31 janeiro 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

 COMO KAFKA TERÁ CONSOLADO UMA CRIANÇA

Um ano antes da sua morte, no passeio diário pelo parque Steglitz, em Berlim, conta-se que o escritor checo de raízes judaicas Franz Kafka (1883-1924) e a sua última companheira Dora Diamant deram com uma criança a chorar copiosamente. Querendo consolá-la, aproximaram-se para perceber o motivo do desgosto – perdera a boneca. Habilmente, Kafka sugeriu à menina que não se tratara de uma perda mas de uma partida, pois a boneca decidira viajar pelo mundo, desejosa de conhecer outros lugares e novos amigos. 

O olhar atento, frontal e triste, que perpassa nos seus livros. À direita: num café de Praga, no 1º quartel do séc.XX.

Estátuas de homenagem a Kafka, na sua cidade natal – Praga. O da esquerda evoca o conto do checo «Descrição de uma luta».

Dora Diamant – atriz polaco-judia, oriunda de uma família judia  ortodoxa,
perto de 15 anos mais nova do que Kafka, que o terá reaproximado do Talmude. 

Semi incrédula, a pequenina enxugou as lágrimas e começou a inquirir o seu interlocutor sobre a veracidade da insólita justificação daquele desaparecimento doloroso. Desencantando nova proeza ficcional, o checo insistiu na sua tese e propôs-se mostrar-lhe uma prova da partida da boneca, aludindo à carta que esta lhe escrevera, na qualidade de ‘carteiro de bonecas viajantes’. Surpreendida e confusa, a criança ficou a aguardar pela carta de que Kafka era, estranhamente, o guardião.

Mal chegou a casa – contou Dora Diamant – o escritor sentou-se à escrevaninha, com o empenho nervoso com que cumpria as suas obrigações editoriais, e começou a redigir a primeira missiva da boneca viajante. No dia seguinte, leu-a e entregou-a à criança, comprometendo-se a servir de correio para as novas epístolas da boneca a narrar as aventuras pelo mundo. Ao longo de um par de semanas, o escritor e Dora cumpriram o ritual do encontro no parque com a pequenina, sempre com um novo escrito da boneca. Entretanto, o escritor teve um novo surto de tuberculose e foi internado. A 3 de Junho de 1924, com 40 anos, chegou a hora da Partida de quem se prestara ao humilde papel de mero carteiro.

Um dos especialistas em Kafka – Klaus Wagenbach – procurou, em vão, pela criança e pelas cartas que o checo lhe teria escrito, em nome da boneca. Assim, subsiste como única fonte deste episódio da biografia de Kafka a sua última companheira. 

Décadas depois, a história inspirou outros escritores, como Paul Auster, que a narrou na novela «The Brooklin Follies». Também o psicoterapeuta May Benatar a publicou sob o título «Kafka e a boneca: a omnipresença da perda», introduzindo um desfecho em que o escritor oferecia uma boneca à criança com o seguinte bilhete para justificar a nova aparência do brinquedo: «As viagens mudaram-me»! Mais tarde, teria encontrado um segundo bilhete escondido dentro da boneca, onde rezava: «tudo o que amas, provavelmente, perderás, mas no final o amor voltará sob uma forma diferente».  

Um terceiro escritor, de língua espanhola, também aproveitou a correspondência perdida de Kafka para compor um romance: «Kafka y la muneca viajera», resultado da parceria entre o texto do catalão Jordi Sierra i Fabra e do ilustrador de jornais como El Pais e o The New York Times – Pep de Montserrat. 

«Kafka y la muneca viajera» - no livro de Jordi Sierra i Fabra,
com ilustrações de Pep Montserrat.


Segundo a conclusão de Dora: Kafka pôs a arte ao serviço de uma criança para lhe devolver a alegria, após uma perda sentida com enorme desgosto. Escalando no potencial da ficção, desencantou um óptimo truque literário para consolar a pequenina. 

Uma curta-metragem inspira-se também naquele encontro do escritor com a criança, que teria puxado pelo lado solar da criatividade turbulenta, sumamente angustiada, mas genial de Kafka, mais dada a explorar os refolhos obscuros da alma e da mente humanas para denunciar as engrenagens ilógicas e castradoras da sociedade, frequentemente usadas para domar e formatar os indivíduos. 


A criancinha do parque de Berlim teria acordado a bondade imensa de Kafka, fazendo prevalecê-la sobre a lucidez glacial com que costumava mergulhar até às profundezas paradoxais e negativas da humanidade. Seguindo o trilho da boneca viajante, o checo ter-se-ia empenhado em revisitar o mundo sob um olhar de esperança e de criatividade construtiva – incomum em si – para oferecer à nova amiga pequenina um horizonte cheio de futuro. Valera-lhe gostar muito de crianças (confirmado por Dora) e nutrir especial consideração pela juventude, a quem reconheceu um dos maiores dons da vida [citação de autoria comprovada]: «A juventude é feliz porque tem a capacidade de ver beleza. Qualquer um que tenha a capacidade de ver beleza nunca envelhece.»  

Não existindo rasto das cartas originais, nem de muitos outros escritos de Kafka, que pediu ao maior amigo para queimar tudo o que encontrasse inacabado (felizmente que o amigo incumpriu quanto pôde o desejo do artista), ficamos com as sugestões poéticas de escritores mais recentes. Mesmo que a amizade com a criança tenha sido q.b. ficcionado por Dora, encontramos escritos do depressivo Kafka, que ecoam reflexões igualmente interpelativas, de uma bondade límpida e lúcida: «O mal conhece o bem, mas o bem não conhece o mal»! Não está ao alcance de todos reconhecer um bem profundo e pleno onde o mal inexiste, pois não tem lugar. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

29 janeiro 2024

Da cacofonia dos nomes e da dança *

 Chamava-se Amílcar Carlos e tinha um olho de cada cor. Se não era sensível à heterocromia dos olhos era sensível à cacofonia da identidade. Dizer o nome era uma espécie de gaguez inexistente que nunca perdoou aos pais, pese embora eles lhe terem dito que o segundo nome próprio Carlos era uma tradição de família. Não sendo uma tradição dramática, nem lhe tendo provocado graves inconvenientes, levou-o a pensar nisto: há estética nos nomes ou somos vencidos pela tradição apenas? Amílcar Carlos? Que sentido fazia esta junção onomástica? 

Não obstante esta estranheza (o olho de cada cor era uma característica) Amílcar seguiu a sua vida. Formou-se em Contabilidade e cumpriu o seu serviço militar obrigatório com correcção e bonomia. Não se fez notar para além das noites num clube local, onde lhe puseram a alcunha Valsinhas, embora fosse mais dado às danças africanas, carregadas de uma sensualidade que ele imaginava, pois nunca havia provado. No regresso à vida civil empregou-se como contabilista numa pequena unidade industrial do Seixal. Gostava do rigor dos números e atribuía o sucesso da sua função a isso mesmo - o rigor. Sempre lhe fizera confusão aquelas pessoas que, entrevistadas pela qualidade do café que tiram, respondem à pergunta sobre o que os diferencia dos outros: o amor, dizem. Como se numa máquina o amor se sobrepusesse à qualidade da matéria-prima, à afinação da temperatura / pressão e à limpeza das peças móveis. 

