30 outubro 2023

Cursos dos dias que correm

 


Excertos dos dias que correm

(...)

CARDEAL DE MONTMORENCY Ao CARDEAL GONZAGA, que pensa, em êxtase:  

A Eminência que diz?  

CARDEAL RUFO, acercando-se também  o CARDEAL GONZAGA  

Em que pensa, cardeal?  

CARDEAL GONZAGA, (como quem acorda, os olhos cheios  de brilho, a expressão transfigurada)

Em como é diferente o amor em Portugal!  
Nem a frase subtil, nem o duelo sangrento...  
é o amor coração, é o amor sentimento.  
Uma lágrima... Um beijo... Uns sinos a tocar...  
Uma parzinho que ajoelha e que vai se casar.  
Tão simples tudo! Amor, que de rosas se inflora:  
Em sendo triste canta, em sendo alegre chora!  
O amor simplicidade, o amor delicadeza...  
Ai, como sabe amar, a gente portuguesa!  
Tecer de Sol um beijo, e, desde tenra idade,  
Ir nesse beijo unindo o amor com a amizade,  
Numa ternura casta e numa estima sã,  
Sem saber distinguir entre a noiva e a irmã...  
Fazer vibrar o amor em cordas misteriosas,  
Como se em comunhão se entendessem as rosas,  
Como se todo o amor fosse um amor sòmente...  
Ai, como é diferente! Ai, como é diferente!  

(...)

Júlio Dantas in A Ceia dos Cardeais

 

29 outubro 2023

XXX Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mt 22,34-40

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
os fariseus, ouvindo dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus,
reuniram-se em grupo,
e um doutor da Lei perguntou a Jesus, para O experimentar:
«Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?».
Jesus respondeu:
«'Amarás o Senhor, teu Deus,
com todo o teu coração, com toda a tua alma
e com todo o teu espírito'.
Este é o maior e o primeiro mandamento.
O segundo, porém, é semelhante a este:
'Amarás o teu próximo como a ti mesmo'.
Nestes dois mandamentos se resumem
toda a Lei e os Profetas».

27 outubro 2023

Poemas dos dias que correm

 A VIDA

Povo sem outro nome à flor do seu destino;
Povo substantivo masculino,
Seara humana à mesma intensa luz;
Povo vasco, andaluz,
Galego, asturiano,
Catalão, português:
O caminho é saibroso e franciscano
Do berço à sepultura;
Mas a grande aventura
Não é rasgar os pés
E chegar morto ao fim;
É nunca, por nenhuma razão,
Descrer do chão
Duro e ruim!

Miguel Torga
(1907 - 1995)
In "Poemas Ibéricos" (1965)

26 outubro 2023

Duas Últimas *

 À semelhança do meu querido amigo JdC, que também partilha este espaço comigo, odeio o culto da nostalgia - desde que seja a nostalgia dos outrosFraquezas ou egoísmos que, estou certo, me serão perdoados aquando do ajuste de contas divino. De uma infinitude de itens que seria crueldade descriminar, escolhamos alguns que suportam o culto da minha nostalgia. 

A carta. Se bem que sorria à tecnologia que me facilita os dias, é com pesar que votei uma generosa caneta de tinta permanente (se fosse permanente haveria tinteiros à venda?) a uma utilização mais do que parca. Falece-me a oportunidade de exercitar o meu cursivo de canhoto aleijão, de usar papel de carta com gramagem generosa, de enviar cartões de visita (sobram-me uns de 1986) com a fórmula ensinada: muito agradeço o convite que aceito com o maior gosto. O telemóvel serve para tudo, das condolências às boas festas, da pergunta (jantas hoje lá em casa?) à resposta (levo ostras e lingerie de arrasar).

A dança. Em linguagem académica talvez me dessem um satisfaz no rodopiar dos salões. Ao contrário de muita gente, nenhuma molécula que me habita pede uma agitação furiosa que elimine as toxinas da mente. Tenho da dança uma visão afectiva: não a pratico com qualquer mulher, mas com quem me está próximo; não gosto desta visão moderna e grupal de uma quantidade indefinida de gente que se abana ao som de uma batida taquicárdica, zurzindo as ilhargas vizinhas com uns cotovelos frenéticos. Sinto saudades de uma dança individualizada a dois, uma modalidade apreciada apenas pelos gerontes de hoje - e que lhes é praticamente vedada.

A simplicidade. O evoluir da nossa vida afectiva corre o risco da complicação. Há os sinais, tantas e tantas vezes contraditórios ou ininteligíveis; há os jogos de sedução e de poder, os preconceitos, a imagem que se quer manter; há o discernimento que vem da experiência, a estratégia provinda, por vezes, de uma mentalidade de mestre de xadrez: se eu fizer isto ela faz aquilo e eu depois faço mais não sei o quê para ver se ela reage sei lá eu como. Tenho saudades, no fundo, no fundo, da transparência das coisas: de uma carta que se escreve, de um casal que dança ao ritmo de uma música lenta, de uma vida que se decide na simplicidade das palavras contadas aos amigos: Sabes, perguntei-lhe se ela queria. E ela disse que sim...

