A frescura cristalina do testemunho do jovem Tuareg, chamado Moussa Ag Assarid(1), fez furor em França, para onde se transplantou, a fim de prosseguir os estudos. As suas palavras vêm a propósito da aproximação das férias, do tempo de repouso, em que nós, no Ocidente rico e stressado, tentamos fazer uma pausa, procurando que seja pacífica, fecunda, desintoxicante.
Sempre achei o deserto – como todas as grandes paisagens – um espaço inspirador, de horizontes infinitos, que nos transportam para lá do frenesim diário. Lança-nos numa viagem sem fronteiras, onde cabe todo o universo, sobretudo, a alma.
A forma poética de Moussa partilhar a sua experiência é tocante. Porque, subjacente àquela vivência exótica, chega-nos um olhar muito depurado e límpido, capaz de sintonizar com todos… cada um pelas suas razões. Por exemplo, são deliciosas as pequenas considerações dos Tuareg, associando o mundo à cor do céu, o deserto ao reino do silêncio, a solidão à escuta do mundo, onde «ninguém sonha ser, porque cada um já o é».
É também espantoso o modo de Moussa aludir ao legado deixado pela mãe, em tom descomplicado, aparentemente leve, mas incrivelmente rico. Como é espantosa a história do seu entusiasmo pelos estudos, ou as comparações com o mundo ocidental, ou os momentos de felicidade no Sahara…
Vale a pena conhecer a conversa entre Moussa e o jornalista catalão, Victor-M. Amela, gravada há uns anos atrás:
MOUSSA AG ASSARID (M.A.A.) - Não sei a minha idade (c. 1975). Nasci no deserto do Sahara, sem documentos. Nasci num acampamento de nómadas Tuareg, entre Timbuctu e Gao, ao Norte do Mali. Fui pastor de camelos, cabras, cordeiros e vacas do meu pai. Hoje estudo gestão na Universidade de Montpellier. Estou solteiro. Defendo os pastores Tuareg. Sou muçulmano sem fanatismos.
VICTOR-M.AMELA (V.M.A.) - Que turbante lindo!
M.A.A. - É uma fina tela de algodão: permite tapar o rosto no deserto, e continuar a ver e a respirar através dele.
V.M.A. - É de um azul belíssimo!
M.A.A. - Nós, os Tuaregs, somos chamados de homens azuis, por isso; o tecido solta alguma tinta e a nossa pele adquire tons azulados.
M.A.A. - Com uma planta chamada índigo, mesclada com outros pigmentos naturais. Para os Tuaregs, o azul é a cor do mundo.
V.M.A - Porquê?
M.A.A. - É a cor dominante. É a cor do céu, o tecto da nossa casa.
V.M.A - Quem são os Tuaregs?
M.A.A. - Tuareg significa “abandonado”, porque somos um velho povo nómada, do deserto, solitários e orgulhosos: “Senhores do deserto”, é como nos chamam. A nossa etnia é a amasigh (berbere), e o nosso alfabeto, o tifinagh.
V.M.A - Quantos são?
M.A.A. - Uns três milhões, e a maioria permanece nómada. Mas a população diminuiu. “É preciso que um povo desapareça para que saibamos que ele existiu”, apregoava um sábio. Eu luto para preservar este povo.
V.M.A - A que se dedicam?
M.A.A. - Pastoreamos rebanhos de cabras, camelos, cordeiros, vacas e asnos, num reino de imensidão e silêncio.
V.M.A - O deserto é, realmente, silencioso?
M.A.A. - Quando se está sozinho naquele silêncio, ouve-se o batimento do próprio coração. Não há lugar melhor para se estar sozinho.
V.M.A - Que recordações conserva, com mais nitidez, da sua infância?
M.A.A. - Desperto com a luz do sol e ali estão as cabras de meu pai. Dão-nos leite e carne. Levamo-las para onde há água e pasto… Assim fizeram o meu bisavô, o meu avô, o meu pai…. e eu. Não havia outra coisa no mundo para lá disso. E eu era muito feliz assim.
V.M.A - Enfim, não parece muito estimulante …
M.A.A. - Mas é muito! Aos 7 anos já te deixavam afastares-te do acampamento para que aprendesses coisas importantes, como sentir o ar, escutar o mundo, apurar a vista, observar as estrelas, e deixares-te guiar pelo camelo. Se te perdesses, ele levar-te-ia até onde houvesse água.
V.M.A - Saber isso é precioso, sem dúvida …
M.A.A. - Ali tudo é simples e profundo. Existem muito poucas coisas. E cada uma tem um enorme valor!
