29 novembro 2023

Poemas dos dias que correm

 Mãos 

Foi algures sobre a costa nordeste do Brasil,
sobre Fortaleza, uma cidade de qual nada sei, 
exceto que está cheio de gente — 
cada vida é um mistério maior do que a Amazónia — 
foi ali, enquanto o avião de brincar no monitor de voo 
se encostava ao equador 
virando para o oeste em direção a Marraquexe, 
que comecei de novo a pensar em mãos, 
qual estranho as nossas vidas — 
a vida da rapariga francesa ruiva à minha esquerda, 
a vida do rapaz argentino à minha direita, 
a minha vida e as vidas dos passageiros que dormitam, 
levados velozmente pela escuridão 
sobre o Atlântico enegrecido — 
todas essas vidas são agora seguradas pelas mãos do piloto, 
e penso noutras mãos que podem segurar as nossas vidas, 
as mãos do cirurgião 
que vou encontrar de novo quando voltar a casa, 
as mãos da enfermeira inteligente de cabelo preto 
que desenrolou o cordão umbilical do meu pescoço, 
as mãos macias da minha mãe, 
as mãos daqueles outros que me amaram, 
até parecer quase que a vida humana é isto mesmo: 
ser passado de mão em mão, 
ser transportado, incertamente, sobre um oceano.

Moya Cannon 

Tradução de Diana V. Almeida, in Contar (com) a Medicina (Caleidoscópio, 2018) 



28 novembro 2023

Um dia um homem também chora *

A tua guerra, essa luta que travas contra mim, contra todos a quem chamas oponentes, é só tua. Começou, eras menino. Houve uns olhos que te olharam e a denunciaram, um coração em desespero que a partilhou contigo, uma boca que não conseguiu calar a voz amargurada da angústia. Há muitos homens em combate como tu. Que arremessam pedras, disparam tiros e põem bombas durante uma vida inteira. Cegos de raiva. Em toda a esquina topam o inimigo, em cada alma auguram o traidor. Carregam desde meninos a dor de alguém que amaram e que os amou, devolvem-na ao mundo, espalham-na à sua volta, sem nunca duvidarem do que sentem. Erguem o indicador sobre quem estiver à mão, em pequena ou grande falha, ignorando que nesse gesto outros quatro dedos apontam, na sua própria direcção. Não reparam, ocupados que estão na sua douta opinião. “Estarei equivocado?”, é questão que não reclama naquelas mentes. As guerras vêem de longe, sim. Destroem o teu mais intenso amor, a tua paz, a fraternidade que tantas vezes apregoas. Há muito, muito tempo, eras tu tão pequenino, e foi profundamente injusto, insano, inconsequente.

Homens, procurem a origem do vosso inferno. Persigam a razão da vossa guerra. Revejam, tim-tim por tim-tim, o que assistísteis quando meninos. De que misérias fostes vós testemunhas caladas entre os jogos de bola, o caminho da escola, os fins de tarde, as manhãs de sábado, os passeios de domingo, a ida à missa? No vosso quarto, à mesa de jantar, no silêncio aterrador da madrugada? Do que sentistéis, talvez não tereis lembrança. Ou surgirão vagas recordações de uma criança simplesmente amedrontada. Mas ficai certos: dentro de vós, como num papiro milenar, se guardam tais vivências descritas ao milímetro. Têm a forma de terríveis consequências e poder sobre a vossa condição. Desabrocham como ervas daninhas entre as vossas opiniões, acções, reflexões. Toldam o timbre das vozes e manipulam os gestos mais naturais. Homens, não se detenham. Procurai a origem do vosso inferno, a razão de toda a guerra, e voai, sem medo.

DaLheGas

* publicado originalmente a 18 de Julho de 2009

27 novembro 2023

Pensamentos dos dias que correm

Perfeição é Virtude e não Ausência de Defeitos

A virtude é a perfeição no estado de homem e não a ausência de defeitos. Se eu quero construir uma cidade, pego na malandragem e na ralé. O poder há-de nobilitá-las. Ofereço-lhes uma embriaguez, diferente da embriaguez medíocre da rapina, da usura ou da violação. É ver aqueles braços nodosos que edificam. O orgulho vai-se transformando em torres, templos e muralhas. A crueldade torna-se grandeza e rigor na disciplina. E ei-los a servirem uma cidade nascida deles próprios. Trocaram-se por ela no fundo dos corações. E morrerão de pé, nas muralhas, para a salvarem. Só descobrirás neles virtudes resplandecentes.
«Mas tu, que pões má cara diante do poder da terra, diante da grosseria, da podridão e dos vermes dos homens, começas por pedir ao homem que não seja e que não tenha nem sequer cheiro. Reprovas-lhe a expressão da sua força. Instalas capados à frente do império. E eles entram a perseguir o vício, que não passa de poder mal empregado. É o poder e a vida que eles perseguem e, no entanto, tornam-se guardiões de museu e vigiam um império morto»

Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"

26 novembro 2023

Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo

EVANGELHO - Mt 25,31-46

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Quando o Filho do homem vier na sua glória
com todos os seus Anjos,
sentar-Se-á no seu trono glorioso.
Todas as nações se reunirão na sua presença
e Ele separará uns dos outros,
como o pastor separa as ovelhas dos cabritos;
e colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda.
Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita:
'Vinde, bem ditos de meu Pai;
recebei como herança o reino
que vos está preparado desde a criação do mundo.
Porque tive fome e destes-Me de comer;
tive sede e destes-me de beber;
era peregrino e Me recolhestes;
não tinha roupa e Me vestistes;
estive doente e viestes visitar-Me;
estava na prisão e fostes ver-Me'.
Então os justos Lhe dirão:
'Senhor, quando é que Te vimos com fome
e Te demos de comer,
ou com sede e Te demos de beber?
Quando é que Te vimos peregrino e te recolhemos,
ou sem roupa e Te vestimos?
Quando é que Te vimos doente ou na prisão e Te fomos ver?'
E o Rei lhes responderá:
'Em verdade vos digo: Quantas vezes o fizestes
a um dos meus irmãos mais pequeninos,
a Mim o fizestes'.
Dirá então aos que estiverem à sua esquerda:
'Afastai-vos de Mim, malditos, para o fogo eterno,
preparado para o demónio e os seus anjos.
Porque tive fome e não Me destes de comer;
tive sede e não Me destes de beber;
era peregrino e não Me recolhestes;
estava sem roupa e não Me vestistes;
estive doente e na prisão e não Me fostes visitar'.
Então também eles Lhe hão-de perguntar:
'Senhor, quando é que Te vimos com fome ou com sede,
peregrino ou sem roupa, doente ou na prisão,
e não Te prestámos assistência?'
E Ele lhes responderá:
'Em verdade vos digo: Quantas vezes o deixastes de fazer
a um dos meus irmãos mais pequeninos,
também a Mim o deixastes de fazer'.
Estes irão para o suplício eterno
e os justos para a vida eterna».