***

Oiçamos o homem que não precisou de apelido para singrar na música. Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias, simplesmente Fausto. Fala de cartas, de rumbas e de respostas simples. A nostalgia, digo eu...

JdB


* publicado originalmente a 8 de Março de 2011

25 outubro 2023

Vai um gin do Peter’s ? 

MEDIOCRES ÚTEIS?

Embora não considere de aplicação universal a tese de António Lobo Antunes sobre a utilidade genérica dos medíocres, ao longo da história, para não perturbar o status quo, reconheço que faz falta, de vez em quando, ouvir uma interpretação destas sobre a história. Como não reconhecer-lhe alguma verdade no marasmo geral em que o país mergulhou, meio anestesiado, meio acomodado, doentiamente avesso à mudança, qual “velho do Restelo”? Quantas pessoas estão viciadas neste comodismo paralisante, contaminando o tom geral da sociedade com uma atitude horrivelmente castrada e castradora.  

Nos dois Estados da Península Ibérica observa-se boa dose deste imobilismo, embora em sentido literal se aplique mais a Portugal do que a Espanha, onde o bloqueio provém de um excesso de conflito latente, que se tenta evitar a todo o custo, num empate técnico entre facções autocontroladas para não chegarem a ‘vias de facto’. A guerrilha urbana em plena Rambla e demais ruas de Barcelona, há um par de anos, não deixaram dúvidas sobre a paz fragilíssima que contém as hostes em ebulição do outro lado da fronteira. 

Hoje, a seguinte visão pessimista de Lobo Antunes encontra algum eco na realidade ao pé da porta:     

«A MEDIOCRIDADE NECESSÁRIA 

“A sociedade necessita de medíocres que não ponham em questão os princípios fundamentais e eles aí estão: dirigem os países, as grandes empresas, os ministérios, etc. Eu oiço-os falar e pasmo não haver praticamente um único líder que não seja pateta, um único discurso que não seja um rol de lugares-comuns. Mas os que giram em torno deles não são melhores. Desconhecemos até os nossos grandes homens: quem leu Camões por exemplo? Quase ninguém. Quem sabe alguma coisa sobre Afonso de Albuquerque? Mas todos os dias há paleios cretinos acerca de futebol em quase todos os canais. Porque não é perigoso. Porque tranquiliza.

Os programas de televisão são quase sempre miseráveis mas é vital que sejam miseráveis. E queremos que as nossas crianças se tornem adultos miseráveis também, o que para as pessoas em geral significa responsáveis. Reparem, por exemplo, em Churchill. Quando tudo estava normal, pacífico, calmo, não o queriam como governante. Nas situações extremas, quando era necessário um homem corajoso, lúcido, clarividente, imaginativo, iam a correr buscá-lo. Os homens excepcionais servem apenas para situações excepcionais, pois são os únicos capazes de as resolverem. Desaparece a situação excepcional e prescindimos deles.

Gostamos dos idiotas porque não nos colocam em causa. Quanto às pessoas de alto nível a sociedade descobriu uma forma espantosa de as neutralizar: adoptou-as. Fez de Garrett e Camilo viscondes, como a Inglaterra adoptou Dickens. E pronto, ei-los na ordem, com alguns desvios que a gente perdoa porque são assim meio esquisitos, sabes como ele é, coitado, mas, apesar disso, tem qualidades. Temos medo do novo, do diferente, do que incomoda o sossego.

A criatividade foi sempre uma ameaça tremenda: e então entronizamos meios-artistas, meios-cientistas, meios-escritores. Claro que há aqueles malucos como Picasso ou Miró e necessitamos de os ter no Zoológico do nosso espírito embora entreguemos o nosso dinheiro a imbecis oportunistas a que chamamos gestores. E, claro, os gestores gastam mais do que gerem, com o seu português horrível e a sua habilidade de vendedores ambulantes: Porquê? Porque nos sossegam. Salazar sossegava. De Gaulle, goste-se dele ou não, inquietava. Eu faria um único teste aos políticos, aos administradores, a essa gentinha. Um teste ao seu sentido de humor. Apontem-me um que o tenha. Um só. Uma criatura sem humor é um ser horrível. Os judeus dizem: os homens falam, Deus ri. E, lendo o que as pessoas dizem, ri-se de certeza às gargalhadas. E daí não sei. 

Voltando à pergunta de Dumas: 

– Porque é que há tantas crianças inteligentes e tantos adultos estúpidos? – não tenho a certeza de ser um problema de educação que mais não seja porque os educadores, coitados, não sabem distinguir entre ensino, aprendizagem e educação. A minha resposta a esta questão é outra. Há muitas crianças inteligentes e muitos adultos estúpidos, porque perdemos muitas crianças quando elas começaram a crescer. Por inveja, claro. Mas, sobretudo, por medo.”