Casou com Rosália, com quem se cruzara num encontro de jovens promovido pela paróquia local. Juntos viajaram pelo país, dançaram muito e com gosto, lancharam caracóis a ver o mar e passearam de braço dado pelos largos de província. Desse casamento nasceu a Júlia, que emigrara para o Canadá atrás de uma carreira como higienista oral e de um jovem de Winnipeg que conhecera num simpósio em Badajoz intitulado: fio dental. Que desafios para o futuro? A vida do casal sem a filha foi entrando num espiral rotineira feita de desinteresses, de ausências, de balancetes a desoras e de séries de televisão cujo principal encanto é o preenchimento de silêncios incómodos. Foi então que Amilcar Carlos se cruzou profissionalmente com Carla Laura. Não o encantaram os olhos azuis, as pernas longas, o cabelo encaracolado e curto. Foi o nome: Carla Laura era Amílcar Carlos no feminino - e duas cacofonias juntas eram uma espécie de fórmula matemática: menos com menos dá mais. Seis meses depois beijavam-se pela primeira vez, tocavam-se pela primeira vez, conheciam-se biblicamente pela primeira vez. O contabilista esquecia a ausência da boca da mulher na boca de outra mulher. Não teve a sensação do pecado nem do desrespeito. Teve a sensação da sensualidade exaltante, juvenil, feita de futuros inimagináveis e borboletas no estômago. Separou-se.

Carla Laura gostava das praças, de caracóis, de matinés no cinema, de viajar de comboio e de conversar. Gostava de beijar Amílcar, de lhe fazer bolos de côco, de rir muito no segundo copo de vinho e de fingir interessar-se pela contabilidade de uma pequena unidade industrial do Seixal. Passeavam de mão dada e falavam de tudo e de nada. E falavam de ir a um clube dançar. Amílcar sentiu um ínfimo torcer de dedos de Carla, um microscópico desviar de olhos, uma desatenção. Não ligou, mas sentiu o possível desacerto no ritmo. Uma semana depois, num clube da margem sul, o contabilista encostou-se ofegante a uma coluna, enquanto a sala se agitava aos som dos Boney M. Carla não gostava de dançar mas, pior do que isso, não sabia dançar: era desajeitada, insípida, desinteressada, sem química nem física. Amílcar fez o deve e o haver num instante: não havia futuro.

Seis meses depois (seria uma progressão aritmética?) escrevia à mulher: posso viver com a ausência dos teus beijos, procurando outros; posso viver com a ausência do teu corpo, procurando outro. Não sei viver com a ausência do teu ritmo. Posso voltar para casa?

JdB   

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* publicado originalmente a 8 de Abril de 2019

28 janeiro 2024

IV Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 1,21-28

Jesus chegou a Cafarnaum
e quando, no sábado seguinte, entrou na sinagoga
e começou a ensinar,
todos se maravilhavam com a sua doutrina,
porque os ensinava com autoridade
e não como os escribas.
Encontrava-se na sinagoga um homem com um espírito impuro,
que começou a gritar:
«Que tens Tu a ver connosco, Jesus Nazareno?
Vieste para nos perder?
Sei quem Tu és: o Santo de Deus».
Jesus repreendeu-o, dizendo:
«Cala-te e sai desse homem».
O espírito impuro, agitando-o violentamente,
soltou um forte grito e saiu dele.
Ficaram todos tão admirados, que perguntavam uns aos outros:
«Que vem a ser isto?
Uma nova doutrina, com tal autoridade,
que até manda nos espíritos impuros e eles obedecem-Lhe!»
E logo a fama de Jesus se divulgou por toda a parte,
em toda a região da Galileia.

26 janeiro 2024

Em memória de Melanie Safka (1947 - 2023)

 Em 9 de Outubro de 2015 repesquei um texto que teria escrito algures no tempo. Reproduzo-o abaixo:

Lembras-te em que ano dançámos estas músicas? Era seguramente Verão, no terraço de um qualquer prédio no Algarve. Tínhamos todos a mesma idade, mesmo que tivéssemos nascido em anos diferentes. Tínhamos todos o mesmo dinheiro, mesmo que algumas mesadas fossem mais generosas. Jogávamos o verdade ou consequência, certos de que coraríamos se nos perguntassem de quem gostávamos, ansiosos por não fazer má figura se as regras nos levassem a beijar a rapariga que nos criava borboletas no estômago. 

Depois, alguém punha discos de vinil num gira-discos que talvez funcionasse a pilhas. As estrelas eram imensas, e a Janis Joplin arrancava com o seu Me and Bobby Mc Gee. E a Melanie Safka com o seu Ruby Tuesday. Eu olhava em volta e ia buscar-te, porque estes eram os nossos slow. Não tinha pressa, porque tinha a certeza de que esperarias por mim, que disfarçarias se te viessem buscar para dançar. Íamos para o meio da pista - quer dizer, do terraço - e enroscávamo-nos na ingenuidade da juventude, com a embriaguez provocada por dois corpos justos, um cabelo cheiroso, uma face encostada, uma forma de dançar que pouco mais era do que a imobilidade de dois adolescentes apaixonados. 

Lembras-te em que ano dançámos estas músicas?

Pessoa amiga informou-me que Melanie Safka havia morrido esta semana. Confirmei que tinha morrido a 23 de Janeiro, a poucos dias de fazer 77 anos. 

Dancei muito ao som de Melanie Safka e o texto acima, carregado de nostalgia mas não dirigido a ninguém em especial, pois perdi o rasto às pessoas com quem dançaria esta música, reproduz um ambiente que desapareceu pela lei natural da vida. 

Sou um homem de nostalgias pois, como já o disse aqui, o passado é certo e o futuro, até prova em contrário, não existe. Muito do meu gosto pela música pop advém da associação que lhe faço. Não é so gostar de Ruby Tuesday cantado pela Melanie Safka - é gostar da música e associá-la a uma época, a uma pessoa, a uma juventude sem grandes dramas e pejado de emoções fortes e juvenis, a dois corpos justos a mexerem-se de forma quase imperceptível.

JdB   

25 janeiro 2024

Duas Últimas *

Um dos exercícios preferidos na actualidade pela generalidade dos “media” é fustigar os alemães o mais que podem e sabem. Tenho é constatado que, se por um lado podem alguma coisa, já que a Alemanha é longe e Portugal mais ou menos uma democracia, por outro sabem pouco, e a asneira é livre. 