24 novembro 2023

Dos registos de viagem

Tenho algures, cá por casa, umas pequenas folhas de papel que constituem uma espécie de crónica de viagem em formato interrail. Datam, talvez, de 1982. Infelizmente perdi-lhes o rasto, mas, mais do que saber o que lá está em detalhe, sei o tipo de informações que lá está: sensações, descrições, opiniões, principais actividades durante os dias. Para além de saber onde estava no dia X, sei o que achava sobre o sítio onde estava no dia X. São folhinhas curtas, pequenas, quase telegráficas. Mas revelam opiniões, nomeadamente que Munique não me entusiasmou. 

Há uns meses, o JdC almoçou comigo. Falámos de viagens de passado, de histórias, e ele cedeu-me a sua crónica de viagem sobre a nossa ida (juntamente com o fq) a Nova Iorque, em Agosto de 1981. Não me lembro de alguma vez ter visto este relato de uma viagem, pelo que não fui influenciado pelo estilo.

A crónica de JdC, escrita numa caligrafia que se manteve igual ao longo de décadas, refere-se a uma estadia de 16 dias (não me lembrava de ter sido tão longa - 24 de Agosto a 8 de Setembro) e ocupa o equivalente a uma página A4. Reproduzo o que se refere ao dia 25 de Agosto para ilustrar o argumento:

- Mudança para o YMCA (quarto 1107 - 10 dólares por noite)
- Pequeno almoço no Squires
- Almoço no McDonald's
- Passeio e visita ao Macy's
- Jantar na Cabana Carioca. 

As outras 15 entradas são basicamente iguais. Há uma referência com um teor diferente, mas que não foge do registo informação, ambas do dia 4 de Setembro.:

- Almoço no Right Bank (onde já tínhamos ido mais vezes) a menina já diz Hey.
- João meteu conversa com uma sueca.

Podemos ler o meu registo de viagem e o registo de viagem do JdC. Tínhamos basicamente a mesma idade quando escrevemos as nossas crónicas, pelo que não há a influência da escola da vida, e não tínhamos experiência de escrita para desenvolver um estilo próprio. Não sei se há diferença na forma como ambos olhámos para o Central Park, para o Rockefeller Center ou para o MOMA. Talvez a diferença seja na forma como nos referimos àquilo que vimos. Ou talvez não, sei lá eu...

JdB 

23 novembro 2023

Textos dos dias que correm

Presos ao Passado

Num romance que estou escrevendo há uma personagem a quem perguntam: «E onde irás ser sepultado?» E ela responde: «A minha sepultura maior não mora no futuro. A minha cova é o meu passado.»
De facto, cada um de nós corre o risco de ficar sepultado no seu próprio passado. Todos temos de resistir para não ficarmos aprisionados numa memória simplificada que é o retrato que outros fizeram de nós. Todos trazemos escrito um livro e esse texto quer-se impor como nossa nascente e como nosso destino. Se existe uma guerra em cada um de nós é a de nos opormos a esse fado de estarmos condenados a uma única e previsível narrativa.


Mia Couto, in 'E Se Obama Fosse Africano?'

***
Eu, Mwanito, o afinador de silêncios 

A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez. 
Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.

Mia Couto, in 'Jesusalém'

22 novembro 2023

Vai um gin do Peter’s ?

UMA SEMANA CHEIA DE BONS PROGRAMAS

Nesta Segunda, decorreu mais uma das entrevistas da decana do jornalismo – Maria João Avillez – com gente nova, ativa no espaço público, para partilharem a sua visão do mundo e a forma como a fé influencia a sua vida profissional e as relações humanas. No meio das vivências pessoais de cada um, deparamo-nos com observações interpelativas sobre modos originais de olhar e de interagir com a realidade (e há tantas opções, segundo o critério e as escolhas de quem observa), tecida de pequenos acontecimentos, que parecem carregados de significado que o próprio ajuda a interpretar. 

As três entrevistas já decorridas estão disponíveis no portal da Capela do Rato (https://www.capeladorato.org/), nesta sequência de datas do ciclo «E Deus em nós?...»: a 1ª - a 8.NOV. - Sebastião Bugalho contou peripécias interessantes que viveu e uma profusão de experiências curiosas, como a de ter sido taxado de “direita” por aparecer de camisa branca; a 2ª - a 15.NOV., houve um mano-a-mano entre dois importantes organizadores das JMJ - Matilde Trocado e David Alves (da CML); a 3ª - a 20.NOV. foi a vez do maestro Martim Sousa Tavares partilhar a sua experiência.  

Hoje, às 19h00, na Biblioteca de Alcântara, terá lugar o «Recital Didático», que integra o ‘Festival nas freguesias’.  À guitarra, António Jorge Gonçalves interpretará 

Villa-Lobos, Tárrega, Malats e Pujol. O programa repete-se a 30 de Novembro, no Palácio da Mitra, às 18.00h. Nota – são concertos de entrada é livre. 

Seguem mais sugestões de concertos, que animam a temporada, até 9 de Dezembro, vários já com sabor a Natal e a maioria de entrada livre, como indicado caso-a-caso:

24. NOV. - no Auditório da Academia das Ciências de Lisboa | 21.00h
Concerto pela Paz
Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras

Nikolay Lalov, maestro
Antonii Baryshevskyi, piano
Bakalov / Muffat | Silvestrov * | Vasks * | Skoryk
* Estreia em Portugal
Bilheteira: Ticketline.sapo.pt 

25.NOV. – na Igreja da Madre de Deus | 17.30
Portugal no Renascimento Europeu
Colóquio - Concerto
Cupertinos

Luis Toscano, direcção
Francisco d’Holanda e Michelangelo
Renascimento português e italiano
Magalhães | Garro | Bruceña | Palestrina
Lusitano | Diniz *
* Estreia absoluta | Encomenda do 49º FEL
Entrada livre 

29.NOV. – na Igreja da Madre de Deus | 17.30h 
Portugal no Renascimento Europeu
Colóquio - Concerto
Vocal Ensemble

Vasco Negreiros, direcção
Homenagem a Damião de Góis 
Gareanus | Gois | Lusitano | Escobar | Cardoso
Vicentino | Caldas*
* Estreia absoluta | Encomenda do 49º FEL
Entrada livre 

06.DEZ. - na Igreja da Madre de Deus | 17.30h 
Festival nas freguesias
Coro de Câmara da ESML

Paulo Lourenço, direcção
O Romantismo alemão
Brahms | Schubert | Bruckner 

07.DEZ. – na Igreja da Madre de Deus | 17.30h 
Festival nas freguesias
Coro de Câmara da ESML

Paulo Lourenço, direcção
O Romantismo alemão
Brahms 

09.DEZ. – na Igreja de São Vicente de Fora | 17.00h 
Luc Ponet, órgão
Música de Natal da Flandres e de Liège

Born | Luython | Tongeren | Leodiensium
Ronotte | Fiocco | Froidebise
Entrada livre 

09.DEZ. – na Basílica da Estrela | 16.00h
Orquestra Sinfónica Metropolitana
Michael Zilm, maestro
O Romantismo alemão
Bruckner 
Entrada livre.