António Lobo Antunes
 (Circulou nas redes sociais, em Setembro de 2020) 

Indiferente ao status quo, a Inteligência Artificial (IA ou AI) cresce e intimida pelos efeitos indomáveis do seu avanço. Claro que acarreta riscos enormes, mas os benefícios também são gigantes e incontornáveis, como se viu com a net de sinal aberto no mundo ocidental. Naturalmente, urge fazer adaptações de monta, a começar nos métodos de ensino e de avaliação dos estudantes ou nas provas de reconhecimento da propriedade intelectual, para apenas citar dois campos onde os modelos actuais ficaram instantaneamente obsoletos e inadequados. Sobre as vantagens óbvias, uma publicidade recente da Coca Cola demonstra-o com humor, através de um anúncio concebido pela tecnologia de geração de imagens (‘Stable Diffusion’) da IA. A curta-metragem dá vida à arte clássica, tornando-a capaz de cativar a curiosidade fresca e acelerada dos adolescentes de agora, com a ajuda da garrafa icónica! O slogan «Coca Cola real magic» é cumprido à risca, mal as obras mudas e inertes de Warhol, Vermeer, Van Gogh, Turner, Munch embarcam num jogo divertido, que consegue despertar o estudante enfastiado, a aborrecer-se de morte na visita de estudo a um museu. Nem 24 horas depois de ser lançado, já o spot publicitário era alcunhado de ‘Masterpiece’ e considerado por muitos como o melhor comercial dos últimos anos: 


Custa revisitar a realidade por vozes desencantadas e pessimistas, mas é sempre útil o frente-a-frente com o real possível, sem o esgotar, ouvindo outras perspectivas, para um hoje mais atento e um amanhã com mais horizonte.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

23 outubro 2023

Textos dos dias que correm

 Reagir à Saudade e à Tristeza

A maneira de reagir à saudade e à tristeza é ter um coração bom e uma cabeça viva. A saudade e a tristeza não são doenças, ou lapsos, ou intervalos, como se diz nos países do Norte. São verdades, condições, coisas do dia a dia, parecidas com apertar os atacadores dos sapatos. É banalizando-as que as acompanhamos. Um sofrimento não anula outro. Mas acompanha-o. Para isto é preciso inteligência e bondade.
Aquilo que resta são as pequenas alegrias. No contexto de tamanha tristeza e tanta verdade tornam-se grandes, por serem as únicas que há. Não falo nas alegrias que passam, como passam quase todas as paixões.
Falo das alegrias que se tornam rotinas, com que se conta: comprar revistas, jantar ao balcão, dormir junto do mar, dizer disparates, beber de mais, rir. Coisas assim. São essas coisas — entre as quais o amor — que não se podem deitar fora sem, pelo menos, morrer primeiro.

Miguel Esteves Cardoso, in 'As Minhas Aventuras na República Portuguesa'

22 outubro 2023

XXIX Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mt 22,15-21

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
os fariseus reuniram-se para deliberar
sobre a maneira de surpreender Jesus no que dissesse.
Enviaram-Lhe alguns dos seus discípulos,
juntamente com os herodianos, e disseram-Lhe:
«Mestre, sabemos que és sincero
e que ensinas, segundo a verdade, o caminho de Deus,
sem Te deixares influenciar por ninguém,
pois não fazes acepção de pessoas.
Diz-nos o teu parecer:
É lícito ou não pagar tributo a César?».
Jesus, conhecendo a sua malícia, respondeu:
«Porque Me tentais, hipócritas?
Mostrai-me a moeda do tributo».
Eles apresentaram-Lhe um denário,
e Jesus perguntou:
«De quem é esta imagem e esta inscrição?».
Eles responderam: «De César».
Disse-lhes Jesus:
«Então, daí a César o que é de César
e a Deus o que é de Deus».

20 outubro 2023

Dos especialistas e dos comentadores

 Recorro sem pudor ao lugar-comum: toda a crise - seja pandemia ou guerra - gera uma casta de notáveis que se destacam dos que já são notáveis. Eu explico: se vivermos um ano em paz e saúde, seremos agraciados, numa base diária, com a casta dos comentadores. São ex-ministros, ex-diplomatas, deputados, analistas políticos, investigadores. É um grupo de iniciados que entrega, a quem os quer ouvir, a pérola da sua sapiência, da sua argúcia, da sua leitura dos tempos e dos modos, 

O surgimento de uma pandemia ou de uma guerra - sendo ambas uma excrescência da modorra dos dias - acrescenta uma nova casta de notáveis à já existente casta de notáveis: são os especialistas. O especialista está um grau acima do comentador. Não se limita a comentar - é especialista na matéria que comenta; sabe mais de um determinado assunto do que aqueles que sabem tudo de todos os assuntos. 

A guerra à pandemia abriu as portas do televisor a este grupo de pessoas: havia especialistas em virologia, em emergência médica, em saúde familiar, nisto e naquilo. Habituado que estou à designação especialidade quando se fala de médicos, não estranhei. Por sinal, estes especialistas eram todos médicos que, presumo, tenham formação específica nestas áreas. 

