30 dezembro 2022

Textos dos dias que correm

Respeito Muito o Homem que Chora

Há um tipo de choro bom e há outro ruim. O ruim é aquele em que as lágrimas correm sem parar e, no entanto, não dão alívio. Só esgotam e exaurem. Uma amiga perguntou-me, então, se não seria esse choro como o de uma criança com a angústia da fome. Era. Quando se está perto desse tipo de choro, é melhor procurar conter--se: não vai adiantar. É melhor tentar fazer-se de forte, e enfrentar. É difícil, mas ainda menos do que ir-se tornando exangue a ponto de empalidecer.
Mas nem sempre é necessário tornar-se forte. Temos que respeitar a nossa fraqueza. Então, são lágrimas suaves, de uma tristeza legítima à qual temos direito. Elas correm devagar e quando passam pelos lábios sente-se aquele gosto salgado, límpido, produto de nossa dor mais profunda.
Homem chorar comove. Ele, o lutador, reconheceu sua luta às vezes inútil. Respeito muito o homem que chora. Eu já vi homem chorar.

Clarice Lispector, in Crónicas no 'Jornal do Brasil (1967)'

29 dezembro 2022

Citações dos dias que correm *

 (...)

Deixara de fumar há um ror de anos. Restavam-lhe agora os charutos, que apreciava sem regularidade nem sabedoria, para lhe matarem um gosto que iria consigo para a cova. Não bebia em excesso. O último desvario datava do início de uma idade mais adulta, quando fora protagonista de uma ressaca difícil e de uma vergonha que lhe ficara na memória. Não jogava descontroladamente, subjugado pela ilusão de vencer a casa ou de derrotar o cálculo de probabilidades. Jogava como era - seguro. Embora mais do que lhe permitiria a saúde e a estética, não comia obscenamente ou às escondidas, não mantinha locais reservados e secretos onde guardava iguarias pecaminosas. Tinha do sexo uma visão sossegada, não conseguindo desligar o corpo do coração, exigindo na cama prazer e sentimento em simultâneo. Nunca se drogara, nunca o ousara fazer. Quisera fumar ópio, confessava, mas porque tinha lido o Tintim e a ideia se instalara na mente fantasiosa ao passar os olhos pelo Lótus Azul.
Em bom rigor, não tinha tendência aparente para a adição nas suas formas mais corriqueiras: cigarros, comida, droga, jogo, mulheres, álcool. Era aparentemente um homem sem vícios. E no entanto, cedo percebera que talvez tivesse a dependência mais perigosa de todas, porque em certa medida lhe matava a simplicidade, a satisfação corriqueira, o inesperado que faz sorrir. No fundo, o seu vício era esse: não ter vícios. O seu vício consistia em percorrer a vida de uma forma obsessivamente determinada, circulando entre duas linhas imaginárias, paralelas, estreitas, que definiam o seu comportamento. O seu vício estava ali: não se afastar nunca da certeza, da regularidade, da normalidade estatística, do correcto e do comedimento.  Ironicamente, talvez o seu vício fosse a sua salvação. 
Não fumava, não bebia, não jogava. Viciara-se no equilíbrio, e a consequência dessa dependência era um voo de alma de amplitude quase nula.
(...)
Alberto Catarino Carvalho, in  Crónicas de uma Viagem à Beira (Edição do autor, 2008)
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* publicado originalmente a 17 de Abril de 2013

28 dezembro 2022

Poemas dos dias que correm

Sabedoria 

Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem esperança...
E venha a morte quando
Deus quiser. 

Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à mais rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se conformara. 

Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar...
E venha a morte quando Deus quiser. 

Mas, com isto, que têm as estrelas?
Continuam brilhando, altas e belas.

José Régio

27 dezembro 2022

Duas Últimas

 Leio no Observador (artigo aqui) que um casal sueco quer comprar os direitos de autor da música Last Christmas, dos Wham. Porquê? Por um nobre e altruísta missão: impedir que volte a tocar-se esta música. Não para preservar um espólio, mas para poupar os ouvidos da humanidade. Ainda segundo a notícia, há quem ache a música All I Want For Christmas Is You, de Mariah Carey, pior.  A doutrina divide-se, pelo que deixo a cada um dos meus fieis leitores a escolha da música de Natal que baniria para sempre das ondas sonoras. Eu já escolhi a minha.