Já abriu ao público a exposição «O Tesouro dos Reis. Obras-primas do Terra Sancta Museum», tema do “gin” de 25 de Maio. A mostra vinda da Terra Santa estará patente, até 26 de Fevereiro de 2024, na galeria principal da Gulbenkian (nota – encerra às terças).

Na próxima Sexta, às 19h00, a Fundação Calouste Gulkenbian passará, em sinal aberto nas suas plataformas digitais (https://gulbenkian.pt/musica/agenda/2-a-de-mahler-3/), o concerto onde será interpretada a Sinfonia da Ressurreição (a segunda) de Mahler e uma peça de Lygeti – «Atmosphères», sob a direção do maestro finlandês Hannu Linto. Segundo explica a folha de sala: 

PROGRAMA DO CONCERTO GULBENKIAN de 23 e de 24.NOV.
Gustav Mahler
(Kalischt, 1860 – Viena, 1911)
Sinfonia n.º 2, em Dó menor, “Ressurreição”

COMPOSIÇÃO 1888-1894/1903
ESTREIA Berlim, 13 de dezembro de 1895
DURAÇÃO c. 1h 24 min.

Os 5 andamentos: 
    I. Allegro maestoso
    2. Andante moderato
    3. In ruhig fließender Bewegung
       (Andamento tranquilo e fluido)
    4. Urlicht: Sehr feierlich, aber schlicht
        (Luz primordial: Muito solene, mas simples)
    5. Im Tempo des Scherzos
       (No tempo de um Scherzo)

«Em 1888, numa altura em que ainda trabalhava para concluir a sua Sinfonia n.º 1, Gustav Mahler compôs um poema sinfónico, Totenfeier, que dizia representar as cerimónias fúnebres em homenagem ao herói evocado naquela obra, cuja morte levantara todo um conjunto de questões existenciais. Indeciso sobre o rumo a dar a essa peça, decidiu finalmente incluí-la numa nova sinfonia, compondo os restantes andamentos entre 1893 e 1894. 

O processo de composição da obra parece ter estado em grande parte dependente de uma conceptualização narrativa da sua estrutura. Com efeito, o próprio compositor concebeu diversas versões de um programa narrativo para a sinfonia, sugerindo nomeadamente uma progressão desde um estado de ansiedade aparentemente insolúvel, até que a tensão é finalmente resolvida, numa reinterpretação da mitologia judaico-cristã, no momento do apocalipse e subsequente redenção (de onde terá derivado o título “Ressurreição”, atribuído a posteriori)

A Sinfonia n.º 2, para soprano e contralto solistas, coro e orquestra, seria assim estreada em 1895, em Berlim, sob a direção de Mahler, mas alcançaria uma popularidade alargada apenas na versão revista de 1903, na sequência do sucesso obtido com a estreia da Sinfonia n.º 3, em 1902, que aliás fora planeada enquanto uma sequela ambiciosa para a sua antecedente, tendo constituído o primeiro grande êxito público de Mahler enquanto compositor sinfónico.

A obra inicia-se com um Allegro maestoso que, de acordo com o programa delineado pelo compositor, constitui uma meditação exasperada sobre a condição mortal do ser humano. Aludindo em diversos aspetos ao andamento lento da Eroica de Beethoven (…).

Segue-se um Andante moderato – cujo material temático remontará ainda a 1888 – que intencionalmente contrasta a vários níveis com o andamento precedente. Na intenção de sugerir uma inocente e nostálgica visão retrospetiva da bem-aventurada juventude do herói, o andamento foi composto à maneira de um suave Ländler, em Lá bemol maior, projetando um ambiente bucólico de um lirismo sofisticado que em dois momentos é sujeito às inquietantes intromissões da ideia de morte. (…)  (S)endo permeado por elementos energéticos do scherzo beethoveniano, apresenta uma reformulação sinfónica de material usado na canção Des Antonius von Padua Fischpredigt (“O sermão de Santo António de Pádua aos peixes”), composta em 1893 sobre textos de Des Knaben Wunderhorn. Dedicada às tentativas infrutíferas de Santo António de pregar a moral cristã aos peixes indiferentes, a canção é neste andamento associada à ideia de alienação subjetiva do protagonista em relação à sociedade convencional, tomando, desta feita, a forma de uma valsa sardónica que evoca de modo brilhante o cinismo do texto.

No quarto andamento (Urlicht: Sehr feierlich, aber schlicht) o compositor abandona o tom humorístico para, na tonalidade distante de Ré bemol maior, evocar o desejo de libertação das aflições mundanas rumo à divindade, recorrendo para esse efeito à canção Urlicht, que havia composto também em 1893 sobre textos de Des Knaben Wunderhorn. Desta feita, cabe ao contralto solista protagonizar uma piedosa enunciação de fé, em linhas de uma expressividade mais cromática e quase erótica. A simplicidade deste momento é, paradoxalmente, produzida através de uma acentuada complexidade métrica (derivada de uma atenção extrema à prosódia), bem como de uma orquestração bastante detalhada e inventiva, como se de música de câmara se tratasse. 

Por fim, o andamento final (Im Tempo des Scherzos) está construído em duas grandes secções. Numa primeira parte instrumental em forma sonata, em torno de Fá menor, uma introdução expansiva recupera o ambiente fúnebre do início da sinfonia, assombrado agora pelo tema do Dies irae, após o que sobrevém uma grandiosa marcha orquestral, programaticamente interpretada durante a procissão para o Juízo Final, a qual culmina no momento em que à distância soa a última trombeta do apocalipse. Inicia-se então uma segunda parte, espécie de grande cantata sinfónica, em que o julgamento é revertido em redenção: em Sol bemol maior, o coro murmura, praticamente no limite da audibilidade, duas estrofes do hino Die Auferstehung (“A Ressurreição”), de G. F. Klopstock, emergindo dessas sonoridades corais o arrebatador dueto do soprano e do contralto, que elaboram as suas linhas solísticas sobre versos do próprio Mahler. Um grande crescendo conduz a uma peroração de júbilo, em Mi bemol maior, na qual o compositor faz uso da totalidade das forças corais e orquestrais ao seu dispor na projeção de uma esperança fervorosa numa renovação transcendente.»