A guerra da Ucrânia - e agora a do Médio Oriente - abriu-me os olhos para novas especialidades: todos os dias aparecem pessoas - civis ou militares - especialistas em geopolítica, geoestratégia, em assuntos militares, em relações internacionais, nisto e naquilo. Sem qualquer desconfiança da sabedoria desta casta de notáveis, o que faz deles especialistas? É um (ou vários) cursos de formação, é uma passagem pela faculdade, é um grau académico, é uma pós-graduação? Há um curso chamado assuntos militares que produza especialistas?

Na outra ponta do espectro estão os comentadores de futebol. Ainda que sejam especialistas em diversos assuntos, que vão das características de um médio-ala ao controlo do banco de suplentes, passando pela teatralidade das quedas sem contacto, nunca passam de comentadores. Podem ter cursos homologados, podem ter passado pela escola da vida ou pela faculdade do relvado que nunca serão especialistas. Num canal como a SIC ou como a TVI / CNN é-se especialista em geoestratégia. Na CM TV é-se comentador do balneário. 

O que marca a diferença? 

JdB       

19 outubro 2023

Textos dos dias que correm

 A Inutilidade do Viajar


Que utilidade pode ter, para quem quer que seja, o simples facto de viajar? Não é isso que modera os prazeres, que refreia os desejos, que reprime a ira, que quebra os excessos das paixões eróticas, que, em suma, arranca os males que povoam a alma. Não faculta o discernimento nem dissipa o erro, apenas detém a atenção momentaneamente pelo atractivo da novidade, como a uma criança que pasma perante algo que nunca viu! Além disso, o contínuo movimento de um lado para o outro acentua a instabilidade (já de si considerável!) do espírito, tornando-o ainda mais inconstante e incapaz de se fixar. Os viajantes abandonam ainda com mais vontade os lugares que tanto desejavam visitar; atravessam-nos voando como aves, vão-se ainda mais depressa do que vieram. 

Viajar dá-nos a conhecer novas gentes, mostra-nos formações montanhosas desconhecidas, planícies habitualmente não visitadas, ou vales irrigados por nascentes inesgotáveis; proporciona-nos a observação de algum rio de características invulgares, como o Nilo extravasando com as cheias de Verão, o Tigre, que desaparece à nossa vista e faz debaixo de terra parte do seu curso, retomando mais longe o seu abundante caudal, ou ainda o Meandro, tema favorito das lucubrações dos poetas, contorcendo-se em incontáveis sinuosidades, fazendo incessantemente ainda mais um circuito antes de enfim descansar no leito de que se aproxima. 

Mas viajar não torna ninguém melhor de carácter nem mais são de espírito. Teremos de nos aplicar ao estudo, de frequentar os mestres da filosofia, a fim de assimilarmos os princípios já estabelecidos e investigar o que ainda está por descobrir. Só assim a alma se pode arrancar à mais dura servidão e alcançar a verdadeira liberdade. Enquanto ignorares a distinção entre o evitável e o desejável, o necessário e o supérfluo, o justo e o injusto, o moral e o imoral — nunca serás um viajante, mas apenas um ser à deriva.As tuas deambulações não te trarão qualquer proveito, já que viajas na companhia das tuas paixões, seguido sempre pelos males que te dominam. E bom era que estes males apenas te seguissem! Bom era que eles estivessem longe de ti! 

O que se passa, porém, é que os levas em cima, e não atrás de ti. Deste modo, onde quer que estejas, eles oprimem-te, destroem-te com a mesma virulência. Um doente precisa que se lhe indique um remédio, não um panorama. Se um homem parte uma perna ou faz uma entorse não vai pôr-se a passear de carro ou de barco: manda, sim, é chamar um médico que lhe ligue o membro partido ou ponha no seu lugar o osso deslocado. Ora bem: acaso pensas tu que uma alma quebrada ou torcida em tantos lugares pode tratar-se com uma simples mudança de ambiente? Não, esta doença é demasiado grave para curar-se com um passeio! A formação de um médico ou de um orador não se faz em viagem; a aprendizagem de qualquer arte não depende da geografia. 

Como pensar que a sabedoria, a mais importante das artes, se pode adquirir saltando daqui para acolá?! Podes crer que nenhuma viagem te põe ao abrigo do desejo, da ira, do medo; se tal fosse o caso, todo o género humano começaria em massa a viajar. Estes males não cessarão de atormentar-te, de desgastar-te ao longo das tuas viagens, terrestres ou marítimas, enquanto tiveres em ti as suas causas. Admiras-te que de nada valha fugir quando tens dentro de ti aquilo de que foges? 

Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

17 outubro 2023

Em memória de Louise Glück (1943 - 2023)

O Poder de Circe

Nunca transformei ninguém em porco.
Algumas pessoas são porcos; faço-os
parecerem-se a porcos.

Estou farta do vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior.

Os teus homens não eram maus;
uma vida indisciplinada
fez-lhes isso. Como porcos,

sob o meu cuidado
e das minhas ajudantes,
tornaram-se mais dóceis.