JdB


26 dezembro 2022

Textos dos dias que correm *

Éramos inseparáveis. Eu, o Hubert, o Karim. Jogávamos futebol durante o dia, tomávamos banho no rio no Verão. À noite saíamos para o cinema ou para os bares para jogar bilhar, envoltos em fumo e ruído. Bebíamos mais do que devíamos, naquele desequilíbrio adolescente cujo futuro é incerto. O que seria de nós, o que seria do mundo, se em jovens prevíssemos o preço que pagaríamos em adulto pelos nossos excessos? 

Bebíamos muito. Ao fim da noite o Hubert já ria quase descontroladamente, com os cabelos num desalinho de louco e metade da camisa fora das calças, aproximando-se ousadamente das raparigas locais que, gargalhando com gosto, fugiam dele. Foi para ele uma época que durou pouco, quase como se cumprisse um calendário ou fizesse um intervalo na sua verdadeira natureza. Encontrou-se na sobriedade da vida e vive feliz. O Karim mantinha-se sempre sossegado, encostado ao balcão ou a uma mesa de bilhar, de garrafa constante na mão. Era um sossego enervante, pois não emitia sinais do seu estado. Atravessou a vida assim: casou, separou-se; casou, separou-se. Vai voltar a casar e a separar-se, sempre silenciosamente, um pouco como se a vida não fosse mais do que um sucessão de cervejas bebidas no estabelecimento local.

E eu? Eu colava-me aos outros quando o corpo acusava excesso de álcool. Uns riam, outros contavam piadas, outros ainda mantinham uma calma quase incomodativa. Eu colava-me nos bancos, encostava-me a uma parede, e maçava quem ali estava com uma conversa desajustada. Era assim que eu me dava ao fim da noite. Não voltei a embebedar-me desde que fui para Paris estudar veterinária. Mais do que dos excessos, quem sabe não fugia de uma natureza que não entretinha ninguém. Talvez continue a ser assim, a viver um desajuste momentâneo como se estivesse ébrio. Às vezes parece que fujo dos outros, que me afasto dos outros. É possível que só queira, com falta de jeito, reconheço, proteger os outros de mim. Como se a vida fosse um bar forrado de mesas de bilhar e as minhas conversas não fossem as conversas de mais ninguém. Como se as minhas conversas não fossem mais do que as minhas conversas.

Marcel Larque (Lettres aux amies disparus,  Éditions Maison Jaune, 2010, tradução minha deste excerto) 

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* publicado originalmente a 28 de Novembro de 2013

25 dezembro 2022

Missa do Dia de Natal

 EVANGELHO - Jo 1,1-18

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

No princípio era o Verbo
e o Verbo estava com Deus
e o Verbo era Deus.
No princípio, Ele estava com Deus.
Tudo se fez por meio d'Ele
e sem Ele nada foi feito.
N'Ele estava a vida
e a vida era a luz dos homens.
A luz brilha nas trevas
e as trevas não a receberam.
Apareceu um homem enviado por Deus, chamado João.
Veio como testemunha,
para dar testemunho da luz,
a fim de que todos acreditassem por meio dele.
Ele não era a luz,
Mas veio para dar testemunho da luz.
O Verbo era a luz verdadeira,
que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem.
Estava no mundo
e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu.
Veio para o que era seu
e os seus não O receberam.
Mas, àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome,
deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.
Estes não nasceram do sangue,
nem da vontade da carne, nem da vontade do homem,
mas de Deus.
E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós.
Nós vimos a sua glória,
glória que Lhe vem do Pai como Filho Unigénito,
cheio de graça e de verdade.
João dá testemunho d'Ele, exclamando:
«Era deste que eu dizia:
'O que vem depois de mim passou à minha frente,
porque existia antes de mim'».
Na verdade, foi da sua plenitude que todos nós recebemos
graça sobre graça.
Porque, se a Lei foi dada por meio de Moisés,
a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
A Deus, nunca ninguém O viu.
O Filho Unigénito, que está no seio do Pai,
é que O deu a conhecer.

24 dezembro 2022

Véspera de Natal

Adoração dos Pastores, de Matthias Stomer, 1632


 

O editor e dono do estabelecimento deseja a todos os seus fiéis leitores, em particular aos que contribuem para a continuação deste espaço através da colaboração, visitas e comentários, um Santo Natal.

JdB  

23 dezembro 2022

Poemas dos dias que correm

 É Tempo de Natal

É tempo de Natal. Exibe-se um pinheiro,
Com lâmpadas de cor, sobre o balcão.
Tem, também, pendurados, a isca do dinheiro
E flocos finos de algodão.

Nas férias, foge a freguesia
Do final das manhãs,
Com os seus kispos disformes, de inflada fantasia,
E o conforto das lãs.

