30 junho 2020

Da racionalidade na religião

No número de Maio - Junho de 2020 da revista Brotéria, João Carlos Paiva (da Faculdade de Ciências da UP) e o Pe. Pinto de Magalhães SJ assinam um artigo intitulado As Causas dos Santos e a Ciência, onde abordam a temática dos milagres para processos de canonização na Igreja Católica. Já aqui escrevi sobre esse assunto; discordo do processo que, seguindo regras do tempo de João Paulo II, parece ter-se mantido no séc. XVI. A santidade das pessoas cujas vidas conhecemos, porque nos são contemporâneas, não podem ser validadas por senhoras que não cegam quando lhes salta óleo quente para os olhos. As vidas dos candidatos devem ser escrutinadas, mas não podem estar dependentes deste tipo de pequeninos enigmas caseiros.

Sexta-feira passada, num almoço clubístico cuja regularidade fora interrompida pela pandemia, falou-se de religião: o que são os milagres, em que se manifesta a intervenção de Deus nos acontecimentos, o que é Fátima. Aduzi argumentos que já aqui escrevi: o milagre não é a cura milagrosa do corpo, mas a conversão (no sentido mais lato do termo) do coração. Nessa linha de pensamento, o milagre de Fátima não é a aparição de Nossa Senhora, mas o ponto de chegada ou de partida de milhares de vidas que se transformaram naquele recinto. Por outro lado, não acredito num Deus interventivo nas ocorrências terrenas: Deus não está nos terramotos, nas grandes tragédias, nas doenças individuais ou colectivas. Deus pôs o mundo em movimento e permite que as coisas aconteçam, mas o que ocorre é causado, ou pelo homem, ou pela natureza. Numa atitude que pode parecer um pouco excessiva, se assim não fosse eu teria alguma dificuldade em perceber os critérios de Deus...

Almocei um dia com um jornalista de esquerda, agnóstico, que estaria numa barricada oposta à minha nalguns combates mais fracturantes da sociedade. Achei curioso quando me perguntou, num tom não provocador, se se podia ser católico sem a necessidade da fé. Para ele o interessante era o ritual, não o transcendente; queria o espectáculo visível, não os bastidores indesvendáveis. Hoje, no meu passeio matinal junto ao mar dei por mim a pensar se não estaria a ficar (também) demasiadamente racional, descurando o lado misterioso das coisas. Afinal, segundo me contaram (e não afianço a explicação correcta ou o entendimento correcto da mesma) a obrigatoriedade dos milagres nos processos de canonização assentava na ideia de que nem tudo era explicável racionalmente. Não quero perder esta suspensão voluntária da incredulidade que está, de certa forma, por trás da fé. Mas também não quero embarcar numa prática religiosa que assenta numa fezada, em devoções a relíquias, em pés de atleta curados inexplicavelmente, em êxtases ou epifanias de trazer por casa. 

JdB        

29 junho 2020

Sermões para os dias que correm *



Maria Bethânia é uma fantástica declamadora. Conhecia-a, sobretudo, a recitar (ou declamar, ou apenas dizer) Fernando Pessoa e os seus heterónimos. Gostei de ouvir este sermão, sobre o qual, penso eu, já aqui publiquei um excerto. Nestes tempos de lucidez muito duvidosa, é sempre bom ouvir o Pe. António Vieira a reforçar que somos o sal da terra. No fundo, como se fosse uma resposta à barbárie estúpida de quem anda a pichar estátuas sem saber o que está a fazer.

JdB

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* sugerido por mão amiga

28 junho 2020

13º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 10,37-42

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo, disse Jesus aos seus apóstolos:
"Quem ama o pai ou a mãe mais do que a Mim,
não é digno de Mim;
e quem ama o filho ou a filha mais do que a Mim,
não é digno de Mim.
Quem não toma a sua cruz para Me seguir,
não é digno de Mim.
Quem encontrar a sua vida há-de perdê-la;
e quem perder a sua vida por minha causa, há-de encontrá-la.
Quem vos recebe, a Mim recebe;
e quem Me recebe, recebe Aquele que Me enviou.
Quem recebe um profeta por ele ser profeta,
receberá a recompensa de profeta;
e quem recebe um justo por ele ser justo,
receberá a recompensa de justo.
E se alguém der de beber,
nem que seja um copo de água fresca,
a um destes pequeninos, por ele ser meu discípulo,
em verdade vos digo: não perderá a sua recompensa".

