era humilhante para o espírito e para o coração. Mas era por isso que era necessário passar por essa prova. Era por isso - e Paneloux afirmou ao seu auditório que o que iam ouvir não era fácil de dizer - que era preciso contemplá-lo, porque Deus assim o queria. Só assim o cristão não se pouparia a nada e, fechadas todas as saídas, iria ao fundo da escolha essencial. Escolheria crer em tudo, para não ficar reduzido a negar tudo.
"Carta aberta de um grupo de filhos ao Sr. Presidente Portugal,
17de Abril de 2020
Exmo. Sr Presidente da República,
As nossas mães estão furiosas!
Estiveram durante o último mês a ensinar-nos sobre esse terrível vírus que salta de pessoa para pessoa. A ensinar-nos a importância de lavarmos as mãos, ficarmos em casa em quarentena para proteger os nossos avós e os portugueses considerados de risco.
Disseram elas que estávamos em guerra e que as nossas rotinas iam ser diferentes durante os próximos tempos! Que não íamos poder ir à escola, ou ir a praia quando ficar sol, que não íamos poder fazer festa de anos no nosso aniversário, ou ir à missa no dia de Páscoa.
Isto porque o Sr Presidente declarou estado de emergência para evitar a propagação ainda mais rápida do virus, evitando assim que as pessoas ficassem todas doentes ao mesmo tempo, ao ponto de não haver camas no hospital para tratar a todos.
E depois ouviram o Sr Presidente a falar sobre os planos para as comemorações do 25 Abril e bem, depois de semanas de cansaço acumulado entre terem que trabalhar à distância e serem também donas de casa, professoras, amigas, mulheres, mães, cabeleireiras, costureiras, tudo ao mesmo tempo, digamos que a mensagem do Sr Presidente não lhes caiu nada bem!
Não que elas sejam contra as comemorações! Pelo contrário! O simbolismo que a data representa é sem dúvida para não ser esquecida! Mas dizem elas, devem ser adequadas ao contexto que estamos a viver neste momento: um bater de palmas em conjunto à porta de casa, fazer um minuto de silêncio ou até mesmo um gesto simbólico pela televisão.
E por isso resolvemos escrever ao Sr. Presidente a pedir ajuda, porque quando as mães ficam chateadas, a nossa quarentena fica difícil e desta vez nem sequer tivemos culpa de nada! E depois lá se vai a roupa passada a ferro, os deveres de casa, as nossas bolachas preferidas, horas a ver televisão e a jogar no computador!
Sendo assim gostaríamos de sublinhar as condições impostas por elas para o Sr Presidente poder celebrar o 25 Abril do modo que gostaria!
(Nós também queríamos!)
1) Enquanto houver pessoas a morrer sozinhas no hospital ou em lares, sem poderem dizer adeus aos seus familiares mais queridos, não!
2) Enquanto não se puder fazer funerais dignos, é que não mesmo!
3) Enquanto não pudermos dar um beijinho aos nossos avós, nem pensar!
4) Enquanto os pais que trabalham na linha da frente contra o vírus não poderem ir dormir a casa e estar com os seus filhos e família para os proteger, nunca!
5) Enquanto estiverem a libertar presos para evitar o contágio em massa nas prisões, achamos que é melhor não!
6) Enquanto não podermos ir ver o glorioso a jogar, dançar no NOS ALIVE, ir ao casamento da prima Joana, na-na-na-na-na!
7) Enquanto tivermos que estudar em casa através da telescola, nahh!
8) Enquanto houver doentes oncológicos ou com doenças crónicas com tratamentos e cirurgias suspensas devido à pandemia, também não é boa ideia!
9) Enquanto as mães tiverem que estar sozinhas durante o parto sem o apoio do pai e sem poder receber visitas, não!
10) Finalmente, enquanto as nossas mães tiverem que ficar em quarentena, é claro que não!!!
Isto porque se estamos em estado de emergência devemos adiar datas importantes ou celebrar as mesmas de outra forma! Todos sabemos a importância que o 25 de Abril representa para a nossa democracia. Mas de momento temos que ter todos sentido de responsabilidade e disciplina, sermos fortes e ficar em casa!
Espero que o Sr Presidente tome em atenção o pedido destes pequenos miúdos com idades entre os 2 dias de vida e os 11 anos.