Bebem-se mais bebidas quentes.
O chão, mais húmido, incomoda.
E há apelos insistentes
Do cauteleiro que anda à roda.

Os embrulhos, nas mesas, nos regaços,
Com vistosos papéis,
Florescem de acetinados laços,
Lembram o oiro, o incenso, a mirra, em mãos de reis.

Muitos adultos. Pouca criançada.
Muito cansaço. Pouca animação.
A vida (a cruz!) tão cara, tão pesada!
E dão-se as boas-festas sem se sentir que o são.

Consigo mesa junto à vidraça.
E é em mim que procuro, ou é lá fora,
A estrela que não luz, o pastor que não passa,
O anjo que não vem anunciar a hora?

António Manuel Couto Viana, in 'Café de Subúrbio'

22 dezembro 2022

Poemas dos dias que correm

VIII - Num meio-dia de fim de Primavera


VIII 


(…)

 

Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro da tua casa.

Despe o meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é.

 

……

 

Esta é a história do meu Menino Jesus.

Por que razão que se perceba

Não há-de ser ela mais verdadeira

Que tudo quanto os filósofos pensam

E tudo quanto as religiões ensinam?


Último Excerto de “O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

21 dezembro 2022

Vai um gin do Peter’s ?

ONDE OS ROBOTS NÃO CHEGAM E COMEÇA O NATAL

Há uns anos, num debate público decorrido em Londres, quatro sumidades da filosofia e da teologia foram convidadas a pronunciar-se sobre o lugar do ser humano num mundo em robotização acelerada. Encontrariam espaço para a humanidade, facilmente substituível pela eficiência da Inteligência Artificial no raciocínio lógico, no processamento de dados, etc.? Já nenhum humano consegue jogar xadrez com os computadores mais avançados, capazes de uma auto-aprendizagem, que lhes permite desencantar novas estratégias inacessíveis aos humanos! 

Entre os convidados para o tal debate encontrava-se um académico de Yale, vários anglicanos e também um italiano, franciscano, teólogo e cardeal – Raniero Cantalamessa – que não hesitou sobre o atributo exclusivo e insubstituível do ser humano: Podemos conceber uma inteligência artificial; mas conseguimos conceber um amor artificial? Estão já a trabalhar num computador que pensa, mas conseguimos imaginar um computador que ama, que se enternece pelas nossas penas e se alegra com as nossas alegrias?  E aqui começa o Natal.

Noutra ocasião, Cantalamessa(1) explica melhor esta novidade introduzida no Natal, ao lembrar que o grande rio da história chegou a uma ‘eclusa’ com a vinda de Cristo. Tudo recomeçou a partir de um nível mais alto, logo que o Criador se tornou acessível à criatura e esbateu o enorme desnível que separava a infinitude divina da precária condição humana. Tudo ficou novo e diferente. Como primeiros sinais da mudança: foram os pobres e os párias da sociedade os primeiros a ser chamados, enquanto os poderosos e cheios de si experimentaram a curta eficácia (e até impotência) dos seus estratagemas e das suas invencíveis armadas. 

O frade franciscano conta ainda uma lenda especialmente natalícia, sobre a multidão de pastores que se apressou até Belém, entusiasmada com o anúncio dos anjos. Discretamente, seguia também um pobre pastorzinho, que nada tinha para levar ao Bebé anunciado pelos céus. Chegado à gruta, o pequenino resguardou-se no lusco-fusco, envergonhado por estar de mãos vazias. Enquanto a mãe do Recém-nascido se atrapalhava a tentar receber o que traziam uns e outros, descobriu o pastorzinho de mãos vazias. E logo lhe confiou o Filho, ficando assim mais disponível para acolher a avalanche de visitas. Como conclui Cantalamessa: «Não ter nada foi a sua sorte. Façamos com que seja também a nossa. (…) O que devemos fazer, como primeira coisa no Natal, é crer no amor de Deus por nós. (…) Parece algo fácil. Ao contrário, está entre as coisas mais difíceis no mundo. O homem é mais propenso a ser ativo do que passivo; a fazer, mais do que a deixar que lhe façam. Inconscientemente, não queremos ser devedores, mas credores; queremos, sim, o amor de Deus, mas como prémio, mais do que como dom. Assim, porém, realiza-se insensivelmente um deslocamento e uma inversão: em primeiro lugar, no topo de tudo, no lugar do dom, é colocado o dever; no lugar da graça, a lei; no lugar da fé, as obras. “Cremos no amor!”: este é um grito para o qual é preciso reunir todas as forças. (…) O dever de amar a Deus funda-se no facto de sermos amados por Deus, que nos amou primeiro. Esta é a novidade da fé cristã em relação a toda a ética baseada no “dever” ou no “imperativo categórico”. (…) O dom do “coração novo” não acontece sob anestesia total, como nos transplantes normais de coração! Nós vemo-lo a partir da mudança que se realiza nele. Nada mais de temores, rivalidades, timidez; homens novos, prontos a lançar-se pelas estradas do mundo e a dar a vida por Cristo. (…) A coisa mais bonita que podemos fazer no Natal não é nós oferecermos algo a Deus, mas acolher com espanto o dom do seu próprio Filho, que Deus Pai dá ao mundo.»  