V.M.A - Então esse mundo e este são muito diferentes?
M.A.A. – Ali, cada pequena coisa proporciona-te felicidade. Cada toque é valorizado. Sentimos uma enorme alegria pelo simples facto de nos tocarmos e estarmos juntos. Ali ninguém sonha chegar a ser, por que cada um já o é.
M.A.A. - Ver as pessoas a correr no aeroporto. No deserto, só se corre quando vem uma tempestade de areia. Assustei-me, é claro!
V.M.A - Iam só buscar as malas …
M.A.A. - Sim! Era isso. Também vi cartazes de mulheres nuas. Perguntei-me porquê tanta falta de respeito para com a mulher? Depois, no Íbis Hotel, vi a primeira torneira da minha vida, vi a água a correr e senti vontade de chorar…
V.M.A - Que abundância! Que desperdício! Não?
M.A.A. - Os meus dias consistiam em procurar água. Quando vejo as fontes ornamentais aqui e acolá, continuo a sentir uma dor tão intensa por dentro…
V.M.A - Tanto assim?
M.A.A. - Sim! No começo dos anos 90 houve uma grande seca. Morreram animais e nós também adoecemos. Eu tinha uns 12 anos quando a minha mãe morreu. Ela era tudo para mim! Contava-me histórias e ensinou-me a contá-las muito bem. Ensinou-me a ser eu próprio!
V.M.A - O que sucedeu à sua família?
M.A.A. - Convenci o meu pai a deixar-me ir à escola. Tinha de caminhar 15km por dia. Até que um professor me arranjou um lugar para dormir e uma senhora me passou a dar alguma comida, quando passava à porta de sua casa. Entendi que esta ajuda vinha da minha mãe.
V.M.A - De onde surgiu esse desejo de estudar?
M.A.A. - Uns dois anos antes tinha passado pelo nosso acampamento o rally Paris-Dakar, e uma jornalista deixou cair um livro da mochila. Apanhei-o e entreguei-lho. Ela deu-mo como presente. Era um exemplar do “Principezinho” e eu prometi a mim mesmo que um dia conseguiria lê-lo.
V.M.A - E conseguiu?
M.A.A. - Foi assim que consegui uma bolsa de estudos para França.
V.M.A - Um Tuareg na Universidade!
M.A.A. - Ah! O que mais sinto falta, aqui, é do leite de camela… E do calor da fogueira e de andar com os pés descalços na areia quente. Lá, nós olhamos as estrelas todas as noites e cada estrela é diferente das outras, assim como cada cabra é diferente. Aqui, à noite, vê-se TV.
V.M.A - Sim ! E o que acha pior, aqui?
M.A.A. - Vocês têm tudo, mas não acham suficiente. Queixam-se sempre. Em França, passam a vida a reclamar! Ficam aprisionados para o resto da vida a uma dívida bancária, num desejo de possuir tudo rapidamente… No deserto não há congestionamentos. Sabe porquê? Porque ali ninguém quer ultrapassar ninguém!
V.M.A - Conte-me um momento de extrema felicidade no seu deserto distante.
M.A.A. - Diariamente, duas horas antes do pôr-do-sol, quando a temperatura começa a baixar, mas ainda não arrefeceu muito, os homens e os animais, lentamente, voltam para o acampamento e os seus perfis ficam recortados no horizonte, sob um céu cor-de-rosa, azul, vermelho, amarelo, verde…
V.M.A - Fascinante , na verdade…
M.A.A. - É um momento mágico. Entramos todos na cabana e pomos o chá ao lume. Sentamo-nos em silêncio a ouvir a ebulição… A calma invade-nos e o nosso coração bate ao ritmo da fervura…
V.M.A - Que paz!
M.A.A. - Aqui (no Ocidente), há relógios. Lá, nós temos tempo!
Que grande conquista, nestas férias, recuperar o tempo. Poder saboreá-lo, com tempo.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Segunda)
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(1) Moussa publicou um livro e tem-se desdobrado em entrevistas a televisões e rádios de todo o mundo:
Link: http://www.dailymotion.com/video/xgkoci_niger-interview-moussa-ag-assarid-ecrivain-touareg_news,
3 comentários:
ESPECTACULAR!!! Mil obgs, MZ! pcp
ESPECTACULAR!!! Mil obgs, MZ! pcp
Este tuareg filósofo, que observa a vida e o Ocidente de forma tão certeira, precisa imenso de ser ouvido entre nós, pelo mundo fora. Todos temos a ganhar com as suas palavras, com a sua maneira de encarar a realidade. MZ
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