Exemplificando, temos que os duros teutões são culpados de terem originado 2 guerras mundiais que lançaram o caos na Europa e apressaram a definitiva ascensão dos EUA a potência mundial, de terem recuperado de forma extraordinária após a 2ª delas com a ajuda, conveniente para todos os envolvidos, de apoios financeiros dos vencedores, não tendo usado de medida idêntica na hora actual de penúria de outros (situações a meu ver não comparáveis!), ou de quererem esmagar o sul incumpridor e solarengo com uma austeridade sem fim à vista. 

Como se adivinha, situações de gravidade muito diferente, mas que servem para baralhar e confundir o pessoal menos avisado ou mais útil, ao bom estilo leninista…. 

Quanto aos alemães, pressinto que por lá continuarão na vidinha deles, que passa por trabalhar bem, produzir melhor e marcar mais golos do que os parceiros. E, se não se importam e não for pedir muito, exigir em coro com outros que quem incumpre mude ou os maus hábitos ou as regras vigentes, se for capaz. Ou então…de parceiros. E porque no sul nem tudo é de descartar, continuam a surpreender-se com as coisas de qualidade que por cá se vão fazendo. Porque também as há, e felizmente bastantes. 

Como o vídeo junto comprova. 

Espero que concordem. 

fq



* publicado originalmente a 24 de Fevereiro de 2015

24 janeiro 2024

Textos dos dias que correm

Olhar para o peixinho

Estas são duas crianças a fazer festas a uma gata. Quando passa um carro a gata foge. E depois volta para retomar as marradinhas. 

“Estúpida da gata!”, diz o miúdo, “sempre cheia de medo!” 

A miúda não discorda mas diz: “Já viste? Deve ser horrível estar sempre cheia de medo.” 

Não sei se foi [Paul] Valéry que disse que ser poeta é imaginar o que sente o peixe dentro do aquário: como vive e o que vê. É uma afirmação de autonomia, quase profissional: é isso que o pintor não consegue pintar. 

Lembrei-me de Valéry – não é por parecer pretensioso que me vou pôr a disfarçar – porque há muitas maneiras de compreender o mundo e, por muito democráticos que queiramos ser, algumas são melhores do que outras, e merecem ser escolhidas por quem ainda não se decidiu. 

A questão de a gata ser estúpida ou inteligente também é interessante, claro. É estúpida porque 99% das vezes não era preciso fugir? Ou é inteligente porque fugir, por tudo e mais alguma coisa, é uma boa estratégia para sobreviver?

Há pessoas que querem classificar e pessoas que querem compreender. Classificar é rápido e eficaz. Compreender é moroso e incerto. As primeiras querem saber “quem é ela? O que é que está a fazer?” e, mal recebem as respostas, passam logo a classificar o bicho: “É estúpida” ou “faz ela muito bem”. É assim com os gatos, com os vizinhos, com a política e com tudo. Mas compreender acaba por ser mais útil ainda, porque nós dispomos de tudo o que é preciso para tentarmos imaginar que somos outra pessoa, outro povo, outro bicho. 

É arriscado, claro, e parcial também, porque só conseguimos fazer uma aproximação, mas é nessa tentativa de percebermos, nesses passos pequenos que damos para nos aproximarmos, que ganhamos uma proximidade que nos ajuda a compreender o outro. 

A empatia sem imaginação é suspeita. A imaginação sem esforço e sem tempo, sem curiosidade ou perplexidade, não é imaginação: é só olhar. É o que faz a gata. 

(Mas será?)

Miguel Esteves Cardoso, “Olhar para o peixinho”, Público, 19 Out. 2023

23 janeiro 2024

Poemas dos dias que correm

Metade do mundo perfeito

Ela vinha ter comigo todas as noites
E eu cozinhava, servia-lhe chá
Devia ter então mais de trinta anos
Ganhara dinheiro, vivera com homens 

Deitávamo-nos para dar e receber
Debaixo do mosquiteiro branco
E como não começámos a contar 

Vivemos mil anos num só
As velas ardiam
A lua descia
A colina polida
A cidade leitosa
Transparente, ligeira, luminosa
Revelando-nos a nós os dois
Nesse plano fundamental
Em que o amor não tem vontade, controlo,
Limites
E se encontra metade do mundo perfeito 
 
leonard cohen
a chama
alerta azul

tradução de inês dias
relógio d´agua
2019 

22 janeiro 2024

Da felicidade

Num Instagram (creio que de Novembro de 2023) que mão amiga me enviou na semana passada, Enrique Rojas (espanhol, professor catedrático de Psiquiatria e Psicologia Médica) elenca 7 conselhos para se atingir a felicidade. São eles (de forma sucinta):

  1. Curar as feridas do passado; reconciliação / perdão a si próprio;
  2. Ter um bom equilíbrio entre razão e coração;
  3. Ter uma visão positiva das coisas; ter a capacidade de ver tudo por um ângulo bom;
  4. Ter uma vontade bem orientada;
  5. Ter um projecto de vida assente em quatro pilares: amor, trabalho, cultura e amizade;
  6. Ter paz interior (que varia em função da fase de vida em que estamos);
  7. Ter ilusões - desafios, planos e objectivos para cumprir.
No seu livro A Conquista da Felicidade (1930) Bertrand Russel (inglês, matemático e filósofo) elenca 6 causas de felicidade:
  1. O gosto de viver;
  2. A afeição
  3. A família
  4. O trabalho
  5. Os interesses pessoais
  6. Esforço e resignação

Não pretendo comparar nem avaliar quem, de entre Rojas e Russell, tem (mais) razão. Separa-os 100 anos e, seguramente, um olhar diferente sobre a realidade em que viveram. Talvez Russell seja mais sucinto, e os seus argumentos não se afastem tanto dos de Rojas - ou haverá, seguramente, pontos de intersecção. 

Os conceitos de felicidade mudam seguramente e têm uma dimensão pessoal muito grande. Hoje fala-se mais em viver o dia a dia, no imperativo de se estar bem consigo próprio (li no outro dia alguém que tinha uma assinatura a seguir ao seu nome que era, não afianço o ipsis verbis, és a melhor amiga de ti própria). Talvez o conceito de felicidade de hoje (ou o que é mainstream) tenha uma dimensão mais individualista, mais assente no prazer próprio do que no olhar para o próximo. A metáfora da máscara de oxigénio num avião é, nesse sentido, poderosa - primeiro pomos a máscara em nós próprios, só depois a colocamos nos outros. 

Haverá quem tenha a tentação de achar que cumpre todos os conselhos de Rojas, e haverá quem tenha a tentação de afirmar que o outro não é nem pode ser feliz porque não satisfaz determinado requisito. Ninguém, suponho eu, faz o pleno em todos os 7 conselhos. Todos temos áreas onde somos mais fortes e áreas onde somos menos fortes. E foi na sequência deste instagram que dei por mim a pensar e a conversar sobre o desejo de ter paz interior. E o que é isso de paz interior?