Este amor contagiante, que irrompe todos os anos no Natal, está na base da tradição da troca de presentes e de maior atenção aos que mais precisam. No bom espírito da época, a Fundação Medeiros e Almeida (FMA)(2)  montou a mesa de festa na sala-de-jantar do seu museu com o serviço Vista Alegre, conhecido por «Natal em Belém». Este serviço foi colorido por crianças e adolescentes internados em hospitais públicos, no âmbito do projeto «Marinheiros da Esperança». O desenho-matriz é da autoria de Emília Dias da Costa e foi concebido para as comemorações dos 700 Anos da Marinha Portuguesa (2017), decorridas no Palácio de Belém.  

Originalmente, “Natal em Belém” designava o projecto nascido na pediatria do Hospital de S.João, no Porto, para as crianças internadas moldarem peças comemorativas da quadra. Rapidamente, a ideia estendeu-se a todo o país e ganhou o patrocínio da Marinha, aproveitando a comemoração dos seus 700 anos, em 2017. Nesse ano, foi criado o grupo “Marinheiros da Esperança”, constituído por doentes da pediatria de todo o Serviço Nacional de Saúde, que puderam abalançar-se para obras mais complexas (ex: este serviço de mesa em porcelana da Vista Alegre, um livro electrónico, etc.), sempre ilustradas por crianças e jovens hospitalizados.


No dia mais curto do ano, solstício de Inverno, sentimos bem a aproximação da longa noite onde irradiou uma luz nova e contagiante, porque Deus se fez um de nós. Feliz Natal a cada um!


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

____________________

(1)  Na terceira pregação do Advento deste ano.
(2)  https://www.museumedeirosealmeida.pt, na rua Rosa Araújo nº 41, perto do Marquês e da av.da Liberdade.

20 dezembro 2022

Poemas dos dias que correm

 VIII - Num meio-dia de fim de Primavera

VIII 

(...)

A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as coisas.

Aponta-me todas as coisas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.

 

Diz-me muito mal de Deus.

Diz que ele é um velho estúpido e doente,

Sempre a escarrar no chão

E a dizer indecências.

A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.

E o Espírito Santo coça-se com o bico

E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada

Das coisas que criou —

«Se é que ele as criou, do que duvido.» —

«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,

Mas os seres não cantam nada.

Se cantassem seriam cantores.

Os seres existem e mais nada,

E por isso se chamam seres.»

E depois, cansado de dizer mal de Deus,

O Menino Jesus adormece nos meus braços

E eu levo-o ao colo para casa.

 

……

 

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.

Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.

Ele é o humano que é natural,

Ele é o divino que sorri e que brinca.

E por isso é que eu sei com toda a certeza

Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

 

E a criança tão humana que é divina

É esta minha quotidiana vida de poeta,

E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.

E que o meu mínimo olhar

Me enche de sensação,

E o mais pequeno som, seja do que for,

Parece falar comigo.

 

A Criança Nova que habita onde vivo

Dá-me uma mão a mim

E a outra a tudo que existe

E assim vamos os três pelo caminho que houver,

Saltando e cantando e rindo

E gozando o nosso segredo comum

Que é o de saber por toda a parte

Que não há mistério no mundo

E que tudo vale a pena.

 

A Criança Eterna acompanha-me sempre.

A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.

O meu ouvido atento alegremente a todos os sons

São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

 

Damo-nos tão bem um com o outro

Na companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro,

Mas vivemos juntos e dois

Com um acordo íntimo

Como a mão direita e a esquerda.

 

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas

No degrau da porta de casa,

Graves como convém a um deus e a um poeta,

E como se cada pedra

Fosse todo um universo

E fosse por isso um grande perigo para ela

Deixá-la cair no chão.

 

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens

E ele sorri, porque tudo é incrível.

Ri dos reis e dos que não são reis,

E tem pena de ouvir falar das guerras,

E dos comércios, e dos navios

Que ficam fumo no ar dos altos mares.

Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer

E que anda com a luz do Sol

A variar os montes e os vales

E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

 

Depois ele adormece e eu deito-o.

Levo-o ao colo para dentro de casa

E deito-o, despindo-o lentamente

E como seguindo um ritual muito limpo

E todo materno até ele estar nu.

 

Ele dorme dentro da minha alma

E às vezes acorda de noite

E brinca com os meus sonhos.

Vira uns de pernas para o ar,

Põe uns em cima dos outros

E bate as palmas sozinho

Sorrindo para o meu sono.


Excerto de “O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

19 dezembro 2022

Poemas dos dias que correm

 VIII - Num meio-dia de fim de Primavera

VIII

 

Num meio-dia de fim de Primavera

Tive um sonho como uma fotografia.

Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte

Tornado outra vez menino,

A correr e a rolar-se pela erva

E a arrancar flores para as deitar fora

E a rir de modo a ouvir-se de longe.

 

Tinha fugido do céu.

Era nosso demais para fingir

De segunda pessoa da Trindade.

No céu era tudo falso, tudo em desacordo

Com flores e árvores e pedras.

No céu tinha que estar sempre sério

E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer

Com uma coroa toda à roda de espinhos

E os pés espetados por um prego com cabeça,

E até com um trapo à roda da cintura

Como os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe

Como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas —

Um velho chamado José, que era carpinteiro,

E que não era pai dele;

E o outro pai era uma pomba estúpida,

A única pomba feia do mundo

Porque não era do mundo nem era pomba.

E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

 

Não era mulher: era uma mala

Em que ele tinha vindo do céu.

E queriam que ele, que só nascera da mãe,

E nunca tivera pai para amar com respeito,

Pregasse a bondade e a justiça!

 

Um dia que Deus estava a dormir

E o Espírito Santo andava a voar,

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.

Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modelo às outras.

Depois fugiu para o Sol

E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.

Limpa o nariz ao braço direito,

Chapinha nas poças de água,

Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.

Atira pedras aos burros,

Rouba a fruta dos pomares

E foge a chorar e a gritar dos cães.

E, porque sabe que elas não gostam

E que toda a gente acha graça,

Corre atrás das raparigas

Que vão em ranchos pelas estradas

Com as bilhas às cabeças

E levanta-lhes as saias.


Excerto de “O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

  

18 dezembro 2022

IV Domingo do Advento

EVANGELHO - Mt 1,18-24

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus 

O nascimento de Jesus deu-se do seguinte modo:
Maria, sua Mãe, noiva de José,
antes de terem vivido em comum,
encontrara-se grávida por virtude do Espírito Santo.
Mas José, seu esposo,
que era justo e não queria difamá-la,
resolveu repudiá-la em segredo.
Tinha ele assim pensado,
quando lhe apareceu num sonho o Anjo do Senhor,
que lhe disse:
«José, filho de David,
não temas receber Maria, tua esposa,
pois o que nela se gerou é fruto do Espírito Santo.
Ela dará à luz um Filho
e tu pôr-Lhe-ás o nome de Jesus,
porque Ele salvará o povo dos seus pecados».
Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o senhor anunciara
por meio do Profeta, que diz:
«A Virgem conceberá e dará à luz um Filho,
que será chamado 'Emanuel',
que quer dizer 'Deus connosco'».
Quando despertou do sono,
José fez como o Anjo do Senhor lhe ordenara
e recebeu sua esposa.

16 dezembro 2022

Poemas dos dias que correm

Natal Chique

Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.

Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.

Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado...
Só esse pobre me pareceu Cristo.

Vitorino Nemésio, in 'Antologia Poética'

15 dezembro 2022

Das lágrimas furtivas *

Chamava-se Mafalda - e tinha um olho de cada cor.

Divorciara-se aos 49 anos quando o topo da carreira a vira chegar. Dera 25 anos à multinacional e, numa terça-feira invernosa, regressada de um conferência onde se discutira o equilíbrio fino entre a saúde das populações e a riqueza das farmacêuticas, percebera, pelo vazio humano da sala, que ocupava um lugar cada vez mais residual no coração do marido.

Alguns meses antes, vítima daquela perspicácia que mata as ilusões da alma, começara a vislumbrar o esmorecimento sexual como terceiro parceiro da relação. Ela mantinha o desejo – talvez fosse apenas o desejo – mas ele esquecera-se dela, de um corpo mediano de praticante de badmington, e de um peito na fronteira entre o tem o tamanho certo e o que pena não ser um pouco menor. Esquecera-se ainda da assimetria colorida dos olhos, fascinado por uma fadista que era em tudo média, e que trauteava o fado Vitória como sinal casto de apetências lascivas.