No MNAA (Arte Antiga) continua exposto, até 7 de Janeiro de 2024, o tríptico magnífico da colecção Gaudium Magnum, de Maria e João Cortez de Lobão, pintado pelo florentino Ventura di Moro (1395-1486), onde sobressai a delicadeza do traço muito clássico, que faz transbordar de ternura a figura maternal da Virgem com o Menino. 

«Virgem com o Menino entre os Santos Judas Tadeu, Simão, Antão e Leonardo», c. 1430-1435, Têmpera e ouro sobre madeira de choupo, 105,5 × 41 cm (painel central), c. 93,5 × 49,5 cm (painéis laterais).  Por percalços da história, só tardiamente veio a ser reconhecida a autoria de Ventura di Moro, confundido com um outro florentino – Ambrogio di Baldese (1352-1429) – seu contemporâneo 

No Convento dos Cardaes (rua do Século, nº 123, na esquina com a rua da Academia de Ciências) já começou o Chá de Natal Solidário (https://www.conventodoscardaes.com/natalsolidario), com chocolate quente, chás e tisanas, para acompanhar scones e bolos deliciosos, que ajudam a manter aquela casa tão antiga, onde doentes cegas e diminuídas vivem ao cuidado das Irmãs que lhes devotaram a vida. Até 17 de Dezembro, o Chá funcionará a pleno vapor, permitindo reservas para os mais organizados, que queiram levar amigos:  natalsolidario@conventodoscardaes.com

As beneficiadas do Chá solidário. 

À esq. – o claustro do piso superior do Convento do séc.XVII, que sobreviveu ao terramoto.
À dta. - as arcadas do claustro do piso térreo. 

Na contagem decrescente para o Natal, Lisboa fica especialmente fervilhante, repleta de programas interessantes. Exige muita flexibilidade de agenda para acompanhar tantas sugestões imperdíveis e até úteis a quem mais precisa. É um tempo de luxo, ainda por cima sob o sol manso do Outono português. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

20 novembro 2023

Da voz *

 Jorge cuidava-se. Não usava bálsamos pré ou pós barba, não exigia champôs especiais ou cremes que retardassem as rugas e rejuvenescessem a pele. E no entanto, cuidava-se. Lia amiúde, mas, sempre que possível, na língua original: ia a um ensaio académico, a um haiku bem traduzido, aos clássicos franceses, aos realistas portugueses, à poesia experimentalista. Não se podia inferir daqui falta de critério, mas cuidado, apenas, com a língua. Jorge privilegiava, acima de tudo, a arte de bem falar, que era a arma com que encantava as mulheres. Para todas tinha um galanteio educado, uma graçola de oportunidade, uma tirada a propósito. Dizia uma linha de um verso, uma ideia de um estudo científico, uma sextilha popular ou uma citação em francês. As mulheres derretiam-se, porque aliada à erudição havia uma voz bem colocada, radiofónica, potente sem ser metálica, doce sem ser lamechas. 

Jorge viveu assim anos a fio. Solteiro, fez da conquista decente e educada o seu hobby. Havia quem não cozinhasse gaspacho com tomate pelado; havia quem não colocasse caldos de legumes para intensificar o sabor. Jorge não perturbava casamentos, namoros, compromissos sérios. Respeitava idades mínimas e máximas e, se tivesse dificuldade em galantear senhoras com dificuldades auditivas, isso assentava na ideia de que as armas dele não tinham validade naquele terreno: como se cita um soneto a quem não o ouve, ou está sempre a inquirir "como?"; como fazer rir uma senhora que tomba a cabeça em permanência na procura de uma onda sonora que lhe penetre o ouvido da melhor forma...

Um dia, Jorge foi ao médico. Na semana seguinte era operado de urgência, um mês depois perdia por completo as capacidades vocais. Deitado na cama de um hospital, com um caderno ao lado e de olhos fitos numa parede onde o olhar dele não parava porque se estendia até ao infinito onde residem todas as nossas dúvidas, Jorge pensou na vida, nas senhoras, na métrica do fado ou na não métrica dos ingleses, em Flaubert, em Eça, em Walt Whitman ou nos russos. Pensou na conquista, na sua arma infalível que agora era obsoleta, inútil, desajustada. Pensou na voz que se esvaíra e, com isso, a parte mais substantiva da sua cadeia de valor. Como explicar, com um caderninho na mão, que a sua voz era assim, a entoação era assado, a projecção era cozido? Como conquistar terreno alheio sem a password que abre todas as portas, que facilita todas as entradas?

Jorge sorriu e, nesse mesmo instante, o seu olhar deteve-se na parede em frente, naquele ponto fixo, porém imaterial, onde assentam as nossas certezas, as nossas convicções, os nossos propósitos de curto prazo, os nossos desejos que se cumprem já já. Uma semana depois, ainda em convalescença, receberia a visita de Goreti, manicura jovem, solteira, vagamente estrábica e ruiva, com valência de voluntariado naquele hospital. Jorge, o homem para quem a voz tinha sido tudo e passara a ser apenas uma saudade, estendeu-lhe as duas mãos e sorriu. Uma hora depois, num fim de tarde modorrento de fim de Verão, ecoaria pelos corredores do hospital uma frase quase gritada, quase estremecida, quase indignada, quase satisfeita: senhor Jorge, senhor Jorge, veja lá onde põe as mãos.

Jorge olhou para as duas mãos com um vagar interessado. Aqueles alexandrinos eram bons, mas talvez prematuros... 