Assumamos que somos seres gregários e que a convivência com os outros - sejam familiares, amigos ou colegas de emprego ou de outras actividades - é factor primordial para um saudável equilíbrio interior. Afinal, é através dos outros que nos conhecemos e que afinamos o nosso próprio caminho e forma de ser e agir; as nossas características - defeitos e qualidade - são relacionais. Numa ilha isolada, Robinson Crusoe não é generoso, nem egoísta, nem preguiçoso, nem altruísta. Nesse sentido, a procura de paz interior é fatalmente conseguida através da interacção com os outros e a adaptação a um meio envolvente. Podemos dizer que atingimos paz interior ao limitar a nossa interacção com os outros a um mínimo possível? Um motor parado é, forçosamente, um equipamento onde não existe atrito?

Seja seguindo os conselhos de Rojas, seja seguindo as ideias de Russell, a ideia de felicidade só se atinge, em condições não excepcionais, se incluirmos o Outro na equação. A vida em isolamento - total ou parcial - suscita uma paz interior não verdadeira, assente numa ausência. Não se vê um ângulo bom até se partilhar essa visão com o outro; não se tem um bom equilíbrio entre razão e coração se não houver interacção. Noutra perspectiva, a paz interior é aquela que se conquista depois do labor relacional, não aquela que se imagina ter por ausência de partes em interacção.

JdB       
  

21 janeiro 2024

III Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 1,14-20

Depois de João ter sido preso,
Jesus partiu para a Galileia
e começou a proclamar o Evangelho de Deus, dizendo:
«Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus.
Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
Caminhando junto ao mar da Galileia,
viu Simão e seu irmão André,
que lançavam as redes ao mar, porque eram pescadores.
Disse-lhes Jesus:
«Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens».
Eles deixaram logo as redes e seguiram-n’O.
Um pouco mais adiante,
viu Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João,
que estavam no barco a consertar as redes;
e chamou-os.
Eles deixaram logo seu pai Zebedeu no barco com os assalariados
e seguiram Jesus.

19 janeiro 2024

Do slow e da identidade de género

Usemos a música A Whiter Shade of Pale (1967), dos Procol Harum, como exemplo para o argumento. 

Na altura em que terá chegado a Portugal, as músicas que se dançavam dividiam-se basicamente em ye ye (ou pop) e slow - umas eram mais agitadas e o par dançava separado, as outras eram mais lentas e o par dançava agarrado. Fruto de uma tradição cuja origem desconheço, mas que imagino antiga, nas músicas slow o comando estava atribuído implicitamente ao homem. Isto é, para o melhor e para o pior, era o homem que guiava a mulher. Ou, para me remeter a esse (meu) tempo, era o rapaz que conduzia a rapariga, competindo-lhe a ele marcar o ritmo, mostrar a versatilidade, o sentido de rotação da dança, a coreografia (que era, na verdade, paupérrima, pouco mais do que um ligeiro movimento corporal). Talvez lhe competisse a ele, na pureza dos anos 70, a tomar a iniciativa de uma maior aproximação dos corpos.

Estou em crer que a música slow (ou qualquer outra música em que o par dança agarrado) tem tendência para desaparecer, sobrevivendo nas verbenas, nas danças de salão e nalguns casamentos. A música slow, stricto sensu, caiu em desuso, porque me parece que também a música entre pares caiu em desuso. Hoje dança-se em grupo. 

O fim natural da música slow resolve um problema criado pela igualdade de género e, mais ainda, pelas novas teorias de identidade de género. Vejamos algumas situações:

1. Ainda é politicamente correcto entendermos que, ao dançar A Whiter Shade of Pale, cabe ao homem conduzir a mulher, ou vamos contra a igualdade de género? 

2. Se duas / dois homossexuais dançarem esta música, quem conduz quem? 

3. Se me acontecer estar dançar com uma pessoa do sexo feminino, mas que se identifica como sendo do género fluido, o que devo fazer? Perguntar primeiro e, nessa altura decidir se me atiro à pista, não vá ela entender ser um homem naquele momento?     

O fim do slow foi providencial. Já basta a crise da habitação, da dependência dos ecrãs, da virtualidade de tudo e da carga fiscal para atirar a civilização para um momento de crise. Não queremos, além disso, remeter a dança a dois - uma coisa tão interessante e tão fora de moda, infelizmente - para uma espécie de complicação adicional que suscite atritos entre pessoas que, no fundo no fundo, só queriam um contacto humano durante 4 minutos.

JdB 

17 janeiro 2024

Vai um gin do Peter’s?

 SUCESSO IMPREVISTO DE O «SOM DA LIBERDADE» 

Apesar de torpedeado por alguma elite de Hollywood e hordas poderosas de militantes woke, o filme do mexicano Alejandro Monteverde demorou 5 anos a derrubar barreiras até conseguir ser lançado por uma distribuidora independente, semi-desconhecida – Angel Studios –, bem sucedida numa mega operação de crowd funding.  Até a Disney se lhe atravessou no caminho, mas ficou pelo caminho… Assim, no Verão de 2023, «SOUND OF FREEDOM»(*) viu a luz do dia e começou a somar recordes de bilheteira, fruto de um marketing com êxito no passa-palavra, que lhe granjeou uma facturação invejável.  

Convenhamos que estas peripécias também confirmam quanto os EUA são, apesar de tudo, uma grande democracia, onde é possível a luta travada pelos impulsionadores de um filme que incomoda elites desaguar num final feliz. Em ditaduras, nenhum David pode bater-se com Golias, pois o próprio direito à vida é-lhe logo subtraído. 

Foi, precisamente, numa sociedade de claros-escuros como a norte-americana que um agente de segurança real (Tim Ballard), pai de uns 6 ou 7 filhos, se dispôs a largar o emprego seguro para resgatar crianças hondurenhas, sequestradas na Colômbia. Soube da sua existência pelas pesquisas muito eficientes do seu departamento de combate à pornografia. Porém, como lhe lembrava o chefe directo: a que propósito justificaria o desvio de USD para salvar crianças estrangeiras, em território estrangeiro, nada a ver com os EUA? A mulher do dito agente foi a primeira a alinhar com o sentido de missão do marido. E o tal chefe retinente também acabou por se solidarizar com a causa e desencantar motivos criativos para orquestrar a intervenção norte-americana, que se estendeu à Embaixada em Bogotá. 

A história verídica narrada no ecrã desfia com eloquência o alcance incomensurável da pequena adesão individual – a melhor para viabilizar uma onda de bem construída por cada «sim» de gente corajosa, que aceita meter-se em sarilhos, com risco de vida, para resgatar duas criancinhas latino-americanas. É especialmente interessante constatar a motivação de cada um, com passados tão diferentes e até paradoxais. Há lugar para todos, ex-presidiários incluídos. Nem todos eram meninos recomendáveis e sem cadastro. O percurso atribulado, mas muito verdadeiro, de um ex-traficante da droga, alcunhado de “Vampiro”, é dos mais cativantes, até pela sua frontalidade. Bill Camp interpreta o papel com maestria e garbo. Cabe-lhe a saída certeira a aconselhar o polícia bem comportado, acabadinho de aterrar na Colômbia, para largar aquela fatiota e atitude da marca casual chique californiana – ‘Banana Republic’. 