Um conselho que aprendemos lá em casa: as mães têm sempre razão!
Atentamente,
Matias Tomás, Maria Clara, Maria Teresa, Vitória, Teresa, Tomé, Maria Francisca, Vera, Zé Maria, Luís, Duarte, Zé Maria, Xavier, Gonçalo, Martim, Nuno, Francisco, Bartolomeu, Assunção, Maria do Carmo, José Maria, Rosário, Luísa, Manel, Francisco, António, Madalena, Xico e Mariana.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou Se no meio deles e disse lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser lhes ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».
Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo,
não estava com eles quando veio Jesus.
Disseram lhe os outros discípulos:
«Vimos o Senhor».
Mas ele respondeu lhes:
«Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos,
se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado,
não acreditarei».
Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez em casa
e Tomé com eles.
Veio Jesus, estando as portas fechadas,
apresentou Se no meio deles e disse:
«A paz esteja convosco».
Depois disse a Tomé:
«Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos;
aproxima a tua mão e mete a no meu lado;
e não sejas incrédulo, mas crente».
Tomé respondeu Lhe:
«Meu Senhor e meu Deus!»
Disse lhe Jesus:
«Porque Me viste acreditaste:
felizes os que acreditam sem terem visto».
Muitos outros milagres fez Jesus na presença dos seus discípulos,
que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram escritos
para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus,
e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome.
Vós, que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;
que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem peçários, calendários, Pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;
computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;
que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.
Alexandre O'Neill, in 'Poemas com Endereço'
***
O Futuro
Aos domingos, iremos ao jardim.
Entediados, em grupos familiares,
Aos pares,
Dando-nos ares
De pessoas invulgares,
Aos domingos iremos ao jardim.
Diremos, nos encontros casuais
Com outros clãs iguais,
Banalidades rituais,
Fundamentais.
Autómatos afins,
Misto de serafins
Sociais
E de standardizados mandarins,
Teremos preconceitos e pruridos,
Produtos recebidos
Na herança
De certos caracteres adquiridos.
Falaremos do tempo,
Do que foi, do que já houve...
E sendo já então
Por tradição
E formação Antiburgueses
- Solidamente antiburgueses -,
Inquietos falaremos
Da tormenta que passa
E seus desvarios.
O julgamento de Friné (ou Friné diante do areópago), de Jean-Léon Gérôme (1861), Kunsthalle, Hamburgo
Diz-se que Friné, cuja vida remonta ao século IV a.C., fora acusada de impiedade perante o tribunal dos heliastas, e que Hiperides, o orador responsável pela sua defesa, temeu pela sua condenação; assim, desnudou-a, tendo desta forma convencido os juízes. Também se diz que foi ela que se desnudou, ou que foi absolvida porque a beleza estava associada ao bem. Também se diz, por fim, que nada disto aconteceu, o que é irrelevante para o caso.
Um homem nu, por pudor, tapa as partes baixas. Uma mulher nua, por pudor, tapará partes altas e baixas, ou só umas - não sei e não sei quais, que não fui perguntar a quem poderia perguntar. Friné, desnudada perante o areópago, tapou os olhos, e esse gesto é mais uma prova do que alguma civilização ocidental deve à Grécia antiga.
Quem brinca com crianças (se for com gosto é devoção, se for com convicção é amor) conhece as brincadeiras mais vulgares. Tapam-se os olhos e dizemos à criança: o pai / mãe / tio / avó, etc., não estão cá. Depois tiramos as mãos dos olhos e dizemos já cá está. Faz-se isto repetidamente, porque as crianças não se cansam. De olhos tapados não estamos, de olhos destapados já estamos.
Foi isso que Friné fez, no quadro de Gérôme: não tapou os seios ou o sexo; nunca conseguiria tapar tudo e, mesmo que tivesse mãos grandes, seria sempre Friné desnuda perante a areópago. O que Friné fez foi desaparecer. Tapou os olhos e disse àqueles homens que miravam a sua nudez: Friné não está cá. Só posso adivinhar o fim deste episódio: Hiperides voltou a tapar-lhe a nudez forte da verdade e Friné destapou os olhos, gritando, já cá estou! Depois, foi só ouvir a absolvição e ir à sua vidinha.