JdB

* publicado originalmente a 9 de Março de 2017

19 novembro 2023

XXXIII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mt 25,14-30

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Disse Jesus aos seus discípulos a seguinte parábola:
«Um homem, ao partir de viagem,
chamou os seus servos e confiou-lhes os seus bens.
A um entregou cinco talentos, a outro dois e a outro um,
conforme a capacidade de cada qual; e depois partiu.
O que tinha recebido cinco talentos
fê-los render e ganhou outros cinco.
Do mesmo modo,
o que recebera dois talentos ganhou outros dois.
Mas, o que recebera dois talentos ganhou outros dois.
Mas, o que recebera um só talento
foi escavar na terra e escondeu o dinheiro do seu senhor.
Muito tempo depois, chegou o senhor daqueles servos
e foi ajustar contas com eles.
O que recebera cinco talentos aproximou-se
e apresentou outros cinco, dizendo:
'Senhor, confiaste-me cinco talentos:
aqui estão outros cinco que eu ganhei'.
Respondeu-lhe o senhor: 'Muito bem, servo bom e fiel.
Porque foste fiel em coisas pequenas, confiar-te-ei as grandes.
Vem tomar parte na alegria do teu senhor'.
Aproximou-se também o que recebera dois talentos e disse:
'Senhor, confiaste-me dois talentos:
aqui estão outros dois que eu ganhei'.
Respondeu-lhe o senhor: 'Muito bem, servo bom e fiel.
Porque foste fiel em coisas pequenas, confiar-te-ei as grandes.
Vem tomar parte na alegria do teu senhor'.
Aproximou-se também o que recebera um só talento e disse:
'Senhor, eu sabia que és um homem severo,
que colhes onde não semeaste e recolhes onde nada lançaste.
Por isso, tive medo e escondi o teu talento na terra.
Aqui tens o que te pertence'.
O senhor respondeu-lhe: 'Servo mau e preguiçoso,
sabias que ceifo onde não semeei e recolho onde nada lancei;
devias, portanto, depositar no banco o meu dinheiro
e eu teria, ao voltar, recebido com juro o que era meu.
Tirai-lhe então o talento e dai-o àquele que tem dez.
Porque, a todo aquele que tem,
dar-se-á mais e terá em abundância;
mas, àquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado.
Quanto ao servo inútil, lançai-o às trevas exteriores.
Aí haverá choro e ranger de dentes'».

17 novembro 2023

Poemas dos dias que correm

 Simpatia em branco maior

Quando atiro quatro cubos de gelo
Tilintando para um copo, e acrescento
Três doses de gin, limão em rodela,
Mais um quarto de tónica, que verto
Espumando até que afogue, jorro a jorro,
Tudo o resto, até às bordas do copo,
Ergo a bebida no silêncio de um voto:
Ele dedicou a sua vida aos outros.

Enquanto outros usavam como roupas
Os seres humanos no seu dia-a-dia
Eu empenhei-me em mostrar, a quem me cria
Capaz de o fazer, as montras perdidas;
Não resultou, com eles ou comigo,
Mas todos assim ficaram mais próximos
(Ou tal se pensou) de todo o imbróglio
Do que se o perdêssemos cada um por si.

Boa pessoa, um fulano às direitas,
Sempre na linha, um tipo impecável,
Um ás, o máximo, um gajo porreiro,
Não lhe chegavam nem aos calcanhares;
Que chata teria sido esta vida
Se ele não tivesse andado por cá;
Um brinde, que alma mais branca não há! 
Não sendo embora o branco a minha cor preferida.   


philip larkin
inimigo rumor/15
trad. rui carvalho homem
cotovia
2003

***

tristes passos

Tropeçando de volta à cama depois de uma mija
Afasto as grossas cortinas e surpreendo-me
Com as nuvens que correm, com a lua tão limpa.

Quatro da manhã: jardins de sombras oblíquas, jazendo
Sob um céu cavernoso e rasgado pelo vento.
Há nisto uma faceta ridícula,

Na lua a lançar-se através de nuvens fugazes
E soltas como fumo de canhão, para logo se apartar
(A luz pétrea aguçando, cá em baixo, os telhados)

Alta e soberba e separada –
Pastilha de amor! Medalhão de arte!
Ó lobos da memória! Imensidões! É certo,

Há um leve arrepio, quando se olha para o alto.
A dureza e a claridade e o alcance,
A singularidade de tão vasto e fixo olhar

É lembrança da força e da dor
De ser jovem; do que não se pode ter de novo,
Mas que é vivido por outros, em pleno, nalgum lugar.

philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004

16 novembro 2023

Textos dos dias que correm

Quanto mais se ama mais fraco se é 
Nas relações amorosas o único sentimento que não funciona é o da piedade. Quando é o caso de que se devesse manifestar, o que surge não é a piedade mas o asco ou a irritação. Eis porque em relação alguma se é tão cruel. Todos os sentimentos têm o seu contraponto. Excluída a piedade, a crueldade não o tem. Por experiência se pode saber quanto se sofre quando não se é amado. Mas isso de nada vale quando se não ama quem nos ama: é-se de pedra e implacável. Decerto, tudo se pode pedir e obter. Excepto que nos amem, porque nenhum sentir depende da nossa vontade. Mas só no amor se é intolerante e cruel. Porque mostar amor a quem nos não ama rebaixa-nos a um nível de degradação. E a degradação só nos dá lástima e repulsa. A única possibilidade de se ser amado por quem nos não ama é parecer que se não ama. Então não se desce e assim o outro não sobe. E então, porque não sobe, ele tem menos apreço por si, ou seja, mais apreço pelo amante. O jogo do amor é um jogo de forças. Quanto mais se ama mais fraco se é. E em todas as situações a compaixão tem um limite. Abaixo de um certo grau a compaixão acaba e a repugnância começa. Assim, quanto mais se ama mais se baixa na escala para quem ao amor não corresponde.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 3' 

14 novembro 2023

Poemas dos dias que correm

 Osso 

Aprendi na escola que o coração é um músculo.
Carne, no fundo. Não queria acreditar, 
pois sempre pensei que o coração 
fosse feito de pensamentos. 
Ou até recordações. Poderia inclusive acreditar 
que é feito de fotografias antigas 
ou de bolachas ou de um passo de dança 
ou de uma daquelas tardes que duas pessoas acendem 
quando dizem duas palavras ao mesmo tempo. 
Porém, talvez não faça sentido, 
isso de o coração ser feito de carne. 
Explica muita coisa. 
Alguns corações, tenho certeza, 
até terão osso. 

Afonso Cruz 

13 novembro 2023

Bem-aventurados os que têm fome...*

 Fulano provinha de tudo: nascera numa terra que ficava entre os polos norte e sul, onde o sol se levantava e punha a desoras, onde as estações do ano se não regiam por critérios previstos, onde as rotinas mansas das marés se alteravam ao sabor de um capricho.


Fulano fazia de tudo: era dono de um companhia que se dedicava a tudo e a nada, que vivia de expedientes lucrativos, onde se vendia e comprava sem a regra lógica aprendida nos livros da especialidade, que era uma espécie de negócio branco, porque era o somatório de todos os negócios. Tinha dois sócios, Beltrano e Sicrano, contribuindo cada um com a sua área de competência para o engrandecimento da empresa.

Fulano tinha tudo: anéis de rubis e colares de diamantes que distribuía amiúde pelas namoradas; mordomos que circulavam com uma leveza de fantasma pela casa de duzentas e cinquenta e sete assoalhadas e que lhe ofereciam surpresa à mesa das refeições: faisões recheados com ervas raras, codornizes no seu ninho, peixes invisíveis pescados a horas certas em luas novas de Inverno, ovos de galinha alimentadas a estudos de Chopin e cantatas de Bach, crustáceos com cascas brilhantes e cores raras, sopas de legumes extintos aromatizadas com especiarias longínquas.