Conheceu então o André que, aos 30 anos, se alcandorara a trainee com responsabilidades de assistente pessoal. Era um rapaz com formação em marketing e um cabelo castanho discreto que nascia dos lados, para terminar numa cumeada de baixo relevo. Na primeira entrevista que os colocou frente a frente, Mafalda reparara que em momento algum o jovem retirara os olhos dos seus próprios olhos, como se achasse indelicado fixar-se no último botão fechado de uma camisa de qualidade. A educação de André cativara-a.

Durante um ano viajaram em serviço. Mafalda partilhou com ele o seu gosto pela música renascentista, pela literatura russa, pelos primitivos. Falou-lhe do futuro da medicina, da riqueza das nações, do agnosticismo esclarecido e do novo cinema francês. André ouvia-a, nunca baixando os olhos até ao ponto onde o decote discreto revelava a sensualidade de sardas espalhadas a eito. Ela falava dos prémios Goncourt, do Sundance Festival ou de marrons glacés e ele sorria, numa veneração fixada no rosto.

Um ano mais tarde deitaram-se pela primeira vez juntos, ao som da Torre Eiffel e de uma televisão onde se ouvia we’ll allways have Paris. Acharam que a frase era só para eles e beijaram-se como se não houvesse dia seguinte, a pintura não existisse sem eles, a literatura não fosse mais do que o romance que viviam. Esqueceram-se do mundo, excepto de uma nudez que ocupava todos os seus sentidos. Exploraram tudo e, pela primeira vez, André não lhe fixou os olhos, vendo Mafalda na plenitude de um corpo desnudo que lhe era oferecido. No fim da noite, com a imagem do frio nocturno e cinéfilo de Casablanca, Mafalda comoveu-se, sentindo que talvez não merecesse tamanha alegria. André voltou a olhá-la nos olhos e limpou-lhe uma lágrima furtiva.

O trainee mudou-se discretamente, levando pouca roupa, uma imagem de S. Judas Tadeu e a fotografia de uma avó sorridente que o pegava ao colo. Continuaram a viajar e ela mencionou-lhe a música trovadoresca, o realismo mágico sul-americano, os genéricos e as saudades de um badmington que praticava com dedicação e destreza. Ele ouvia-a, sorria e, numa cama larga com vista para a igreja da Estrela, beijava-a, acariciava-a, dava-lhe prazer. No fim, como se fosse um ritual, limpava-lhe uma lágrima furtiva, porque Mafalda continuava a sentir que talvez não merecesse tamanha alegria.

Um dia Mafalda entrou em casa devagarinho, porque há quem imagine nos outros uma alegria desmedida com o que é inesperado. Algo dentro dela a impediu do lugar-comum da surpresa! que se grita aos incautos. O jovem, frente a uma televisão onde bebés flutuavam no éter fruto de uma gravidade que desaparecera, agitava os braços ao som de uma música de fundo que se repetia a cada segundo e meio, contorcendo-se e balbuciando sons ininteligíveis. Ao seu lado, no chão elegante de madeira corrida, meia dúzia de fotografias dela própria. Os olhos tinham sido todos pintados da mesma cor, como se houvesse um qualquer horror à assimetria.

Mafalda manteve-se silenciosa. Numa fracção de segundo percebeu que os princípios activos, o aquecimento global, a pintura abstracta, e até a ideia de que teriam sempre Paris, eram a evidência de um monólogo gritante e sem retorno. Fechou a porta e saíu, porque mesmo que tivesse dúvidas sobre a existência de uma certa alegria, queria que André lhe limpasse uma lágrima furtiva.

JdB

* publicada originalmente a 15 de Março de 2012

13 dezembro 2022

Poemas dos dias que correm

Poema da auto-estrada

Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta
Vai na brasa de lambreta.

Leva calções de pirata,
vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chegou aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

antónio gedeão

12 dezembro 2022

Moleskine

Versos

Ring the bells that still can ring
Forget your perfect offering
There is a crack, a crack in everything
That's how the light gets in

Esta quadra, tirada de um poema mais extenso, de Leonard Cohen, chamado Anthem, são um bom ponto de partida, em particular os dois últimos versos. Sobre o tema escrevi e conversei abundantemente: é pelas fragilidades / debilidades (momentâneas ou mais permanentes) que as pessoas se ligam. Esta ideia é bonita, sobretudo para quem nunca reconhece uma racha na sua vida; por onde entrará a luz?