Há um bom par de anos ouvi um disco de Nina Simone - ou talvez fosse uma colectânea, não me lembro. Não sabia nada da vida dela, mas a música (no seu conjunto) pareceu-me triste e funda, independentemente do ritmo de cada uma delas. Havia ali um sofrimento qualquer, que não sabia explicar - até porque nem sequer sabia se tinha razão. Talvez fosse da interpretação, não sei.
Um destes dias dias vi um documentário sobre a vida de Nina Simone. Tendo sido educada com o intuito de ser a primeira pianista clássica negra dos EUA, viu uma candidatura a uma bolsa ser-lhe negada, exactamente porque era negra. Por necessidade de sustentar uma família pobre, voltou-se para o jazz, e daí para o activismo político mais aguerrido, o que lhe terá prejudicado a carreira. Casou com uma homem inteligente, pragmático e com sentido comercial, que quis desenvolver a carreira de Nina Simone. Bateu-lhe, violou-a, exigiu-lhe horas infindas de trabalho, terá prejudicado a vertente familiar que a cantora quis desenvolver.
Nina tornou-se violenta, imprevisível, irascível, começando a bater na filha, a humilhá-la em público. Foi diagnosticada com distúrbios obsessivo-compulsivos e com doença bipolar. Até ao fim da vida lamentou não ter tocado música clássica, e o seu virtuosismo ficou patente na forma como se acompanhava a si própria ao piano. Toda a vida dela é uma luta contra a violência sobre os negros, sobre si própria. Talvez a música dela - que eu achei triste, funda e sofrida - fosse o resultado genial de uma mente perturbada e doente.
A vontade própria, alguma competência, talvez, e sorte, permitiram que vivesse os últimos 13 anos em regime de tele-trabalho. Apesar de durante algum tempo ter vivido sozinho, não tive de fazer esforço para manter / criar rotinas, horários laborais, disciplinas de trabalho. Tudo correu de forma muito natural: em condições normais trabalhava oito horas por dia / cinco dias por semana; folgava aos feriados e fins de semana ou, se fosse necessário ou me desse jeito, trabalhava ao sábado e folgava durante a semana. Nesse sentido, a quarentena não me apanhou desprevenido - é assim que tenho trabalhado ao longo dos últimos anos; é assim que tenho trabalhado com gosto, cumprindo uma vontade interior de rotinas, regras e organização.
Apesar de o confinamento não afectar a vertente profissional da minha vida, afecta a parte social: tenho amigos / família / pessoas próximas que vejo com uma regularidade semanal / quinzenal e que agora estou impossibilitado de fazer; sinto falta das conversas, da troca de opiniões ou de notícias, da partilha de vida. Também sinto falta da minha vida académica, da concentração que tenho nas aulas e não tenho atrás de um computador, do convívio com este ou aquele colega de quem me tornei amigo. Todo este confinamento, diga-se em abono da verdade, é tornado confortável pelo facto de viver numa casa ampla e com jardim.
Estes últimos dias deram para perceber uma área do meu quotidiano onde o confinamento deixou destroços: a minha vida religiosa. Numa frase simples poderia dizer que grande parte da Páscoa me passou ao lado. Ontem, por exemplo, esqueci-me de "ir" à missa.
(Um dia fiz um retiro que, não sendo de silêncio, tinha muitas partes em que estávamos sozinhos e calados; num instante a minha mente fugia daquilo em que me tinha proposto meditar para pensar na profissão, nos projectos, na avaliação de pessoal, na redução de custos ou aumento de eficiência.)
Numa casa onde sou o único habitante com vida religiosa, o confinamento atirou-me para uma (quase) assustadora falta de prática religiosa: assisto à missa sentado ao computador como quem está a ver um youtube, disperso-me com o mail que entra ou com a notícia que saiu naquele momento. Assisti à Via Sacra do Vaticano ontem de manhã; não assisti à missa de Páscoa do Papa nem de mais ninguém. Quando dei por mim tinham passado as horas, e eu estava distraído a olhar para a televisão ou a apagar fotografias do telemóvel.
A Páscoa passou-me ao lado. Fez-me falta a rotina de sair a uma hora certa para ir à "minha" igreja, encontrar a minha comunidade, cantar as músicas que se repetem com encanto ano após anos; fez-me falta estar num local religioso onde conheço a vida das pessoas que assistem à missa, onde o ambiente me é propício para rezar, para meditar, para ensaiar propósitos de melhoria que não cumpro. Faltou-me o espaço, os sons habituais, os cheiros próprios, as caras conhecidas, as histórias de sofrimento ou de alegria ou de esperança em tantas pessoas que conheço daquela paróquia. Faltou, por fim - ou talvez mais importante - a disciplina para criar um ambiente interior próprio propício a uma certa elevação de espírito.