AMBIENTE

25 junho 2020

Moleskine desinteressante

Repito-vos que não sei de onde sois (Lc 13, 27)

Oiço este trecho na homilia de domingo passado. Seria assim que Deus se dirigira no paraíso aos que, praticantes da iniquidade, lá entrassem. Sussurro para quem está ao meu lado: será que Deus não conhece alguém que chegue ao Céu?  A pergunta será despropositada, mas por vezes estes pequenos raciocínios deixam-me a pensar: que pedagogia devo eu tirar deste trecho? Que se praticar a iniquidade vou para o céu mas o Criador me dirá (por duas vezes, como vem neste passo de Lucas) que não sabe de onde sou?

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A morte de cada homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade; eis porque nunca pergunto por quem dobram os sinos: é por mim. A frase de John Donne tem várias traduções e nem sequer sei se esta é a mais correcta. Foi a que me saltou de imediato no computador. 

Tenho pensado na morte de Pedro Lima, o actor que se suicidou no passado fim de semana. Entre jornais, revistas e televisões não vi nada de elevado. Apenas vi porcaria, exploração ad nauseam de uma tragédia. À cabeça da manada, para citar uns versos de fado, a CMTV (não sei se há, como vi escrito por aí, aproveitamento para um ataque da Cofina à TVI), à qual só falta referir o tamanho da faca, o local e preço de compra, a direcção do movimento com que o actor se golpeou várias vezes, a quantidade de sangue jorrado. Ler os comentários dos jornais é contemplar uma cloaca, para usar uma expressão que encontrei por aí. Entre a admiração bacoca pelo actor e a crítica mais feroz ao que ele fez, nada se aproveita. Não há um módico de pudor nem de respeito. Aliás, ler os comentários dos jornais é perceber a dimensão da descarga de bílis de parte substantiva da nossa população.

Tenho pena da mulher e dos filhos do actor; tenho pena do sofrimento dele, daquilo por que ele passou até chegar a este ponto. Mas não sei o que dizer da Ministra da Cultura que se referiu a ele como "emblemático protagonista" ou do Presidente da República que achou que ele, Pedro Lima, irradiava felicidade. Faz-nos pensar, não só num claro provincianismo que nos assola, mas no que as pessoas veem num actor de telenovela que sofria de depressão que o conduziu ao suicídio. Felicidade?

JdB

24 junho 2020

Textos dos dias que correm

Espiritualidade cristã em tempo de isolamento, pelo cardeal Tolentino

Uma espiritualidade em tempos de pandemia, o que é, ou melhor, o que pode ser? Porque, no fundo, estamos no improviso. É interessante que, muitas vezes, na coreografia, na dança, se usa o improviso; não gostamos muito, porque preferimos uma vida conduzida por um guião; um improviso faz-nos viver o aberto; e para começar a falar do que é a espiritualidade em tempos de isolamento provocado pela pandemia, tenho de dizer isto: o futuro chegou de supetão, o futuro chegou achando-nos impreparados. Nenhum de nós sabe como lidar com esta situação. Sentimo-nos, todos, mais vulneráveis, mais precários.

À primeira vista, dizemos: aquilo que nos aconteceu é uma distopia; é uma calamidade; é o contrário da graça. E, contudo, em termos de fé, temos de olhar para este cronos, que parece devorar a nossa força e a nossa esperança, como a possibilidade de um káiros, a possibilidade de uma graça.

Este é um tempo de kénosis, de esvaziamento, um tempo de silêncio, um tempo em que, talvez, sintamos uma incerteza muito grande, um tempo de crise, um tempo em que parece que a vida vem menos. Um tempo precário.