A subtileza do realizador a discorrer um tema tão sórdido não creio dar azo a pesadelos insuportáveis para os espectadores, pois SOM DA LIBERDADE flui com uma limpidez próxima do documentário, sem apelos lamechas nem proselitistas. 

Os dois irmãos hondurenhos, salvos por Tim Ballard.

A trama limita-se a desvelar a existência de um mal horrendo e de extensão indecorosa, mas sem expor as crianças vitimadas, sempre tratadas como território sagrado, ao longo de todo o filme. Os olhares doces e puros mantêm-se intactos, lindos, embora cheios de uma tristeza aflitiva. Dói muito, mas convoca-nos, como aconteceu à personagem Vampino. Ignorar tanto mal seria o mais injusto e perigoso. Por junto, ficará uma nota positiva, não só pela mensagem final do actor Jim Caviezel (pós a ficha técnica), mas pela confirmação da possibilidade tão criativa e real do contributo possível de cada. Por ínfimo que aparente ser. No caso verídico em que o argumento se inspira, mostra-se como a prospecção detectivesca e eficiente para devolver a um pobre pai os dois pequeninos raptados por uma Miss Colômbia criminosa, permitiu salvar mais de uma centena de pequeninos, sequestrados pela mesma mafia de predadores sexuais pedófilos e violentos. 

As estatísticas deste tráfico internacional de menores já ultrapassam as dos cartéis da droga e aproximam-se das relativas às armas, pelo que é crucial denunciar tal icebergue, que continua a vitimar milhões de crianças globalmente, sobretudo nos países pobres, onde a falta de policiamento e protecção deixa os mais frágeis à mercê dos bandidos. Sim, ainda subsistem modalidades incríveis de escravatura. Já a clientela final inclui também o mundo desenvolvido, onde núcleos de poderosos depravados se permitem vícios escabrosos. Mas não tenhamos ilusões: se no Ocidente são minorias participantes em orgias clandestinas, sendo julgadas e presas se apanhadas, nalgumas democracias débeis ou mesmo inexistentes (várias integram o G20), a venda de menores é prática comum, pelo que não há forma de travar os adultos envolvidos neste circuito cruel, onde até pais tomam a iniciativa de ganhar dinheiro com a venda dos filhos! 

Pelas circunstâncias relacionadas com quem vi o filme, confirmei uma realidade curiosa, que poderia resumir na diferença entre a denúncia forte mas triste e eivado de desespero do grande fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado e o trabalho de formiguinha diário de quem também se aventura aos antros mais infernais da humanidade para salvar quem puder, um a um, ciente de não conseguir chegar a todos, como uma Madre Teresa e afins. De facto, o mal pesa desproporcionadamente em quem tem menos presente um horizonte de esperança, de bem possível como última palavra na História.

Por múltiplas razões, inclusive estatísticas, vale a pena ver o filme, aplicando-se-lhe o alerta lapidar da revista «Time», na Segunda Guerra, quando achou que era a hora de mostrar aos norte-americanos a primeira fotografia de cadáveres de compatriotas. A imagem seca e difícil de jovens soldados a boiar no areal de uma ilha do Pacífico, ocupada pelos japoneses, vinha assim legendada: se eles tiveram a coragem de lutar pela liberdade, tenha a coragem de ver o resultado da sua luta, até como homenagem (citada de memória).

Começar o Novo Ano a responder a esta pequena chamada cinéfila, poderá ser um bom arranque. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(*) FICHA TÉCNICA

    Título original: SOUND OF FREEDOM
    Título traduzido em Portugal: SOM DA LIBERDADE
    Realização: Alejandro Gómez Monteverde
    Argumento: Rod Barr e Alejandro Gómez Monteverde
    Produzido por: Jim Caviezel, Eduardo Verástegui
    Distribuição: Angel Studios
    Duração: 2h15
    Ano:        Jul.2023
    País: EUA

Elenco:

    Tim Ballard, o agente – Jim Caviezel
    Vampiro (ex-presidiário) – Bill Camp
    A mulher de Tim Ballard – Mira Sorvino
    Rocío, uma das crianças – Cristal Aparicio
    Local das filmagens: Colômbia – Cartagena e EUA -Califórnia.
    Site oficial: https://www.angel.com/movies/sound-of-freedom

16 janeiro 2024

Da(s) memória(s)

Vejo um programa de televisão onde os intervenientes falam de memória e de memórias. Diz um deles, não garantindo eu que seja ipsis verbis, mas algo que se aproxima: se eu pudesse gostaria de manter as minhas memórias todos, boas e más. É disto que somos feitos, não seríamos nós se não fossem estas memórias. Os colegas de painel concordaram na generalidade. 

Dei por mim a pensar nisto. Como todos os seres humanos, tenho memórias boas e más da vida; como muitos seres humanos, tenho memórias particularmente boas mas, também, memórias particularmente más. Pensando naquelas que me provocaram maior sofrimento, o que me leva a querer mantê-las? São as memórias que fazem / fizeram de mim o que sou, ou foram os acontecimentos que fazem / fizeram de mim o que sou? E, em bom rigor, o que significa ser o que sou

Há acontecimentos que, pela sua brutalidade, provocam um vendaval na nossa vida, deixando marcas profundas naquilo que somos, na forma como nos apresentamos ao mundo ou como reforçamos / eliminamos crenças ou valores. A falência de um negócio, por exemplo, pode suscitar sentimentos de vergonha, enquanto a morte brutal ou prematura de um familiar próximo pode gerar crises de fé. Visto por outro prisma, ambos os acontecimentos podem provocar melhorias numa pessoa, nomeadamente um despojamento saudável ou uma atenção mais próxima aos outros. 

O facto de nos termos alterado para melhor face a um acontecimento brutal significa que foi bom termos passado por esse acontecimento? Não! O facto de nos lembrarmos desses acontecimentos brutais significa que somos melhores pessoas? Depende... Se não somos, por que motivo havemos de nos querer lembrar de coisas que foram negativamente marcantes na nossa vida? Não são as memórias que fazem de nós pessoas melhores ou piores; o que nos muda é o que fazemos com as memórias do que nos aconteceu. A memória pela memória é, parece-me, um exercício fútil.  

Tenho uma desconfiança a priori das pessoas que afirmam não se arrepender de nada, de querer lembrar tudo, de estarem disponíveis para passar por tudo outra vez. Eu tenho uma teoria pateta: passava bem sem alguns acontecimentos marcantes na minha vida; não obstante, gosto de imaginar que me tornei - aqui e ali - uma pessoa melhor. Porém, se me dessem a escolher, preferia não ser tão boa pessoa e não ter passado por algumas coisas pelas quais passei. Desculpem qualquer coisinha...