Não sei como é para os outros que, embora vivendo sozinhos enquanto praticantes, querem manter uma certa prática religiosa. Para mim o confinamento foi um desafio. Em termos de linguagem de concursos televisivos diria que a prova foi não superada. Não é grave, contudo. É apenas um sinal de alerta importante, como se fosse o corpo a dar um sinal: não que tenho de cumprir algo com mais afinco, mas que me falta qualquer coisa para um maior equilíbrio.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
No primeiro dia da semana,
Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro
e viu a pedra retirada do sepulcro.
Correu então e foi ter com Simão Pedro
e com o discípulo predilecto de Jesus
e disse-lhes:
«Levaram o Senhor do sepulcro,
e não sabemos onde O puseram».
Pedro partiu com o outro discípulo
e foram ambos ao sepulcro.
Corriam os dois juntos,
mas o outro discípulo antecipou-se,
correndo mais depressa do que Pedro,
e chegou primeiro ao sepulcro.
Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou.
Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira.
Entrou no sepulcro
e viu as ligaduras no chão
e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus,
não com as ligaduras, mas enrolado à parte.
Entrou também o outro discípulo
que chegara primeiro ao sepulcro:
viu e acreditou.
Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura,
segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.
Não percebendo imediatamente o que são os primeiros minutos deste youtube, construo uma história que, presumo, não fugirá muito da realidade - ou daquilo que me apetece seja a realidade... Então é assim, como diriam os jovens:
1) sorteiam uma rapariga;
2) depois sorteiam um par para a rapariga; pode acontecer, como parece, que não se conheçam...
3) depois sorteiam um tango
Ora, dançar o tango não é dançar uma valsa inglesa (de que sou fã...). Digo eu, do alto da minha ignorância. Parece que há improvisos, passes criados no momento. Não me parece que nenhum dos dois seja um dançarino fantástico (mais ele do que ela, mesmo assim). Não obstante, não tropeçam, não se pisam, não caem no chão - afigura-se-me tudo uma proeza...
Em fase de quarentena, muitos museus e casas de cultura dão acesso online ao que têm de melhor, sem termos de sair. Entram-nos em casa em modo saudável e, admitamos, confortável, com uma programação especialmente criativa e arejada, que vai muito além da agenda comum. Esmeraram-se, portanto, neste presente virtual.
Por exemplo, a Gulbenkian oferece concertos diários às 19h [de Portugal], decorridos nos melhores auditórios do Ocidente, que também podem ser revistos mais tarde. Lançou curta-metragens, para divulgar os múltiplos instrumentos da orquestra pela perspectiva de quem os domina e pode desvendar os segredos que encerram. Desfilam, assim, diferentes membros da orquestra da Fundação a contar as inimagináveis potencialidades do instrumento que tocam, exemplificadas através de pequenos trechos das melhores árias. Num, o sentido de humor e o sarcasmo até ao ridículo (Prokofiev); noutro, o tom épico (Tchaikovsky) ou antes assustador (Prokofiev); noutro ainda, uma tonalidade nostálgica inédita na música (Stravinsky); ou a explosão cromática que uma peça musical pode comportar (Bach); ou a luminosidade que emerge de uma alegria mais funda (Mozart); ou a estilização estética e a imparável criatividade (Beethoven); ou o instrumento antes situado junto ao coro que só com Beethoven passou para a orquestra (trombone, a partir da V Sinfonia); ou a responsabilidade de ser o referencial de afinação de toda a orquestra (oboé); ou a voz crítica do despotismo estalinista por meio de um registo no limite dos agudos (o violoncelo a subir acima dos violinos, com Prokofiev); ou a vocação para a fanfarra (trompete) ou para triunfalismos (trombone, muito ao gosto de Wagner); ou a textura mais rica e difícil de obter num som (o ´vibrato’) aplicável à quase totalidade dos instrumentos musicais; etc. Os exemplos sucedem-se e o espanto também, à mesma velocidade.