Fulano conhecia tudo: os desertos profundos da Mongólia, as praias raras da Polinésia, os vulcões da Islândia, a estepes russas, os museus do mundo onde os artistas plásticos expunham as obras que eram filhas de criatividade e da loucura, os escritores das academias, os pintores das belas artes, os músicos das emoções, os poetas dos sentimentos.

Fulano, no fundo, vivia tudo - e de tudo - numa imensa felicidade.

Um dia, a uma hora imprecisa - e num dia ainda mais incerto - os telexes, os faxes, os sms, as mensagens de correio electrónico, os telefonemas, as vídeo conferências, os sinais de fumo ou batuques, convergiram para um ponto específico do universo, que era onde estava Fulano, onde vivia Fulano, onde respirava Fulano. As notícias eram certas: um tsunami num país do interior, um vulcão numa planície desértica, uma chuvada onde se desconhecia a expressão água, um vendaval onde nunca uma brisa soprara.

No dia seguinte, Fulano não tinha nada: nem rubis, nem faisões, nem polinésias, nem museus, nem poetas, nem mordomos a flutuarem por cima do mármore raro, nem peixes pescados com linha de seda fina. Tudo se esvaíra num sopro, num golpe de asa, numa gota de água, numa cinza vulcânica que tombara na demonstração de resultados.

No dia seguinte ao seguinte - ou talvez fosse ao outro seguinte -, Fulano viu-se em frente à imensidão do nada, à totalidade do vazio, à vastidão da coisa nenhuma. Rodopiou pela única sala que lhe sobrava fechando os braços, a mente formatada ainda para a assoalhada que estivera cheia de tapetes raros, quadros imortais, fotografias do sucesso e do mundo. Foi abrindo os braços temendo a angústia do embate, até perceber que os seus membros fendiam o ar onde só existia uma mistura em doses alquimistas de gases raros e outras poeiras.

Fulano, o homem que provinha de tudo, tinha de tudo, fazia de tudo e tudo conhecia fechou os olhos e imobilizou-se no eixo da terra, segurando nas mãos o relógio que cronometrava o mundo, afagando o motor que permitia a rotação e a translação numa ordem austera. Sentia-se finalmente saciado.

JdB

* publicado originalmente a 30 de Maio de 2010

12 novembro 2023

XXXII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 25,1-13

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Disse Jesus aos seus discípulos a seguinte parábola:
«O reino dos Céus pode comparar-se a dez virgens,
que, tomando as suas lâmpadas, foram a
o encontro do esposo.
Cinco eram insensatas e cinco eram prudentes.
As insensatas, ao tomarem as suas lâmpadas,
não levaram azeite consigo,
enquanto as prudentes,
com as lâmpadas, levaram azeite nas almotolias.
Como o esposo se demorava,
começaram todas a dormitar e adormeceram.
No meio da noite ouviu-se um brado:
'Aí vem o esposo; ide ao seu encontro'.
Então, as virgens levantaram-se todas
e começaram a preparar as lâmpadas.
As insensatas disseram às prudentes:
'Dai-nos do vosso azeite,
que as nossas lâmpadas estão a apagar-se'.
Mas as prudentes responderam:
'Talvez não chegue para nós e para vós.
Ide antes comprá-lo aos vendedores'.
Mas, enquanto foram comprá-lo, chegou o esposo.
As que estavam preparadas
entraram com ele para o banquete nupcial;
e a porta fechou-se.
Mais tarde, chegaram também as outras virgens e disseram:
'Senhor, senhor, abre-nos a porta'.
Mas ele respondeu:
'Em verdade vos digo: Não vos conheço'.
Portanto, vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora.

10 novembro 2023

Poemas dos dias que correm

When I am in doubt
When I am in doubt
I talk to surgeons.
I know they will know what to do.
They seem so sure.
Once I talked to a surgeon.
He said that when he is in doubt
He talks to priests.
Priests will know what to do.
Priests seem so sure.
Once I talked to a priest.
He said that when he is in doubt
He talks to God.
God will know what to do.
God seems so sure.
Once I talked to God.
He said that when he is in doubt
He thinks of me.
He says I will know what to do.
I seem so sure.

Glenn Colquhoun

09 novembro 2023

Pensamentos dos dias que correm

A Vergonha e a Injustiça Não Existem na Natureza

A vergonha não existe na natureza. Os animais sabem a lei: a força, a força, a força. Quem é fraco cai e faz o que o forte quer. A inundação, as chuvas, o mamífero mais pesado e mais rápido e o mamífero pequeno. Os primatas, os répteis, os peixes maiores e os mais minúsculos, a cascata: já viste algum animal cair?, não há a mais breve compaixão entre os animais e a água, o mar engoliu milhares e milhares de cães desde o início do mundo. Não há a mais breve compaixão entre a água e as plantas, entre a terra que desaba e os pequenos animais acabados de nascer. A natureza avança com o que é forte e a cidade avança com o que é forte: qual a dúvida? Queres o quê?
Não há animais injustos, não sejas imbecil. Não há inundações injustas ou desabamentos da maldade. A injustiça não faz parte dos elementos da natureza, um cão sim, e uma árvore e a água enorme, mas a injustiça não. Se a injustiça se fizesse organismo: coisa que pode morrer, então, sim, faria parte da natureza.

Gonçalo M. Tavares, in "Um Homem: Klaus Klump"

08 novembro 2023

Vai um gin do Peter’s ? 

 HAVERÁ ARMAS DE PAZ PARA CALAR OS CANHÕES?...