Mas eu lembraria que a mesma raiz etimológica aproxima as duas palavras: precare, rezar, em latim, e precarium, o destino daquilo que é frágil. A espiritualidade não se constrói com a força. Jesus ensinou-nos isso com o mistério da sua Páscoa. Porque tudo tem de passar pelo mistério da cruz. E, por isso, este tempo, que parece só de calamidade, temos de o interpretar de um ponto de vista teológico e espiritual como um tempo de graça.

Como é que este pode ser um tempo de graça? Na oração que o papa organizou, na praça de S. Pedro, sexta-feira [27 de março de 2020], que muito nos impactou, ele escolheu ler o texto do Evangelho da tempestade acalmada. E no meio da tempestade, os discípulos perguntam a Jesus: Senhor, não te importas que morramos? É uma pergunta. E este é o tempo das perguntas, e das perguntas fundamentais. Se eu tivesse de sublinhar um ponto muito positivo desta experiência exigente que estamos a viver, é a qualidade das perguntas que escutamos.

É como se vencêssemos a banalidade, e as perguntas que ouvimos fazer uns aos outros são muito mais intensas, muito mais carregadas de sentido.

É curioso que aqui, em Itália, no início da pandemia, abriram-se gabinetes de apoio psicológico. E muitos idosos telefonavam, dizendo isto: eu não consigo rezar. E, de facto, este começou por ser um tempo em que parece que não era possível uma vida espiritual. Depois, descobrimos o contrário: que este tempo é de uma grande intensidade espiritual. E qual é o termómetro para perceber isso? São as perguntas, a radicalidade, a força das perguntas fundamentais que estamos a fazer.

Pegando no discurso do papa, há que dizer a verdade: não é a pandemia que nos adoeceu; nós já estávamos doentes. A pandemia descobriu, revelou, uma doença, que são, no fundo, os nossos estilos de vida, onde já não há alugar para o humano, não há lugar para o encontro, não há lugar para o transcendente, não há lugar para uma vida interior rica, digna desse nome, não há lugar para uma oração. Tudo é cronometrado, tudo passa pelo taxímetro.

Tenho um casal amigo - e é muito belo ouvir as histórias que se passaram nas famílias, porque, de certa forma, uma das coisas que este isolamento trouxe, é a redescoberta da família. Pelas primeira vez muitos casais, muitas famílias, passaram juntas um tempo de qualidade como não passavam há muitos anos, ou como nunca tinham passado – no qual um menino de cinco anos, à mesa, disse isto: eu acho que percebo o que estamos aqui a fazer; estamos aqui a criar memórias. Por vezes as crianças são antenas que nos ajudam a perceber o que estamos a fazer.

Este é um tempo de graça, é um tempo para a graça, é um tempo de maior gratuidade, e é um tempo para criar. Não é só um tempo para “descriar”; não é só a passividade, não é só o não fazer; é um tempo propício, oportuno. Por isso, há aqui um chamamento a modelar o tempo do ponto de vista da fé.

Um dos princípios que o papa Francisco repete muitas vezes é: o tempo é superior ao espaço. Parece uma sentença muito filosófica, e que não tem uma leitura fácil, imediata. Contudo, neste tempo de isolamento social, percebemos isso: o tempo é superior ao espaço. Aconteceu uma espécie de recuo.

A mística judaica fala numa espécie de “tzimtzum”, parece uma coisa brincada. O “tzimtzum” é uma coisa inventada a partir das leituras da Cabala, segundo a qual Deus, para poder criar, teve de dar um passo atrás, teve de se despojar de si mesmo para poder criar. Esta ideia foi retomada por autores tão importantes na segunda guerra mundial como Simone Weil, que disseram, precisamente: o tempo da catástrofe parece um tempo em que Deus recua, dá um passo atrás; contudo, é um tempo para descobrirmos o Deus da ternura, o Deus da misericórdia, o Deus próximo, o Deus comprometido com a pessoa humana, o Deus que está ao lado da vítima, ao lado do que sofre; porque o próprio Deus vive este recuo.