O site contém ainda entrevistas telegráficas aos profissionais nos bastidores, que sustentam no anonimato o trabalho maravilhoso que chega ao palco. Revelam histórias antológicas, como a do ‘maquinista’ a quem calhou entregar o ramo de flores à Maria João Pires, no final da actuação, e esta resolveu dar-lhe um beijo, deixando o pobre funcionário ainda mais nervoso, mas o público encantado e a aplaudir entusiasticamente. As blagues divertidas de uma Fundação com décadas são apenas o lado folclórico da malha imensa de especialistas que fazem da Gulbenkian um expoente de excelência. Neste ciclo da sua vida, a orquestra goza o privilégio de o maestro titular ser o músico- surfista Lorenzo Viotti, de pouca idade mas muito carisma, autoridade natural e audácia. De ascendência franco-italiana, o jovem nascido na Suíça francesa numa família de músicos --- ele próprio uma mistura feliz de nacionalidades europeias --- trouxe para Lisboa uma combinação de frescura e de rigor, que ajudaram a renovar a programação mais clássica e previsível das temporadas de música.
Como se fosse pouco, o site de música da FCG ainda tem um link que permite acompanhar as óperas do MET, directamente de Manhattan para nossa casa, sem termos de abrir a porta a estranhos. Por último, oferece a funcionalidade SPOTIFY, para facilitar a audição e a colecção de boa música. Haja tempo para aproveitar tudo… https://gulbenkian.pt/musica/a-musica-continua/.
Dois testemunhos de hemisférios diferentes revelam, no seu jeito pessoal, o sentido que podemos desbravar nesta quarentena misteriosa, mas com potencial positivo. O primeiro, do Arcebispo de Lima, explica como a Igreja de portas fechadas está, afinal, na rua reconhecível no rosto dos mais frágeis e generosos, com quem Cristo disse identificar-se:
O segundo vem da bisneta de António Ferro e de Fernanda de Castro, para recordar os últimos 13 anos da bisavó confinada à mesma cama, no mesmo quarto, paralisada, depois cega, mas nunca desanimada nem falha de uma agenda divertida, porque nunca lhe faltou coragem para tirar o melhor partido de uma condição dificílima. A pedra de toque esteve na atitude que escolheu para si, recusando tomar-se por prisioneira de quatro paredes. É verdade que recebia visitas, mas sofria dores terríveis e a situação prolongou-se por mais de uma década:
«Parte da família onde cresci era de artistas, filósofos, escritores, poetas, um padrinho pintor. Era normal ver as pessoas muito tempo fechadas em casa, a ler, a pensar a escrever, a fazer desenhos. Horas e horas e horas. Elas pareciam saber o que fazer consigo mesmas. Eu cresci assim. A minha bisavó dizia 'Quando pensarem que estou sozinha, lembrem-se que estou comigo.' Ela era poetisa, dinâmica, activista e um dia caiu na rua, uma trombose, e deixou de poder mexer todo o lado esquerdo do corpo. Ficou na cama 13 anos, sem nunca sair à rua, nem à casa-de-banho. Só a conheci assim. Fez da sala um quarto e as pessoas iam lá como se nada fosse, como se ela andasse, íamos nós, ou iam amigos e artistas, como Natália Correia, Ary dos Santos, falava-se, dizia-se poesia, ela ria. Dava-me explicações de francês e quando eu lá chegava dizia, 'Vem pelo lado direito filha, para eu te fazer uma festa.' E sorria, meiguinha. Era tudo normal. Às vezes ela precisava pedir às pessoas que não viessem para poder ficar sozinha e escrever com calma, com a mão direita. Continuava a editar os seus livros. Um dia ficou cega. Podia ter sido novo drama mas ela pediu a uma pessoa que escrevesse os poemas que ela ditava e continuou a editar livros. Cega, paralítica, enfiada numa cama, cheia de escaras - que são feridas dolorosíssimas que resultam de se estar deitado horas a fio no mesmo sítio. E mesmo assim continuava a ganhar o seu dinheirinho. O mundo das possibilidades é mesmo infinito...