Em 2016, o realizador de cinema, argumentista e empresário artístico israelita Or Taicher concebeu um projeto coral ecuménico, apostado no poder da música para congregar vozes desavindas. Assim deu corpo ao grupo Koolulam, onde cantam judeus, muçulmanos, cristãos e gentes de outros credos e etnias. Depois de reunir um público maximamente diverso, Taicher propõem-lhes um tempo de ensaio para conseguirem depois cantar em conjunto. A ária mais interpretada tem sido «ONE DAY», quer pela simplicidade rítmica, quer pela força ecuménica da letra, que tem ressonâncias óbvias com o célebre discurso de Luther King «I have a dream that one day…». Uma das interpretações famosas decorreu na terceira maior metrópole israelita, onde 10% da população é árabe – Haifa. Era o célebre dia de S.Valentim, naquele 14 de Fevereiro de 2018, que juntou três mil desconhecidos, que se dispuseram a uma hora de ensaio para chegarem a este resultado musical e multilinguístico, que ressoa como uma oração ecuménica:   


«ONE DAY

One day, one day, one day

Sometimes I lay under the moon
And thank God I'm breathin'
Then I pray, "Don't take me soon
'Cause I am here for a reason"

Sometimes in my tears I drown
But I never let it get me down
So when negativity surrounds
I know someday, it'll all turn around because

All my life, I've been waitin' for
I've been prayin' for, for the people to say
That we don't wanna fight no more
There'll be no more wars, and our children will play

One day (one day), one day (one day)
One day (oh-oh-oh)
One day (one day), one day (one day)
One day (oh-oh-oh)

It's not about win or lose
'Cause we all lose when they feed on the souls of the innocent
Blood-drenched pavement
Keep on movin' though the waters stay ragin'

In this maze, you can lose your way, your way
It might drive you crazy
But don't let it faze you, no way, no way

Sometimes in my tears I drown (I drown)
But I never let it get me down (get me down)
So when negativity surrounds (surrounds)
I know someday, it'll all turn around because

All my life, I've been waitin' for (waitin' for)
I've been prayin' for (prayin' for), for the people to say
That we don't wanna fight no more (fight no more)
There'll be no more wars (no more wars), and our children will play

One day (one day), one day (one day)
One day (oh, oh, oh, oh-oh-oh, one day)
One day (one day), one day (one day)
One day (oh-oh-oh)
One day, this all will change, treat people the same

Stop with the violence, down with the hate
One day, we'll all be free and proud to be
Under the same sun, singin' songs of freedom like

Wah-yo (one day, one day), wah-yo, oh, oh (oh-oh-oh)
Wah-yo (one day, one day), wah-yo, oh, oh (oh-oh-oh)

All my life, I've been waitin' for
I've been prayin' for, for the people to say
That we don't wanna fight no more
There'll be no more wars, and our children will play

One day (one day), one day (one day)
One day (oh-oh-oh)
One day (one day), one day (one day)
One day (oh-oh-oh)
One day, one day, one day»

Autores: Bruno Mars / Ari Levine / Matthew Miller / 
/ Philip Martin Ii Lawrence

Também na música clássica, algumas vozes de paz se têm erguido, sobressaindo o grande maestro judeu Daniel Barenboim, que criou a West-Eastern Divan Orchestra com o seu amigo palestiniano – o crítico literário e activista político Edward Said (1935-2003). Corria o ano de 1999 e a intenção era constituir um corpo orquestral formado por judeus e árabes. A estreia musical teve lugar em 2009, pelo que Said não pôde assistir ao concerto regido por Barenboim, no Cairo. Em duas décadas, a Divan Orchestra tem vindo a somar sucessos, já sendo considerada das melhores orquestras do mundo. Todos os Verões, com excepção dos dois anos de pandemia, os músicos reúnem-se com o maestro para treinarem e preparar as actuações da temporada seguinte: 


Reflectindo com o músico talentoso e de grande estatura humana que é Daniel Barenboim, percebemos quanto a música tem uma capacidade regeneradora incalculável, embora sem se substituir ao papel dos políticos-diplomatas e até dos generais que intervêm em legítima defesa. Segundo o maestro, uma das lições da música provém da sua condição natural assente no contraponto, na constante necessidade de diálogo harmonioso, que não esbate as individualidades, antes a orquestra para se atingir um conjunto polifónico rico, porque transbordante de pluralismo. Era o segredo aplicado ao continente europeu pelo magno mestre da História, o Prof. Jorges Borges de Macedo, considerando que o ponto de equilíbrio da Europa dependia de ser reconhecida como o espaço da diversidade entre nações complementares. A sua força residia, afinal, no seu ponto mais frágil e desafiante. 

Para Barenboim, a música é também uma escola de democracia, pois cada instrumento actua a seu tempo, fazendo depois fluir o protagonismo para os outros, cada um à vez. O resultado vai sendo construído em equipa, sendo importante aprender e acompanhar as várias etapas musicais, ora em crescendo até ao allegro vivace, ora em pianíssimo, só possível se houver uma cooperação rigorosa e permanente entre os músicos. Todos, todos, todos! É também muito evidente a indispensabilidade de cada elemento no conjunto.  Nesse sentido, o maestro considera que a música oferece um testemunho de coabitação benigna, inspiradora e aplicável a todas as dimensões da vida em sociedade. Queiram as pessoas!...   

Com enorme lucidez, o maestro não se arvora em político e enjeita qualquer politização da Divan Orchestra, ciente de que a música não tem capacidade para «dar justiça aos palestinianos e segurança aos israelitas» (sic). Nem sequer tem essa função, à parte de demonstrar a possibilidade de pessoas de países inimigos conseguirem trabalhar no mesmo projecto, ajudando-se e complementando-se mutuamente, pois da boa harmonia entre todos depende o sucesso da polifonia final. 

O judeu nascido na Argentina fala com a autoridade da sua inquestionável qualidade musical, ele que aos 7 anos impressionou o mundo como menino prodígio do piano e aos 14 já regia a Royal Philharmonic Orchestra de Londres! É também eloquente a ligação de Barenboim a Beethoven, reconhecendo a mensagem de humanidade que impregna a música do compositor de oitocentos, além da honestidade e a coragem que consideram transbordarem da sonoridade riquíssima do alemão. 

Quando se calará o zumbido mortífero das bombas? Quando e o que conseguirá pôr cobro ao ódio assassino e insaciável, que continua a desestabilizar o Médio Oriente?   

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

07 novembro 2023

Poemas dos dias que correm

A química do cérebro 

A química do cérebro é cruel,
ao desdobrar-se em espaços de pensar,
microscópicas teias de sentir

E devia ser só robótico painel:
capaz de funcionar logicamente,
reagir à tristeza emitindo sinais,

sedosos bips de intensidade igual.
A química do cérebro é cruel
ao misturar as certezas pensadas

a notas de ternura musicais.
Devia ser capaz de ignorar a dor,
bloquear a angústia em cantos sem lembrar,

amarrar o amor a postes de neurónios
e deixa-lo morrer, esquecido e só.
E depois exultar com a vitória:

o calcanhar bem firme na serpente,
a técnica em ardente e claro ceptro.