É uma ideia curiosa, que nos deixa a mística judaica, e que nos ajuda a pensar o que está a acontecer com o espaço; está a acontecer o nosso “tzimtzum”, damos um passo atrás para, também, ter uma visão crítica em relação ao modo como habitamos o espaço. Porque, muitas vezes, é pura ocupação de espaço, pura marcação de território, puro automatismo. É uma espécie de colonização do território da comunidade, ou do território público. É sonambulismo existencial.

O “tzimtzum” permite olhar para o tempo, não tanto para o espaço, e ouvir os múltiplos tempos que existem dentro de nós. Santo Agostinho, nas Confissões, fala de três presentes: o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes, e o presente das coisas futuras. O tempo é superior ao espaço.

Este é um tempo de grande escuta espiritual. Este é o momento para percebermos que a vida não se esgota no momento, no instante, na arquitetura do quotidiano, mas que a vida tem uma respiração muito maior. E nós temos de ouvir os passos do futuro, e dialogar com o futuro de outra forma.

Não tenho dúvidas de que entramos numa nova época da história. A pandemia vai passar. Mas nós já estaremos outra época. Culturalmente noutra época. Civilizacionalmente noutra época. Mas também espiritualmente noutra época da história. É importante que em termos da espiritualidade também nos preparemos para entrar nesse tempo novo, que já é o tempo que estamos a viver. Por isso, não podemos olhar para este momento apenas como um parêntesis, como uma suspensão, e depois vamos voltar a viver tudo o que vivíamos – isso não é ajustado à realidade. Temos de encontrar novas linguagens; este tempo é um laboratório. E temos de ouvir o futuro, que já está aqui, porque, como diz Santo Agostinho, há um presente do futuro.

Uma última dimensão que queria sublinhar é que este tempo de isolamento é muito intenso de relação. E é um tempo de intensificação da relação. Porque é muito viciante, e é um jogo viciado, acharmos que só existe uma forma de presença, ou que a ausência tem sempre o mesmo sentido; que a distância e a proximidade se leem de uma forma unívoca. Não. Muitas vezes estamos próximos e estamos completamente ausentes; muitas vezes encontramo-nos e só esbarramos uns nos outros; muitas vezes estamos em comunidade e somos ilhas, não arquipélagos. E este é um tempo para redescobrir e retrabalhar as histórias de amor. E eu não tenho dúvida de que este tempo faz-nos descobrir tanto, tantas possibilidades.

Na história da cultura do século passado, vemos que grandes obras da literatura, da filosofia, da música, da pintura, da espiritualidade, aconteceram em contextos dramáticos, como o que estamos a viver. Franz Rosenzweig, o grande filósofo, escreveu a sua Estrela da redenção nas trincheiras da primeira guerra mundial; Messiaen escreveu a sua obra mais famosa, o Quarteto para o fim dos tempos, num campo de concentração. A Guernica, um dos símbolos da arte do século XX, foi escrita no impacto da guerra civil espanhola.

Uma das grandes místicas do século XX é, sem dúvida, Etty Hillesum, esta jovem holandesa judia, muito próxima do cristianismo, laica e crente ao mesmo tempo, que, podendo escapar do campo de concentração, se oferece como voluntária para nele trabalhar, e nele acaba como prisioneira. E Etty Hillesum diz esta coisa espantosa: este tempo em que parece que a nossa alma soçobra, este é o tempo para olhar os lírios do campo.

Há um desafio enorme neste tempo. E vemos a quantidade de histórias de amor, pequenas histórias, os médicos, os enfermeiros, o pessoal técnico, as pessoas dos laboratórios, tantos sacerdotes, tantas comunidades; mas não só: tantos gestos de amor: as pessoas que dizem, nos seus prédios, aos mais idosos, que vão fazer as compras; aqueles que não querem deixar ninguém para trás; todos esses gestos de amor são alguma coisa que está a transformar este tempo numa catedral.

Como é que eu vejo a espiritualidade neste tempo de pandemia? É um tempo de kénosis, mas também de graça; é um tempo de grande precariedade, mas é um tempo para descobrir o precare, a força da oração; é um tempo para voltar às grandes perguntas; é um tempo para criar memórias, para ouvir o futuro, para perceber que o tempo é superior ao espaço.