E as pessoas continuavam a lá ir, não porque 'coitadinha', mas porque lhes apetecia, porque dava vontade, iam como se ela andasse, como se ela visse, como se tudo aquilo fosse um detalhe, para dizer e discutir poesia. Ela tornou tudo aquilo um detalhe, ela ria e às vezes dizia, 'pronto, agora vão, estão-me a cansar.' E os amigos iam, ainda meio distraídos nas suas discussões e a dizer 'shiu, a Fernanda está-se a cansar.' Um dia, a dormitar, engasgou-se com a dentadura e morreu. Pronto, a vida é simples assim, acabou. Que saibamos não nos dar mais importância do que a que temos. Às vezes estão muitas formigas na rua, num chão, cheias de projectos, a transportar coisinhas com objectivos nobres, mas nós passamos a correr e, com os nossos pés, facilmente matamos 200, assim duma penada. É assim, faz parte da lógica perfeita e insondável do universo. E a vida continua.
Cresci a ver pessoas não fechadas numa casa, mas numa única divisão, ou apenas na cama, anos a fio. Vi que é possível, vi que a felicidade não depende da saúde nem do sítio físico em que estamos. Depende de outra coisa, cá dentro. Quem tiver coragem de aprofundar, abre então a Caixa de Pandora e é finalmente livre de qualquer acontecimento exterior. Só para quem tiver coragem, só para quem tiver coragem.»
Marta Gautier
Boa Semana Santa em boa quarentena, ambas inspiradas e inspiradoras a partir de dentro.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Vale a pena ver e ouvir o youtube abaixo, que me foi enviado por mão amiga. Ver, porque é sobre Itália, sobre a beleza de Itália. Ouvir porque a versão de Volare, interpretada por Malika Ayane (que não sei quem é) é muito interessante.
Dos meus tempos de menino da catequese ficou o preceito que estabelecia a frequência da Comunhão: ao menos uma vez por ano, por ocasião da Páscoa da Ressurreição (3º Mandamento da Santa Madre Igreja). Dos meus tempos de sexagenário que googla ficou a informação sobre o que estabeleceu o IV Concílio de Latrão: [...] cada fiel, de um e de outro sexo, chegando à idade da razão, confesse lealmente, sozinho, todos os seus pecados ao seu próprio sacerdote, ao menos uma vez ao ano [...]. A semana maior, que agora começa, é um momento, portanto, de reconciliação. Um tempo de reconhecimento das faltas e de promessa de emenda. Porém, os tempos de pandemia transformam este tempo num tempo estranho, com a dificuldade quase inultrapassável de reconciliação (mais do que de confissão) e de comunhão.
Numa dimensão mais laica do tema, a ideia de reconhecimento das falhas e de perdão é um tema que se prende muito com a memória. Sei de pessoas para quem o perdão aos outros é uma decorrência do esquecimento da ofensa sentida; para outras, a memória não tem um botão de desligar: não é o próprio que decide o que fixar, mas a sua "cabeça" (o que quer que isso signifique) que, feliz ou infelizmente, nem sempre obedece a quem a detém, que tem vontade própria.
Detentor que sou de uma memória toda voltada para a inutilidade, ainda assim é no segundo grupo que me integro. Fixo muitas coisas: pequenos pormenores que me enterneceram, sons e pessoas em momentos dramáticos da minha vida, frases que me agrediram, pequenos gestos ternurentos, talvez injustiças ou violências desmedidas, músicas e sensações boas. Fixo o que fixo, sem critério de momento no tempo, pois tenho memórias impactantes com mais de 50 anos. É a forma como enquadro a memória na minha prática com os outros que me ofenderam que dá a dimensão do perdão. Posso dizer que perdoo, mas se recupero uma frase com dez anos e a uso como argumento, lá se vai a virtude: não esqueci e não perdoei; entre as 4 aparentes combinações das expressões esquecer / não esquecer e perdoar / não perdoar, esta parece-me ser a mais inútil e negativa
Não me parece que seja credível - nem sequer proveitoso - dizer que se esquece. Uma vez que não somos donos da nossa memória, significaria isso que há um processo, não controlado por nós, que apagaria o registo da memória. Algo químico que desfaria aquele episódio da nossa vida. Ora, se acontece isso com as ofensas de que somos vítimas, será que poderia acontecer com as ofensas de que somos autores? E, se sim, será que isso faria de nós, ofensores, uma espécie de pessoas inimputáveis? A sério que te disse isso tão desagradável? Olha que não tenho nem ideia de tê-lo feito.... A memória, como a vida, é uma faca de dois gumes; tudo depende do lado pelo qual a agarramos. Se esquecemos sem critério, será que conseguimos aprender com critério?