Futebol (I)

Lamento que Portugal tenha perdido, é claro. Gostaria de ver a selecção nacional chegar às finais e ganhar. Se tivesse de escolher contra quem, diria sem dúvidas: França. Algo em mim se compraz por ver França perder. Se for contra Portugal estou perdoado, porque ninguém me acusará de má vontade contra a nação gaulesa.

Futebol (II)

Ler os jornais, ver os blogs, escutar os comentadores é perceber que o tema fracturante do momento não é a eutanásia, mas o Ronaldo. Em cada mesa de café há gente ferozmente pró e gente ferozmente contra. Fala-se em lenda do futebol, e apanhei um cartoon onde o CR7, cabisbaixo e triste, caminhava entre uma guarda de honra de heróis da banda desenhada que se dobravam à sua passagem. Tenho respeito e admiração pela história de vida e de futebolista de CR7. Mas  facto de ele ter sido quem é não elimina o facto de passar uma imagem menos boa agora. E o passado bom das pessoas não deve impedir-nos de poder fazer críticas. Por último, gosto da sugestão da Dona Dolores para que o filho volte para casa onde há beijos e carinho. E gosto também de saber que a Georgina sabe de futebol o bastante para mandar recados ao Fernando Santos.

Futebol (III)

Disclaimer: percebo pouco ou quase nada de futebol. Com todo o respeito que tenho pela pessoa, ache o Fernando Santos uma pessoa maçadora. Tem sempre um ar zangado, ou irritado; raramente o vejo rir - ou mesmo sorri. Em muitos jogos vi Portugal praticar um jogo muito maçador. Questiono-me da influência de algumas características de um indivíduo no seu desempenho profissional: um homem maçador pode levar uma equipa a jogar um futebol "divertido"? Um treinador agressivo (Sérgio Conceição, por exemplo) gera uma equipa agressiva? Se sim, então já se sabe o que fazer. Substitua-se o engenheiro do penta (em letra pequena, para não se confundir com o chefe da manutenção do hotel) por alguém mais eficaz, que aproveite o potencial destes jovens.

JdB 

11 dezembro 2022

III Domingo do Advento

EVANGELHO - Mt 11, 2-11

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
João Baptista ouviu falar, na prisão, das obras de Cristo
e mandou-Lhe dizer pelos discípulos:
«És Tu Aquele que há de vir ou devemos esperar outro?»
Jesus respondeu-lhes:
«Ide contar a João o que vedes e ouvis:
os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são curados,
os surdos ouvem, os mortos ressuscitam
e a boa nova é anunciada aos pobres.
E bem-aventurado aquele que não encontrar em Mim
motivo de escândalo».
Quando os mensageiros partiram,
Jesus começou a falar de João às multidões:
«Que fostes ver ao deserto? Uma cana agitada pelo vento?
Então que fostes ver? Um homem vestido com roupas delicadas?
Mas aqueles que usam roupas delicadas
encontram-se nos palácios dos reis.
Que fostes ver então? Um profeta?
Sim - Eu vo-lo digo - e mais que profeta.
É dele que está escrito:
'Vou enviar à tua frente o meu mensageiro,
para te preparar o caminho'.
Em verdade vos digo:
Entre os filhos de mulher,
não apareceu ninguém maior do que João Baptista.
Mas o menor no reino dos Céus é maior do que ele».

09 dezembro 2022

Bacalhau à Zé do Pipo *

Lá fora o frio cortava e o vento ajudava a abrir os sulcos do corpo, feitos gretas nas mãos e lágrimas nos olhos. A chuva caía pequenina, esparsa, aqui e ali com mais força, inclinada e desconfortável. Laura entrou na igreja naquele meio de tarde precocemente escuro e sacudiu tudo: a água residual, as rajadas ventosas que não se viam, a temperatura inclementemente baixa, as agruras da vida tão coordenadas com o céu cinzento. Olhou à volta; não se lhe via desconfiança ou desconforto, apenas o anseio de ficar sozinha, porque o pudor manda que o choro seja discreto e partilhado na intimidade, não na nave central de uma igreja onde só o Altíssimo nos conhece a todos pelo nome. 

Laura circulou: a senhora dos aflitos, a senhora das angústias, a senhora das dores; depois o senhor crucificado, o senhor curvado nos passos da via dolorosa, dos impropérios sofridos, dos escárnios desumanos. Olhou à volta e descortinou um vago cheiro a madeira molhada, a espaço desarejado, a penumbra poupada; talvez um odor a sussurros partilhadas na hora do terço ou da missa vespertina, onde a desgraça da vizinha é afirmada no mesmo tom de voz que a infidelidade do cunhado, ou o favorecimento do presidente da junta a uma prima que tropeça gorda nos buracos do passeio.  