Depois reverti o encanto,
mostrando-te a minha boa vontade
e o meu poder. Eu vi

que poderíamos ser aqui felizes,
como o são os homens e as mulheres
de exigências simples. Ao mesmo tempo,

previ a tua partida,
os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando
o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas

que algumas lágrimas me perturbam? Meu amigo,
toda a feiticeira tem
um coração pragmático; ninguém

vê o essencial que não possa
enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter
podia ter-te aprisionado.

Louise Glück 
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Poema publicado originalmente na coletânea Meadowlands (1996), com o título “Circe’s Power”. Editado em Portugal na antologia Rosa do Mundo. 2001 Poemas Para o Futuro (2001), da Assírio & Alvim. Tradução de José Alberto Oliveira.

16 outubro 2023

Crónica de um viajante no Canadá (II) - a comunicação

 Já aqui o referi: quando comecei a frequentar estas conferências mundiais sobre oncologia pediátrica, o lado emocional era muito forte. Algumas organizações estavam a começar a dar os seus primeiros passos, e nasciam, tantas e tantas vezes, do impulso angustiado ou esperançoso de Pais que tinham ouvido o terrível diagnóstico - o seu filho tem cancro. Hoje, como me disse um médico indiano que vou conhecendo de reuniões, já se fala mais de soluções do que de problemas. E isso é bom. 

Muito dinamizado por uma colega chilena do Board - mãe de um sobrevivente - começamos a falar de linguagem. Os jovens sobreviventes de cancro não gostam de ser chamados de sobreviventes; alguns pais - em bom rigor, muita gente ligada a esta área - não gostam de uma terminologia com contornos militares: combater o cancro, ser herói, vencer ou perder a guerra, força, coragem. Uma criança que morre de cancro não perde uma guerra - quem perde essa guerra são os médicos, a técnica, a ciência, que ainda não descobriu cura para tudo isto. Uma terminologia de motivação do tipo és forte, vais vencer, és um herói... seja aplicado a Pais ou doentes coloca um peso demasiado em cima destes protagonistas. Alguns só querem sofrer, só querem que lhes reconheçam a vulnerabilidade humana, só querem chorar de dor e angústia. só querem encolher-se a um canto. 

"Cancro" (e uso a palavra, opor isso entre aspas) é uma palavra forte. Usa-se cancro como metáfora para os parasitas da sociedades, para as pragas, para os inimigos, para as chagas do mundo moderno, para a inflação. Podemos dizer que os terroristas são o cancro da sociedade, mas ninguém diz que os terroristas são a diabetes da sociedade. 

Falamos de linguagem, de matáforas, de comunicação entre médicos e pacientes / cuidadores. Percebemos que o mundo é um lugar estranho quando ouvimos o que um médico disse a uma mãe dos Camarões que tinha um filho com cancro. A imagem explica tudo...


  Como se diz a uma mãe de uma criança com cancro que ela está a ocupar desnecessariamente uma cama, porque não há nada a fazer?

JdB

15 outubro 2023

XXVIII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mt 22,1-14

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus dirigiu-Se de novo
aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo
e, falando em parábolas, disse-lhes:
«O reino dos Céus pode comparar-se a um rei
que preparou um banquete nupcial para o seu filho.
Mandou os servos chamar os convidados para as bodas,
mas eles não quiseram vir.
Mandou ainda outros servos, ordenando-lhes:
'Dizei aos convidados:
Preparei o meu banquete, os bois e os cevados foram abatidos,
tudo está pronto. Vinde às bodas'.
Mas eles, sem fazerem caso,
foram um para o seu campo e outro para o seu negócio;
os outros apoderaram-se dos servos,
trataram-nos mal e mataram-nos.
O rei ficou muito indignado e enviou os seus exércitos,
que acabaram com aqueles assassinos e incendiaram a cidade.
Disse então aos servos:
'O banquete está pronto, mas os convidados não eram dignos.
Ide às encruzilhadas dos caminhos
e convidai para as bodas todos os que encontrardes'.
Então os servos, saindo pelos caminhos,
reuniram todos os que encontraram, maus e bons.
E a sala do banquete encheu-se de convidados.
O rei, quando entrou para ver os convidados,
viu um homem que não estava vestido com o traje nupcial.
E disse-lhe:
'Amigo, como entraste aqui sem o traje nupcial?'.
Mas ele ficou calado.
O rei disse então aos servos:
'Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o às trevas exteriores;
aí haverá choro e ranger de dentes'.
Na verdade, muitos são os chamados,
mas poucos os escolhidos».

13 outubro 2023

Crónica de um viajante no Canadá (I) - os abraços

Entro no stand do CCI, no recinto da conferência onde me encontro, onde estão amigos. Vejo uma cara que me é familiar, mas que não colo a um nome. Pergunto discretamente e identifico-a. Num minuto estava a abraçar longa e apertadamente uma médica alemã com quem tive reuniões virtuais sobre a Ucrânua. Tinha-me cruzado com ela, em formato presencial, duas ou três vezes.