JdB 

14 janeiro 2024

II Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – João 1,35-42

Naquele tempo,
estava João Baptista com dois dos seus discípulos
e, vendo Jesus que passava, disse:
«Eis o Cordeiro de Deus».
Os dois discípulos ouviram-no dizer aquelas palavras
e seguiram Jesus.
Entretanto, Jesus voltou-Se;
e, ao ver que O seguiam, disse-lhes:
«Que procurais?»
Eles responderam:
«Rabi – que quer dizer ‘Mestre’ – onde moras?»
Disse-lhes Jesus: «Vinde ver».
Eles foram ver onde morava
e ficaram com Ele nesse dia.
Era por volta das quatro horas da tarde.
André, irmão de Simão Pedro,
foi um dos que ouviram João e seguiram Jesus.
Foi procurar primeiro seu irmão Simão e disse-lhe:
«Encontrámos o Messias» – que quer dizer ‘Cristo’ –;
e levou-o a Jesus.
Fitando os olhos nele, Jesus disse-lhe:
«Tu és Simão, filho de João.
Chamar-te-ás Cefas» – que quer dizer ‘Pedro’.

12 janeiro 2024

Pensamentos dos dias que correm

Realização e Êxtase

Conviria distinguir bem um do outro o caminho para o êxtase e o próprio êxtase; o primeiro ainda pode ter algum interesse por todas as lutas interiores, por todas as incertezas, por todo o esforço de pensar amplamente a que em geral dá origem; no entanto já nele mesmo poderíamos ver, além de uma preocupação egoísta, uma alternativa de esperança e desespero, um gosto da revelação e dos auxílios sobrenaturais que não poderão talvez classificar-se como superiores.
Do êxtase, porém, não alimentamos grandes desejos; o amor que nele descobrimos não pertence à categoria do amor que mais nos interessa — o que eleva o amado acima de si próprio, o que se esforça por esculpir uma alma com entusiasmo e paciência; é um amor a que se chega como recompensa de tarefa cumprida; não marca as delícias do caminho difícil, apaga-as da memória; faz desaparecer do peito do homem o seu único motivo de alegria, a sua única fonte de verdadeira glória.
Viver interessa mais que ter vivido; e a vida só é vida real quando sentimos fora de nós alguma coisa de diferente; se a diferença se tornar oposição, se o que era caminho diverso se transformar em muro de rocha, então no duelo que se trava, no instável equilíbrio que a cada momento se pode romper e precipitar-nos das alturas, nesta batalha em que não há um minuto de rancor pelo adversário, encontraremos a grande e forte vida; ora o êxtase consiste realmente no apagar das distinções, na identificação perfeita de dois termos.

Agostinho da Silva, in ' Diário de Alcestes '

11 janeiro 2024

Pensamentos e músicas para o dia de hoje

Há um exercício tão difícil que talvez seja quase impossível: qual é a música da nossa vida? Seguramente que, se tivesse de escolher numa situação de vida ou de morte, não faria a escolha pelo critério beleza. Há tantas músicas - de todos os géneros possíveis - tão bonitas e que me tocam tanto que seria impossível escolher. O critério teria de ser outro: uma música associada a um momento, a uma época, a um enquadramento, a uma ideia. 

Já aqui escrevi abundantemente sobre a ideia de regresso a casa, pelo que vou poupara os meus leitores a teorias e lugares-comuns repetidos. Mas, talvez não haja tema que seja tão importante para mim, que persista na minha mente ao longo de tanto tempo, que seja motivo para metáforas interiores. 

Para o dia de hoje, e para ilustrar esta minha obsessão pelo regresso a casa escolhi duas músicas cujos títulos são iguais. São ambas músicas muito bonitas, sendo que a primeira - soberbamente cantada - tem um poema muito bonito que assenta numa peça musical de que gosto particularmente. A segunda música - só música - é superiormente tocada. 

 

GOING HOME 

Going home, going home
I am going home
Quiet like, some still day
I am going home
It's not far, just close by
Through an open door
Work all done, care laid by
Never fear no more 

Mother's there expecting me
Father's waiting too
Lots of faces gathered there
All the friends I knew
I'm just going home

No more fear, no more pain
No more stumbling by the way
No more longing for the day
Going to run no more
Morning star light the way
Restless dreams all gone
Shadows gone, break of day
Real life has begun

There's no break, there's no end
Just living on
Wide awake, with a smile
Going on and on, going on and on
Going home, going home
I am going home
Shadows gone, break of day
Real life has begun
I'm just going home

Music from Dvorak’s Symphony from the New World.
Lyrics by David Downes 

10 janeiro 2024

Poemas dos dias que correm *

 

Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,

Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,

Porque para o meu ser adequado à existência das coisas

O natural é o agradável só por ser natural.

Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,

Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno—

Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,

E encontra uma alegria no facto de aceitar—

No facto sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.

Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece

Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?

O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,

Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime,

Da mesma inevitável exterioridade a mim,

Que o calor da terra no alto do Verão

E o frio da terra no cimo do Inverno.

Aceito por personalidade.

Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,

Mas nunca ao erro de querer compreender demais,

Nunca ao erro de querer compreender só com a inteligência.

Nunca ao defeito de exigir do Mundo

Que fosse qualquer coisa que não fosse o Mundo.


Alberto Caeiro 

24-10-1917

“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

  - 92.

09 janeiro 2024

Do Bob Dylan e do idadismo

 O dicionário online infopédia define idadismo como atitude preconceituosa e discriminatória com base na idade, sobretudo em relação a pessoas idosas; etarismo. Não vou debruçar-me sobre o impacto do idadismo no mercado de trabalho, ou sobre o desperdício que é não se aproveitar mão de obra experiente por causa da idade, sendo que, felizmente, se está activo até cada vez mais tarde. O idadismo afecta-me pouco: já não estou no mercado de trabalho e só me sinto discriminado pelos outros quando me impedem de correr a maratona pelo facto de ter quase 66 anos. É que, dizem-me, as pessoas que controlam as chegadas não podem ficar 3 dias à minha espera...

Um destes dias dei por mim a ouvir um música de Bob Dylan de que gosto muito: Forever young


May God bless and keep you always 
May your wishes all come true  May you always do for others  And let others do for you  May you build a ladder to the stars  And climb on every rung  May you stay forever young  Forever young, forever young  May you stay forever young
May you grow up to be righteous  May you grow up to be true  May you always know the truth  And see the lights surrounding you  May you always be courageous  Stand upright and be strong  May you stay forever young  Forever young, forever young  May you stay forever young
May your hands always be busy  May your feet always be swift  May you have a strong foundation  When the winds of changes shift  May your heart always be joyful  May your song always be sung  May you stay forever young  Forever young, forever young  May you stay forever young

A estrutura dos versos é simples: três sextilhas rematadas por um refrão de três linhas. A tradução - forçosamente imperfeita, porque pouco burilada, seria assim:

Que Deus te abençoe e te guarde Que todos os teus desejos se concretizem Que faças sempre algo pelos outros E deixes que os outros façam por ti Que construas uma escada para as estrelas E que subas cada degrau Que fiques jovem para sempre Para sempre jovem, para sempre jovem Que fiques jovem para sempre Que cresças como alguém justo Que cresças como alguém verdadeiro Que saibas sempre onde está a verdade E que vejas as luzes em teu seu redor Que sejas sempre corajoso E que te mantenhas firme e forte 
Que fiques jovem para sempre Para sempre jovem, para sempre jovem Que fiques jovem para sempre
  Que as tuas mãos estejam sempre ocupadas Que os teus pés sejam sempre rápidos Que tenhas fundações sólida Quando mudarem os ventos da mudança Que o teu coração esteja sempre alegre Que a tua música seja sempre cantada 
Que fiques jovem para sempre Para sempre jovem, para sempre jovem Que fiques jovem para sempre 

Quando dei por mim achei a letra curiosa: Bob Dylan, o cantautor nobelizado, deseja que todos sejamos dotados de virtudes humanos inquestionáveis. Ora, também deseja que fiquemos para sempre jovens. Porquê? É natural que nos mantenhamos jovens de corpo e de espírito para melhor gozarmos a vida e não nos afundarmos numa depressão de idoso que vê tudo a chegar ao fim. Mas a letra parece indicar que há um nexo causal: mantém-te jovem para poderes ter e manifestar estas qualidades. 

Talvez eu esteja enganado, mas parece-me que Bob Dylan é um grande defensor do idadismo. Numa altura em que toda a gente sente que tem de pedir desculpa pela História de que foi protagonista, talvez Bob Dylan também o devesse fazer, começando por um telefonema:

- Está lá, João? Daqui o Robert. Quem? Robert Allen Zimmerman... Olha, queria pedir-te desculpa pelo Forever Young. Não é nada pessoal, sabes...

JdB

07 janeiro 2024

Solenidade da Epifania do Senhor

 EVANGELHO – Mateus 2,1-12

Tinha Jesus nascido em Belém da Judeia,
nos dias do rei Herodes,
quando chegaram a Jerusalém uns Magos vindos do Oriente.
«Onde está – perguntaram eles –
o rei dos judeus que acaba de nascer?
Nós vimos a sua estrela no Oriente
e viemos adorá-l’O».
Ao ouvir tal notícia, o rei Herodes ficou perturbado,
e, com ele, toda a cidade de Jerusalém.
Reuniu todos os príncipes dos sacerdotes e escribas do povo
e perguntou-lhes onde devia nascer o Messias.
Eles responderam:
«Em Belém da Judeia,
porque assim está escrito pelo profeta:
‘Tu, Belém, terra de Judá,
não és de modo nenhum a menor
entre as principais cidades de Judá,
pois de ti sairá um chefe,
que será o Pastor de Israel, meu povo’».
Então Herodes mandou chamar secretamente os Magos
e pediu-lhes informações precisas
sobre o tempo em que lhes tinha aparecido a estrela.
Depois enviou-os a Belém e disse-lhes:
«Ide informar-vos cuidadosamente acerca do Menino;
e, quando O encontrardes, avisai-me,
para que também eu vá adorá-l’O».
Ouvido o rei, puseram-se a caminho.
E eis que a estrela que tinham visto no Oriente
seguia à sua frente
e parou sobre o lugar onde estava o Menino.
Ao ver a estrela, sentiram grande alegria.
Entraram na casa,
viram o Menino com Maria, sua Mãe,
e, prostrando-se diante d’Ele, adoraram-n’O.
Depois, abrindo os seus tesouros,
ofereceram-Lhe presentes:
ouro, incenso e mirra.
E, avisados em sonhos
para não voltarem à presença de Herodes,
regressaram à sua terra por outro caminho.

05 janeiro 2024

Poemas dos dias que correm

Resgate

Não sou isto nem aquilo
É o meu modo de viver
É, às vezes, tão tranquilo
Que nem chega a dar prazer…
Todavia, onde apareço,
Logo a paz desaparece
E a guerra que não mereço
Dá princípio à minha prece.
És alegre? Vês-me triste?
Por que não te vais embora?
Quem é triste é porque é triste.
E quem chora é porque chora.
Tenho tudo o que não tens
Tenho a névoa por remate.
Sou da raça desses cães
Em que toda a gente bate.
Só a idade com o tempo
Há-de vir tornar-me forte.
A uns, basta-lhes o vento…
Aos Poetas, basta a morte.

        Pedro Homem de Mello 

04 janeiro 2024

Da sageza dos centenários

Leio no Sapo online desta semana que morreu o idoso mais velho de Itália e, penso, segundo mais velho da Europa. Tinha 111 anos e uma alcunha que não retive, mas que era seguramente ternurenta e adequada a alguém com daquela idade, um idoso que suscitaria sorrisos amáveis e festas numa mão emagrecida. Conheci pessoas assim - não tão velhas - cuja idade atenuava o ridículo de uma alcunha que só se compreende quando o ser humano tem 3 anos ou 93 anos, mas que é esteticamente desafiante quando essa pessoa quer singrar na vida afectiva ou na vida profissional e, em vez de se chamar Carlos ou António, é conhecido pelo Cácá ou pelo Bolinhas. 

Gosto de ler o que estes centenários revelam ser o segredo para sua longevidade. Em bom rigor não são segredos iguais aos que algumas cozinheiras do meu tempo tinham para justificar a magnificência do seu Toucinho do Céu. Talvez não sejam segredos, mas hábitos de vida que se adequam a uma natureza. O italiano, por exemplo, comia refeições leves sempre acompanhadas de vinho, não fumava, evitar o stress e encarava cada dia como uma dádiva. Outros centenários defendem a ausência de carne e o banimento do álcool. Outros ainda partilham com o mundo as virtudes do ioga ou do trabalho. 

Sempre que morre um idoso com 100 ou mais anos precipito-me para a receita que me fará chegar lá. Cedo percebo que me arrisco a ter de ser tudo e fazer tudo: praticar ioga, comer pouco, comer o que me apetece, não beber vinho, beber vinho, trabalhar até tarde ou não trabalhar muito. Se alargarmos estes ensinamentos aos centenários fora da Europa o caso torna-se mais complicado: conseguirei comer sushi todos os dias e fazer meditação num templo budista ou tocar ukelele ao por do sol?

O filho do centenário italiano afirma, com uma segurança toda feita de ternura e fé, que o pai junta-se agora à sua mãe (mulher do idoso), que o aguarda há 40 anos. Ora, esta frase suscitou-me de imediato dois pensamentos:

1. Como crentes (sendo italiano, é provável que o falecido o fosse)  devemos acreditar que no Céu existe o conceito aguardar? Eu tenho alguém à minha espera no Céu? Haverá seres que, espreitando entre nuvens e anjos, olham para o relógio e, corroídos(as) de saudades, trauteiam o não venhas tarde do Carlos Ramos ou recitam o é tarde meu amor do poeta Al Berto?