Daniel Oliveira, jornalista da SIC, pergunta nas suas já famosas entrevistas: alguém te deve um pedido de desculpa? Estou certo que sim, e gostaria que pagassem essa dívida. Talvez para eu pagar as minhas também - ou apenas para poder seguir em frente.
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Filipenses
Cristo Jesus, que era de condição divina,
não Se valeu da sua igualdade com Deus,
mas aniquilou-Se a Si próprio.
Assumindo a condição de servo,
tornou-Se semelhante aos homens.
Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais,
obedecendo até à morte e morte de cruz.
Por isso Deus O exaltou
e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes,
para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem
no céu, na terra e nos abismos,
e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai.
Escrevo com embaraço estas linhas. Parecia-me, com efeito, ouvir a voz, rouca pelos gritos em demasia, de Job, que rejeitava as palavras dos amigos teólogos que o tinham vindo consolar, definindo-os como «infusões de malva», incapazes de extinguir a sua dor lacerante. Ou, começando a escrever algumas linhas, ouvia ressoar ao ouvido a frase áspera de um outro sábio bíblico, Qohélet, que me advertia: «Todas as palavras estão gastas, e o homem não pode mais usá-las» (1,8).
Por fim, decidir rasgar o silêncio, como fizeram o papa e muitos outros pastores com palavras intensas, só para dizer que todos experimentamos na alma os mesmos estremecimentos dos muitos doentes com a boca colada a um ventilador. E sobretudo para estar ombro a ombro com a multidão de parentes, amigos, vizinhos paralisados pelo sofrimento dos seus amados, impossibilitados de dar uma só carícia nos seus rostos, ou inclusive de os acompanhar até ao fim com um rito de despedida.
Mas há uma outra razão que convida todos nós (por agora) sãos a não calar, e está precisamente ligada aos iminentes dias da Semana Santa, quando à nossa frente caminhar Cristo nas suas últimas horas terrenas. Imagino-o como no filme “Andrei Rublëv”, do grande realizador russo Andrei Tarkovski, enquanto avança tropeçando na neve, colorindo-a com o sangue das suas feridas, arrastando, exausto, a cruz, seguido pela multidão dos pobres agricultores e dos últimos daquelas terras.
O Deus cristão é diferente das divindades antigas como Júpiter, relegadas para o seu mundo olímpico dourado, apáticos em relação ao sofrimento humano. É, pelo contrário, um Deus que escolheu assumir o mesmo nosso bilhete de identidade, feito, sim, também de alegria, mas sobretudo de limite, de dor e de morte. Ainda que estejamos distantes das igrejas desertas, ouviremos da voz do sacerdote solitário a narrativa evangélica daquelas horas últimas de um Deus verdadeiramente irmão da humanidade. E veremos desfilar diante dos olhos, vividas nele, todas as desolações destes nossos dias.
Também Ele tem medo e horror da morte, cujo rosto severo de apresenta diante dele e de nós, ainda que o tivéssemos antes exorcizado e ignorado: «Pai, se é possível, passe de mim este cálice» envenenado. Também Ele experimenta o isolamento dos amigos, os discípulos que permanecem distantes, ou, como no caso de tantas pessoas sós doentes, o abandonam. Também Ele tem a carne ferida pelas torturas, e experimenta até a pior das solidões, o silêncio do Pai («Deus meu, Deus meu, porque me abandonaste?»).
Por fim, também Ele, por causa da crucificação, morre como muitos doentes de coronavírus, por asfixia, depois de ter emanado um respiro extremo. Tinha razão um teólogo mártir do nazismo, o alemão Dietrich Bonhoeffer, quando no seu diário na prisão escrevia: «Deus em Cristo não nos salva em virtude da sua omnipotência, mas pela força da sua impotência». Sim porque naqueles momentos não se dobra sobre um qualquer doente para o curar, como tinha feito durante a sua vida terrena, mas torna-se Ele próprio sofredor e mortal. Não nos liberta do mal, mas está connosco no /em> mal físico e interior.