Dei por mim a pensar na motivação para abraçar pessoas ou para ser abraçado por algumas pessoas. Estou num congresso onde abracei longamente várias pessoas - umas de quem sou amigo há anos, outras que conheci durante a pandemia, em reuniões virtuais. Percebi que não abraço a pessoa, mas o que a pessoa representa. Não abraço um corpo conhecido, um rosto conhecido, uma ligeira assimetria nos dentes que já detectei há anos. Não. O que abraço é o que a pessoa representa para mim, mesmo que essa representação assente numa relação de voluntariado durante a qual não trocámos uma única informação profissional. 

Da Alexandra, médica alemã com a qual troquei um longo e apertado abraço, não sei nada: se é casada, se vive com gatos, se gosta de vinho ou de música colombiana. Não sei se tem filhos e se vota nos Verdes almeães. O que sei é que vivemos tempos virtuais de grnde intensidade por causa da evacuação de crianças ucranianas.  

O caso da Alexandra não é único; aconteceu-me com outras pessoas sobre as quais pouco sei, a não ser o que fazem na, ou pela, comunidade da oncologia pediátrica. Abraçar e ser abraçado, dizer e ouvir palavras simpáticas, elogiosas e reconfortantes é um boost de energia. São abraços dados genuína e gratuitamente, sem qualquer interesse para além do mais simples gesto humano. 

Poderia deambular se a idade e a fase da vida em que estamos joga um papela determinante neste gosto por estes abraços que enchem um coração, mais do que satisfazem um ego. O meu grau de apreciação varia de que forma. Gostaria de ter estes abraços há 30 anos, com uma vida feita de empregos certos, vidas burguesas sem desaparecimentos precoces? 

Eu tenho a minha resposta.

JdB 

12 outubro 2023

Poemas dos dias que correm

 LÁGRIMA DE PRETA

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

António Gedeão
(1906 - 1997)
In "Poemas escolhidos"

11 outubro 2023

Música e sentido para o dia de hoje

 Foi hoje, mas há 34 anos. 

Para a minha filha Teresa.


Vai um gin do Peter’s ?

 COMO TCHAIKOWSKI AJUDOU OS RUSSOS NA SEGUNDA GUERRA 

O famoso compositor do romantismo russo, que compôs árias magníficas para o ballet, Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840-1893), não chegou vivo ao século das duas grandes Guerras Mundiais. Mas a sua música sim, pois perdurou para além da longevidade do seu autor, continuando a ecoar nas salas de concerto e nos palcos onde actuam os melhores bailarinos do mundo! 

À semelhança de Beethoven, também a Quinta Sinfonia de Tchaikovsky está marcada pelas badaladas do destino, parecendo que o fio da história se limita a seguir um curso predestinado, encurralado na impotência de uma força desconhecida, sujeito a um destino sem liberdade. Até que uma sonoridade vitoriosa desponta no último andamento, abrindo uma brecha de luz num trilho que fora escuro e inquietante para a sede de liberdade que habita o ser humano. Uma das novidades desta obra reside na proeminência das intervenções do clarinete, a quem cabem as primeiras notas do tema inaugural do Destino, numa melodia profunda, que penetra até ao âmago da alma, como é apanágio em Tchaikovsky.

O desfecho positivo da Sinfonia converteu-a num hino de esperança depois de um combate árduo para suplantar os obstáculos e limites que atrapalham o início de um caminho, de uma existência. Desse modo, elevou-se a símbolo de resistência para as lutas mais difíceis. Assim aconteceu durante o ‘Cerco de Leningrado’, durante a Segunda Guerra Mundial, que deixou a população aprisionada durante dois anos e meio, entre 8 de Setembro de 1941 e 27 de Janeiro de 1944. Resultou numa tremenda maratona contra a fome, contra o frio extremo do longo Inverno daquela latitude e contra as doenças provocadas pelo ambiente insalubre da cidade cercada. Para animar o povo sitiado, Estaline deu ordem para a Quinta de Tchaikovsky ser passada repetidamente na rádio, para levantar o moral dos locais. Tornaram-se célebres e heroicas as interpretações da principal formação orquestral da cidade, tocadas em directo e sem interrupções, apesar da saraivada de bombas que explodiam nos céus de Leningrado/ S.Petersburgo (nome de origem, recuperado após o colapso da URSS). 




Logo que as tropas nazis cercaram o burgo fundado por Pedro o Grande, na capital da Europa livre, que era Londres, a mesma Sinfonia de Tchaikovsky foi transmitida via rádio na noite de 20 de Outubro de 1941, em resposta ao apelo à resistência lançado por Estaline à sua população. Também na capital do Reino Unido as bombas nazis começaram a rebentar aos primeiros acordes do Segundo Andamento, mas não  desmobilizaram a orquestra, que fez gala em tocar a Sinfonia até à última nota! Percebe-se o ódio feroz com que os sequazes de Hitler tentaram, em vão, vergar a resistência britânica – das elites ao cidadão comum – surtindo o efeito oposto ao confirmar a urgência em derrotar o hediondo regime nazi. 