Laura passou pelo corredor central não sem antes ter depositado uma moeda na caixa de esmolas que teima em não encher, impedindo a reparação do tríptico do altar mor; é um quadro injustamente enegrecido pelo incenso, pela ausência de técnicos locais, pelo tenha santa paciência, senhor prior com que a diocese justifica os adiamentos permanentes. Laura toca a cabeça da senhora das dores, encosta um dedo beijado no pé da senhora dos aflitos, sorri humilde para a senhora das angústias. São estátuas simples, de gosto modesto, mas onde cabem, mesmo assim, os sofrimentos de todos os que se aproximam, esperançados - ou talvez já não - numa escuta que não tem prova visível. 

Laura chega ao fim deste périplo crente. Foi esmoler, passou pelas senhoras que a todos ajudam e a todos escutam, rezou uma dezena breve. E ajoelhou-se aos pés do senhor escarnecido que, de sangue a escorrer pintado de uma testa fustigada pelos espinhos da coroa, se senta num tronco torto à espera do fim. Laura está sozinha e não resiste: debruça-se, ajoelhada, e encosta a sua testa alta, vagamente perlada pela chuva inclemente, ao peito sofrido do senhor do amor. Chora, não porque o senhor sofra, mas porque ela própria sofre, sejam maleitas do corpo ou do espírito, suas ou dos que lhe são mais queridos. As mãos apoiam-se cansadas nos ombros daquele que já tudo suporta, tudo padece, tudo aceita. 

Durante cinco minutos o corpo de Laura não se mexe, como se dessa quietude dependesse a solução para os males que a afligem. Ao fim de um tempo que nada é face à eternidade, um telefone toca, não no âmbito dos discos pedidos, mas num rasgo brutal do silêncio contemplativo. É quizomba em modo de som crescente: dez segundos depois, enquanto Laura se endireita e se resguarda num nicho abandonado, abre a carteira, procura o aparelho entre lenços, baton carmim, lápis para os olhos, chaves do clio vermelho, documentos, carta das finanças, caderno pequeno com borboletas, meio queque embrulhado num guardanapo de papel, dez segundos depois, repete-se, a música invadiu o espaço, assustando as estátuas e o tríptico enegrecido onde uma salomé pouco arrependida mira com satisfação a cabeça do baptista:

sim, sim, Vanessa, é a mamã. O que é o jantar? Olha filha, descongela uma posta de bacalhau. Gostas dele à Zé do Pipo?

JdB

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História inventada, obviamente, mas baseada numa cena real observada no fim de semana, numa bonita igreja de Viseu.

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* publicado originalmente a 15 de Janeiro de 2016

08 dezembro 2022

Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria

 EVANGELHO Lc 1, 26-38 


Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas 

Naquele tempo, 
o Anjo Gabriel foi enviado por Deus 
a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, 
a uma Virgem desposada com um homem chamado José, 
que era descendente de David. 
O nome da Virgem era Maria. 
Tendo entrado onde ela estava, disse o Anjo: 
«Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo». 
Ela ficou perturbada com estas palavras 
e pensava que saudação seria aquela. 
Disse-lhe o Anjo: 
«Não temas, Maria, 
porque encontraste graça diante de Deus. 
Conceberás e darás à luz um Filho, 
a quem porás o nome de Jesus. 
Ele será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo. 
O Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai David; 
reinará eternamente sobre a casa de Jacob 
e o seu reinado não terá fim». 
Maria disse ao Anjo: 
«Como será isto, se eu não conheço homem?». 
O Anjo respondeu-lhe: 
«O Espírito Santo virá sobre ti 
e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. 
Por isso o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus. 
E a tua parenta Isabel concebeu também um filho na sua velhice 
e este é o sexto mês daquela a quem chamavam estéril; 
porque a Deus nada é impossível». 
Maria disse então: 
«Eis a escrava do Senhor; 
faça-se em mim segundo a tua palavra». 


Consagração a Nossa Senhora

Ó Senhora minha, ó minha Mãe, eu me ofereço todo a Vós, e em prova da minha devoção para convosco, Vos consagro neste dia e para sempre, os meus olhos, os meus ouvidos, a minha boca, o meu coração e inteiramente todo o meu ser.


E porque assim sou Vosso, ó incomparável Mãe, guardai-me e defendei-me como propriedade vossa.


Lembrai-Vos que Vos pertenço, terna Mãe, Senhora Nossa.


Ah, guardai-me e defendei-me como coisa própria Vossa. 

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