Ana Luísa Amaral

05 novembro 2023

XXXI Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 23,1-12

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus falou à multidão e aos discípulos, dizendo:
«Na cadeira de Moisés sentaram-se os escribas e os fariseus.
Fazei e observai tudo quanto vos disserem,
mas não imiteis as suas obras,
porque eles dizem e não fazem.
Atam fardos pesados e põem-nos aos ombros dos homens,
mas eles nem com o dedo os querem mover.
Tudo o que fazem é para serem vistos pelos homens:
alargam os filactérios e ampliam as borlas;
gostam do primeiro lugar nos banquetes
e dos primeiros assentos nas sinagogas,
das saudações nas praças públicas
e que os tratem por 'Mestres'.
Vós, porém, não vos deixeis tratar por 'Mestres',
porque um só é o vosso Mestre e vós sois todos irmãos.
Na terra não chameis a ninguém vosso 'Pai',
porque um só é o vosso pai, o Pai celeste.
Nem vos deixeis tratar por 'Doutores',
porque um só é o vosso doutor, o Messias.
Aquele que for o maior entre vós será o vosso servo.
Quem se exalta será humilhado
e quem se humilha será exaltado».

04 novembro 2023

Carta a um anjo

Foi hoje, mas há 22 anos. 

***

Há algumas semanas cruzei-me com um pensamento de Albert Schweitzer, Prémio Nobel da Paz em 1952 (tradução e sublinhados meus): 

Quem entre nós aprendeu, através da experiência pessoal, o que realmente são a dor e a ansiedade, deve ajudar a garantir que aqueles que estão em necessidade física obtêm a mesma ajuda que uma vez lhe foi concedida. Já não pertence apenas a si mesmo; tornou-se irmão de todos os que sofrem. É esta “irmandade dos que carregam a marca da dor” que exige serviços médicos humanos.

***

Há dias, por causa do meu doutoramento, e falando sobre sofrimento, sobre a necessidade de contar uma história (Karen Blixen terá dito que todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou contamos uma história a seu respeito) escrevi à minha co-orientadora: 

Sofrimento. Sei falar muito sobre o sofrimento dos Pais, porque o senti e porque o adivinho nos outros Pais, baseado na minha experiência e num conhecimento imperfeito da espécie humana. Mas não sei se sei falar sobre o sofrimento dos médicos com o sofrimento alheio, o que esse sofrimento faz deles, se contam uma história ou se chegam a casa depois de deixarem o sofrimento num cacifo, juntamente com uma bata e um estetoscópio. 

E penso muito nas duas médicas que estavam no quarto da Madalena no minuto em que ela morreu. Sairam discretamente do quarto, para darem aos Pais um espaço de pudor e intimidade. Para onde foram depois de saírem de um quarto onde morreu uma criança de 7 anos? O que disseram uma à outra? O que responderam aos maridos / filhos quando lhes foi perguntado então como é que correu o dia? Não sei, mas penso muito nisso. Há uma travessia para os profissionais de saúde?

***

As duas citações estão relacionadas. Fazemos parte da irmandade dos que carregam a marca da dor antes de fazermos parte da irmandade dos que carregam a marca da esperança. Para isso, para que mudemos a natureza da marca, temos de contar uma história. Li algures que um contador de histórias ferido requer um leitor vulnerável. Citei esta ideia um dia e perguntaram-me: o que é um leitor vulnerável? Não sei; talvez um leitor que se deixe tocar pelo sofrimento e pela esperança alheias. Talvez um leitor que queira deixar-se tocar, porque sabe que isso o mudará para melhor. 

É preciso contar uma história. A minha história és tu.

J, em nome de todos os que te lembram

03 novembro 2023

A visão do futuro numa retroescavadora *


Uma retroescavadora. Válvulas hidráulicas, motores potentes, cabines ergonómicas com visão ampla, tracção a todas as rodas, sensores de carga, sistemas de absorção de impactos, mangueiras de alta pressão, vedantes com O-rings de face para maior fiabilidade. Etc., etc., etc.

Para uns, um equipamento que se aluga a 30€ à hora num fim de tarde, sem iva porque não há factura, é quase noite, vou ali fazer um servicinho rápido, é para uma senhora que conheço, para alisar terrenos, arrastar terras, movimentar pedras. Para outros, a extensão do braço onde há veias, músculos, rotação do punho, articulação do cotovelo, comandos que nascem no cérebro em função do que se vê, do que se quer fazer. 

Uma escavadora, aquele tridente ameaçador todo em aço, é o braço do operador. Quando ele vê, já o está a transmitir à rede de fluidos compressíveis que correm nas mangueiras e que arrancam raízes, derrubam árvores, galgam taludes. O operador não tem mão; não tem nada na mão. Quando ele olha para os dedos onde roda uma aliança redonda, gorda, toda em oiro, não vê nada, ou vê um adereço, algo postiço com valência afectiva, apenas, que o identifica enquanto visitante de café, frequentador de bilhar, homem que beija a esposa. Quando ele trabalha, o braço é a própria escavadora, são as unhas que ele sente rasparem a terra onde o estrume e a palha se misturam para que nasçam vegetais, princípios de saladas, projectos de conservas, ideias de negócio, futuros cooperativos.

Uma escavadora não é uma máquina, é a extensão de um cérebro. Experimentem ver um operador com tarimba, rápido, dominador, e perceberão que uma parte do futuro está ali. Uma inteligência ligada a um sistema hidráulico sem passar por mais nada, ou ligando tudo como se fosse algo integrado. Uma escavadora pode ser uma boa metáfora para a antecipação do porvir.

JdB

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Publicado originalmente a 16 de Abril de 2015   

02 novembro 2023

Poemas dos dias que correm

Roupa

Tiras, tiramos, tiram,
gabardinas, jaquetas, casacos, blusas,
de lã, algodão, de algodão e lã,
saias, calças, meias, roupa branca,
vestindo, pendurando, atirando para
costas de cadeiras, asas de biombos,
por agora, diz o médico, não é nada de sério,
vista-se, por favor, descanse, viaje,
tomar em caso de, antes de dormir, depois de comer,
voltar daqui a três meses, um ano, ano e meio;
vês, e tu que pensavas, e tínhamos medo,
e vocês supuseram, e ele que suspeitava;
é altura de atar, apertar, de mãos ainda trémulas,
atilhos, éclairs, fivelas, colchetes,
cintos, botões, gravatas, colares,
e retirar das mangas, da mala, da algibeira,
enrugado, às bolas, às riscas, às flores, aos quadrados, o lenço
que de repente continua a revelar-se útil. 

Wislawa Szymborska
paisagem com grão de areia
trad. Júlio Sousa Gomes
relógio d’água
1998

01 novembro 2023

Solenidade de Todos os Santos

EVANGELHO Mt 5, 1-12a
«Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus


Naquele tempo,
ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-Se.
Rodearam-n’O os discípulos
e Ele começou a ensiná-los, dizendo:
«Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados os humildes,
porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que choram,
porque serão consolados.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa,
vos insultarem, vos perseguirem
e, mentindo, disserem todo o mal contra vós.
Alegrai-vos e exultai,
porque é grande nos Céus a vossa recompensa».

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