Nestes tempos agitados por focos de guerra temíveis e com alto risco de propagação, como o recente conflito deflagrado na Faixa de Gaza, após a chacina e o rapto de israelitas pelo Hamas, a Quinta Sinfonia do grande músico das Estepes da Ásia Central vem mesmo a calhar. É mais uma oferta da Gulbenkian, que a transmitirá em sinal aberto (através das plataformas digitais da Fundação), no próximo dia 13 de Outubro, às 19h00. A Sinfonia será interpretada pela orquestra da Fundação, sob a batuta do jovem maestro nascido no Uzbequistão – Aziz Shokhakimov: 

   SINFONIA N.º 5 EM MI MENOR, OP. 64

Escrita entre maio e agosto de 1888.

Estreada em S.Petersburgo, no dia 17 de novembro do mesmo ano, dirigido pelo próprio compositor. 

Dedicada ao professor e crítico de música alemão (Hamburgo) –  Theodor Avé-Lallemant.

             ANDAMENTOS

I. Andante providentoso – Scherzo: Allegro con anima

II. Andante cantabile, con alcuna licenza - Non Allegro

III. Valse — Allegro moderato con Patrioso

IV.        Finale — Andante maestoso - Molto assai e Molto maestoso - Allegro vivace (Alla Breve) - Allegro con anima

Como observam alguns críticos musicais, a Quinta Sinfonia cumpre com garbo e criatividade a máxima «per aspera ad Astra» (das dificuldades até às estrelas), ao fazer evoluir as lágrimas iniciais para um combate intrépido que desemboca numa marcha gloriosa. Tão actual e necessário o sinal de esperança que Tchaikovsky soube traduzir em música. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

10 outubro 2023

Crónica de um viajante no Canadá (I)

 

Estas duas fotografias têm algo em comum: são ambas de Montréal, no Canadá. Domingo, pelas 07.45h, tomava o pequeno almoço no McDonald's que, do ponto de vista da civilização gastronómica, é o equivalente à expressão "bater no fundo", justificado por ser o único estabelecimento do canal HoReCa a estar aberto ao público àquela hora. Pelas 09.00h sentava-me para assistir à missa na Basílica de Notre-Dame, um dos mais bonitos espaços religiosos que vi em toda a minha vida.

No espaço de pouco mais de 1 hora bati no fundo e fui elevado às alturas. No espaço de 1 hora atingi o zénite e o nadir de uma certa existência humana. Sol e sombra da vida de cada um.

JdB 

08 outubro 2023

XXVII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 21,33-43

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo:
«Ouvi outra parábola:
Havia um proprietário que plantou uma vinha,
cercou-a com uma sebe, cavou nela um lagar
e levantou uma torre;
depois, arrendou-a a uns vinhateiros e partiu para longe.
Quando chegou a época das colheitas,
mandou os seus servos aos vinhateiros para receber os frutos.
Os vinhateiros, porém, lançando mão dos servos,
espancaram um, mataram outro, e a outro apedrejaram-no.
Tornou ele a mandar outros servos,
em maior número que
os primeiros.
E eles trataram-nos do mesmo modo.
Por fim, mandou-lhes o seu próprio filho, dizendo:
'Respeitarão o meu filho'.
Mas os vinhateiros, ao verem o filho, disseram entre si:
'Este é o herdeiro;
matemo-lo e ficaremos com a sua herança'.
E, agarrando-o, lançaram-no fora da vinha e mataram-no.
Quando vier o dono da vinha, que fará àqueles vinhateiros?».
Eles responderam:
«Mandará matar sem piedade esses malvados
e arrendará a vinha a outros vinhateiros,
que lhe entreguem os frutos a seu tempo».
Disse-lhes Jesus: «Nunca lestes na Escritura:
'A pedra que os construtores rejeitaram
tornou-se a pedra angular;
tudo isto veio do Senhor e é admirável aos nossos olhos'?
Por isso vos digo:
Ser-vos-á tirado o reino de Deus
e dado a um povo que produza os seus frutos».

06 outubro 2023

Conferências dos dias que correm

 

Parto amanhã para o Canadá, para a minha última conferência enquanto Presidente da Childhood Cancer International (CCI). Curiosamente, fui eleito em 2020 numa conferência virtual, por causa da pandemia,  que deveria ter-se realizado... em Ottawa. Nada me liga emocionalmente a Ottawa, onde nunca fui. Mas é curioso que este ciclo de presidência se inicie e termine na mesma cidade.

Ontem de manhã, ao responder a um inquérito de "fim de ciclo", perguntava-me como via o meu mandato. Respondi que, de um ponto de vista pessoal, tinha sido desafiante. Ter tantas reuniões com tantas pessoas de tantas áreas ou países diferentes (ou mesmo fusos horários…) foi um desafio para a minha agenda e para a minha capacidade de foco e desempenho. Do ponto de vista institucional foi sobretudo gratificante. Essas “tantas pessoas” que eu conheci e com quem conversei são a prova viva da enorme quantidade de trabalho que esta comunidade realiza numa base diária, tantas e tantas vezes em condições muito desafiantes.