2. Se o idoso sabia o segredo da longevidade (sendo certo que só quando se é velho é que se sabe se a fórmula funciona) porque não o partilhou com a sua esposa, mãe dos seus filhos e avó dos seus netos? Por que motivo deixaria que a senhora comesse massa ao jantar (sem vinho!), se preocupasse com as trivialidades da vida e fosse pouco grata? Por que motivo nunca lhe disse a viveres assim vais ter muito que esperar por mim no céu; talvez 40 anos, te garanto...

Gosto ler os segredos por detrás da longevidade. Alimento a esperança de que um idoso meio sábio partilhe com os incréus um pensamento roubado: o segredo de viver até aos 100 anos? Sei lá eu... Talvez não morrer antes.

JdB 

03 janeiro 2024

Vai um gin do Peter’s ?

MARK TWAIN E A MÃE DE JESUS PARA A FESTA DOS REIS   

No início da década de 70, o então Patriarca de Veneza, que veio a ser o Papa dos 33 dias antecedendo o polaco, costumava publicar no jornal ‘Messaggero di S. Antonio’ cartas póstumas aos seus autores preferidos. Mas tarde, foram reunidas na colectânea ‘Illustrissimi’ (i.e. «Aos Ilustres»). 

Um dos destinatários das epístolas foi Mark Twain (pseudónimo literário de Samuel Clemens, 1835-1910), entre outros motivos, pela sua lição do triplo João. Trata-se da metáfora a respeito das diferentes percepções sobre cada ser humano, assim explicada pelo eclesiástico italiano: «quando era miúdo, eras um dos meus escritores favoritos. Ainda me lembro das ‘Aventuras de Tom Sawyer’, que eram as aventuras da nossa própria infância. Contei as tuas histórias centenas de vezes e uma delas para mostrar, por exemplo, o valor dos livros. Imagino que alguns dos meus diocesanos ficarão chocados, a dizer: ‘Então, um Bispo a citar Mark Twain!’  O reparo fazia sentido, por causa da animosidade do norte-americano contra a Igreja Católica. Mas curiosamente, a pessoa que mais admirava era Santa Joana d’Arc. Dedicou 12 anos a investigar a sua biografia, marcada por gestos de heroísmo extraordinários e sumamente originais, que culminaram numa injusta e cruel condenação à morte na fogueira. A publicação que escreveu sobre ela considerava o seu melhor trabalho literário: «Personal Reflections of Joan of Arc». Como assinou sob um novo pseudónimo, surpreendeu os seus leitores, quando perceberam de quem se tratava. 

Voltando à carta dos anos 70: «Caro Twain, (…) Lembro-me que, uma vez, observaste: ‘Man is more complex than he seems. Every adult has in him not one but three distinct men. How is that? Well, take any man called John. In him there’s John the First, that is, the man he thinks he is; there’s John the Second, the man others think he is; and finally there’s John the Third, the man he really is.’ Quanta verdade nesta tua observação, caro Twain! Quando nos apresentam uma fotografia de grupo onde aparecemos, quem é a primeira figura que procuramos? Detesto ter de dizer que é a nossa imagem, porque prezamo-nos imensamente, bem acima dos outros. Também o segundo João se esforça por projectar uma imagem positiva de si e ressente-se quando não é admirado. O último João é, no fundo, aquele que Deus ama e que faz a vontade do Pai. Assim, se voltarem a meditar nos três Joões que há em cada um, prestem especial atenção ao terceiro, àquele que Deus ama». No fundo, é o único que existe.

Sobre a força do real: no ‘Samba em Prelúdio’ Vinicius de Moraes (1913-1980) parte de uma constatação sobre os limites da existência para depois lançar um convite invulgar: «Tenho os olhos cansados de olhar para o além, vem ver a vida.»  Na mesma senda do brasileiro e do terceiro João de Twain, John Lennon também defendeu (em ‘Beautiful Boy’) a ligação essencial à vida, que nos escapa quando, inebriados connosco, perseguimos aléns estéreis, fabricados, cegando aos poucos. Formulou-a como alerta contra voluntarismos à margem e fechados à realidade: «Life is what happens to you while you're busy making other plans».

Porquê ignorar a realidade? Talvez dê uma pista lembrar que todos os tiranos se alhearam dela para impor um projecto, que se torna despótico e egocêntrico! Isto dá a dimensão do perigo da fuga à vida, à realidade, mesmo quando custa, sob pena de ficarmos à mercê de subjectivismos fantasistas (nossos incluídos), falhos de substância, de factualidade. Será uma questão de coragem, de lealdade com a existência? Pois nenhuma faltou ao Bebé, que quis nascer pobre, há 2000 anos. Mas só o Amor ilimitado por cada um O moveu e O faz querer (re)nascer para viver connosco e iluminar o nosso dia-a-dia. Basta escolhermos ‘ver a vida’, como cantam Vinicius e o Beatle.

Da noite de 24 de Dezembro até à festa da Epifania, já em Janeiro, celebramos o ousado acontecimento de um Deus que vem até nós para «se colocar, com confiança, nas nossas mãos. É como se dissesse: ‘Sei que o meu esplendor te assusta, que à vista da minha grandeza procuras impor-te a ti mesmo. Por isso, venho a ti como Bebé, para que me possas acolher e amar’.» [Bento XVI] Que espantoso paradoxo o expoente da grandiosidade revestir-se da maior fragilidade, para se aproximar de nós e dar sentido ao tempo presente. 

Numa composição de Mark Lowry, o alcance da doação de Cristo à humanidade desfia-se numa sequência de interpelações a Maria, percebendo-se que só um Deus tornado homem permite elevar os homens a Deus: 


«MARY DID YOU KNOW 

Mary, did you know that your baby boy
Would one day walk on water?
Mary, did you know that your baby boy
Would save our sons and daughters?
Did you know that your baby boy
Has come to make you new?
This child that you delivered, will soon deliver you

Mary, did you know that your baby boy
Will give sight to a blind man?
Mary, did you know that your baby boy
Will calm the storm with his hand?
Did you know that your baby boy
Has walked where angels trod?
When you kiss your little baby
You kiss the face of God

Mary, did you know?
Mary, did you know?
Mary, did you know? Did you know?
Mary, did you know? Mary, did you know?
Mary, did you know? Mary, did you know?
Mary, did you know? Mary, did you know?

The blind will see, the deaf will hear
The dead will live again
The lame will leap, the dumb will speak
The praises of the Lamb

Mary, did you know that your baby boy
Is Lord of all creation?
Mary, did you know that your baby boy
Would one day rule the nations?
Did you know that your baby boy
Is heaven's perfect Lamb?
That sleeping child you're holding is the great, I Am

Mary, did you know? (Mary, did you know?)
Mary, did you know? (Mary, did you know?)
Mary, did you know?

Letra de Mark Lowry 

As perguntas a Maria aplicam-se ao grande desafio do Novo Ano, que nos convida a viver em pleno cada novo tempo de vida! Boas Festas pelos Reis e um Feliz 2024!

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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