No entanto, mesmo quando é um cadáver sacudido aqui e ali, como acontece hoje às vítimas do vírus, Ele é sempre o Filho de Deus. É por isto que – experimentando na sua carne a nossa humanidade mísera, frágil e mortal – depôs nela para sempre uma semente de eternidade e de esperança destinada a desabrochar. É este o sentido da Páscoa, «a outra face da vida em relação àquela que está voltada para nós», como dizia o poeta austríaco Rainer M. Rilke.
Muitas outras coisas ensinou este mal a quem crê e também a quem não crê. Desvelou-nos, com efeito, a grandeza da ciência, mas também os seus limites; reescreveu a escala dos valores que não tem no seu vértice o dinheiro ou o poder; o estar em casa juntos, pais e filhos, jovens e idosos, repropôs cansaços e alegrias das relações não só virtuais; simplificou o supérfluo e ensinou-nos a essencialidade; tornou-nos irmãos e irmãs dos muitos Job, dando-nos o direito até de protestar com Deus, de erguer as nossas perguntas e lamentos a Ele.
Mas sobretudo revelou um valor supremo, o amor. Muitos dos leitores conhecem o romance do escritor colombiano Gabriel García Márquez, “O amor nos tempos de cólera” (1982), um título que poderia ser transcrito para o coronavírus. Um título que é verdade sobretudo nos muitos médicos, enfermeiros, voluntários, agentes vários, prontos a ir para além da lei do «amar o próximo como a si mesmos», para seguir aquela extrema de Jesus: «Não há amor maior do que aquele que dá a vida pelos seus amigos».
Na Bíblia ressoa 365 vezes esta saudação divina: «Não ter medo!». É quase o «bom dia» que Deus repete a cada aurora. Repete-o também nestes dias de terror. E para quem perdeu a fé, proporei a confissão do mesmo escritor García Márquez: «Desafortunadamente, Deus não tem um espaço na minha vida. Nutro a esperança, se existe, de ter eu um espaço na sua».
Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Consleho Pontifício da Cultura
In Cortile dei Gentili
Trad.: Rui Jorge Martins Publicado pelo SNPC em 31.03.2020
Há uma tribo em África, de que o nome e geografia não são relevantes, em cujo vocabulário não consta a palavra presente. A expressão que talvez mais se aproxime do conceito é instante. Têm passado e têm futuro, mas não têm presente, remetido para a dimensão de um ponto microscópico no tempo.
A ideia não é disparatada, nem talvez original. Para essa tribo, o movimento da cabeça representa o olhar do homem para uma realidade que só aparentemente é tripartida: fixam, geográfica e fisicamente falando, o local onde nasce o sol e onde este se põe; é um movimento realizado com a cabeça erecta, perscrutando a linha do horizonte, num movimento que poderá ser circular: nascente é o passado, poente é o futuro. Nesta linha de raciocínio, o presente não tem representação ao nível do olhar. No preciso instante em que algo é presente já se tornou passado, porque o sol, no seu "movimento", não tem um único momento de imobilidade. O instante é uma palavra que quase não tem tradução em tempo ou em objecto; é algo invisível a olho nu. Ser agora e ser passado são coincidentes.
O conceito desta tribo africana poderia ser aplicado ao olhar ocidental que temos sobre o tempo, no sentido de passado, presente e futuro. O passado existe - é a realidade; o futuro não existe, é a expectativa; o presente, a existir, de pouco serve. Viver o tempo presente seria, para esta tribo africana, um olhar constante sobre uns pés quietos, imobilizados na terra batida. Seria, para eles, um imobilismo ocular que se traduziria num imobilismo físico e, nesse sentido, um risco para si próprio e para a tribo, presa fácil de predadores e inimigos.
Num raciocínio um pouco lateral, o passado é a única realidade que conhecemos. Em bom rigor não será uma realidade, mas uma leitura da realidade. Não estando a convivência das pessoas ao nível do mensurável e da exactidão, a forma como cada um de nós vê o passado é a forma como cada um de nós vê o passado. Um mesmo tempo será lido como uma alegria ou como uma tristeza por pessoas diferentes, ainda que protagonistas, ambas, do mesmo teatro. Como se resolve essa dualidade que, nalguns casos, pode ser inibidora de consensos? Olhando apenas para o futuro, que é a única massa que cada um de nós pode ainda moldar. Fazer como os membros dessa tribo: olham para o passado para aprender, para o futuro para moldar.
(...)
Ashley Coates Colbert, in The notion of time in Africa - a western look (tradução minha, livre)