A propósito disso, cruzei-me com uma frase de Albert Schweitzer, francês, vencedor do Prémio Nobel da Paz (tradução minha):

“Quem entre nós aprendeu através de experiência pessoal o que realmente são a dor e a ansiedade, deve ajudar a garantir que aqueles que estão em necessidade física obtenham a mesma ajuda que ele teve. Já não pertence apenas a si próprio; tornou-se irmão de todos os que sofrem. É esta “irmandade dos que carregam a marca da dor” que exige serviços médicos com humanidade."

Gosto da expressão "irmandade dos que carregam a marca da dor". Acima de tudo - e olhando para as dezenas e dezenas de pessoas que conheci ao longo destes anos - talvez seja uma "irmandade dos que carregam a marca da esperança", sejam eles profissionais de saúde, Pais que perderam filhos ou Pais que mantêm os filhos, sobreviventes. 

Estou certo de que estes últimos três anos, sobretudo, foram a experiência humana mais gratificante que me foi dado viver. Só espero conseguir contar uma boa história.

JdB 


03 outubro 2023

Interpretações felizes dos dias que correm

 

Das nostalgias persistentes *

 Quer dançar?


Fixei-a com um português suave sem filtro numa mão clandestina, uma cerveja tirada à pressão na outra, um coração palpitante de enervamento e uns olhos bailarinos que não se fixavam em nada, mas que a retinham apenas a ela - o cabelo curto, um sinal discreto junto a uma sobrancelha, uma ligeira assimetria da boca, uns dedos que revolviam um anel comprado na feira do artesanato, um fio de cabedal de onde pendia uma cruz que só era dolorosa nos adultos. Sorriu-me, e não estou certo de que tenha percebido que os olhos dançarinos são um desobediência infantil, duas esferas vítreas que revelam o que o sentimento não é, que mostram o que a alma não executa. De mim para ela era uma linha recta apenas, a certeza do caminho mais curto, batimento em uníssono, vislumbre do mesmo ponto na lonjura das férias. 

Sim, quero...

Pousei o cigarro e a cerveja e os olhos que não paravam, desobedientes. Uma mão na cintura, a outra quase nervosa, quase húmida, quase imóvel num ombro, num pescoço, numa nuca, num cabelo curto, num afago, numa eternidade de quatro minutos. Rosto encostado a cheirar perfumes de frança, uma agitação mínima como se à terra bastasse isso, ou como se à terra não fosse permitido mais do que isso para a salvação das almas, do amor adolescente, dos olhos irrequietos, da exaltação que vem do silêncio, das mãos dadas, das palavra sem jeito, da vitória sobre um outono indesejado que era uma placa levantada pelo destino a dizer fim do verão. 

Dançámos quietos como nunca mais ninguém dançaria, dizíamos nós dois, para quem a existência era um português suave sem filtro e um anel feito por mãos artistas, um sorriso envergonhado nuns olhos que não paravam. Apertámo-nos mansamente, tão mansamente que mais ninguém percebia, achávamos nós. Só que eles percebiam, riam comentários, adivinhavam tudo, tinham como certezas aquilo que nos nossos íntimos eram só aspirações, esperanças, um dueto acertado de dois corações descompassados.

No fim sorri-lhe e disse obrigado, como se fosse uma palavra-passe - o sorriso ou o agradecimento ou a dança, sei lá eu... - que me abriria a porta do paraíso cuja extensão eu desconhecia mas que sabia ser já ali, a cheirar a perfume e a cabelo curto, na imobilidade de um chão que me fugia dos pés. O paraíso ao alcance de uma mão que afagava umas costas onde tudo começava e acabava, uma nuca cujas curvas eram a geografia de um tempo eterno que os adultos, para quem a cruz pendurada no fio de cabedal era uma dor - ou um Amor, talvez - garantiam não voltar.  E por isso não lhes perguntávamos nada, nem lhes dizíamos nada, nem lhes contávamos nada. Não era por segredo, era apenas para podermos sobreviver.

JdB 
    

* publicado originalmente a 16 de Setembro de 2014

01 outubro 2023

XXVI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mt 21,28-32

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos príncipes dos sacerdotes
e aos anciãos do povo:
«Que vos parece?
Um homem tinha dois filhos.
Foi ter com o primeiro e disse-lhe:
'Filho, vai hoje trabalhar na vinha'.
Mas ele respondeu-lhe: 'Não quero'.
Depois, porém, arrependeu-se e foi.
O homem dirigiu-se ao segundo filho
e falou-lhe do mesmo modo.
Ele respondeu: 'Eu vou, Senhor'.
Mas de facto não foi.
Qual dos dois fez a vontade ao pai?»
Eles responderam-Lhe: «O primeiro».
Jesus disse-lhes:
«Em verdade vos digo:
Os publicanos e as mulheres de má vida
irão diante de vós para o reino de Deus.
João Baptista veio até vós,
ensinando-vos o caminho da justiça,
e não acreditastes nele;
mas os publicanos e as mulheres de má vida acreditaram.
E vós, que bem o vistes,
não vos arrependestes, acreditando nele».

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