Podemos pensar: este é um ano para esquecer; este é um ano de vida adiada. Há um grande poeta de língua portuguesa, António Ramos Rosa, que tem um verso maravilhoso: «Não posso adiar o coração para outro século». Este não é um tempo para a pura sobrevivência, este é um tempo para sonhos grandes, para projetos maiores do que nós, é um tempo para dar passos novos, para ensaiar novos caminhos, para sair da caixa, para reinventar o formato, para descobrir novas linguagens. É um tempo para sentir coisas que, possivelmente, até aqui não sentimos.

Eu dou um exemplo da porta ao lado. O papa gosta de falar da santidade da porta ao lado. Na praça onde está a casa onde vivo, estão algumas pessoas sem-abrigo. E, claro, eu procuro ser cuidadoso, ser humano e ser próximo. Mas a verdade é que quando nós temos uma casa, e estamos a falar com uma pessoa sem-abrigo, há uma diferença: nós não estamos completamente naquela situação. Para mim, uma das coisas extraordinárias foi, no primeiro mês após a pandemia, sair de casa e perguntar «como está?» à senhora que dorme na rua, e ela perguntar-me: «E você, como está?». E a pergunta era igual. Porque estávamos no mesmo barco, debaixo da mesma tempestade. Penso que esta aprendizagem é de uma riqueza espiritual que nos pode ajudar muito.


Card. José Tolentino Mendonça
Arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana
Intervenção no ciclo "Tecendo redes - Diálogos online de Teologia Pastoral" (2020), 22.4.2020
Fonte: Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, Brasil
Publicado pelo SNPC em 23.06.2020

23 junho 2020

Pénaltis no escuro *

Quando, na primeira ou na segunda classe, a professora ensinou que cada pessoa tinha cinco sentidos, o Armando ficou confuso. Tinha o olfacto, que usava para encontrar o caminho até à cozinha, e também o paladar com que adivinhava o que era o almoço e o jantar. Tinha o tacto, com que descobria a forma das mesas e dos sofás da sala. A audição também lá estava, para ouvir a campainha no recreio.

Mas o último dos cinco sentidos sempre lhe faltou. Desde o dia em que nasceu até ao fim da sua vida. O que para os outros eram conceitos tão banais como as cores, ou como a lua e as estrelas, para ele eram exercícios de imaginação com que se entretinha quando se deitava de noite na cama.

Os pais deram-lhe o nome Armando, em honra do astro do futebol argentino. Quando souberam da sua condição resignaram-se com o facto de este sonho nunca se vir a concretizar, e culparam o destino por tamanha desfeita. Mas esse destino que tanto amaldiçoaram trocou-lhes as voltas, e o facto do Armando não ver não o impediu de vir a chutar uma bola.

Quando a campainha tocava para o recreio, todos os rapazes corriam para o campo de futebol. O Armando sentava-se na bancada a ouvir os gritos e o barulho da bola a raspar no alcatrão e a imaginar o que se estaria a passar.

E, enquanto alguns eram os últimos a ser escolhidos para as equipas, por culpa da falta de jeito, o Armando não chegava sequer a ser escolhido, por culpa da falta de visão. Para que quero eu um cego na minha equipa? Nem sequer serve para guarda-redes, não consegue ver os chutos! E a todos os intervalos a história repetia-se. Os rapazes corriam para o campo, gritavam uns com os outros, esfolavam os joelhos no chão atrás de uma bola, e o Armando ia andando devagarinho para a bancada.

Até ao dia em que, quando passava ao lado do campo para ir para casa, um colega de turma o chamou. Oh Armando!, anda cá dar um chuto na bola, para veres como é. E o Armando foi. Sempre tivera curiosidade em saber como seria jogar futebol, mas faltara-lhe a coragem para pedir. Nunca o disse, mas concordava com o que diziam dele. Se não conseguia ver a bola a vir, como é que podia jogar?

O colega pôs a bola à frente do seu pé esquerdo e disse-lhe que a baliza estava mesmo à sua frente. Era só rematar com a ponta do pé, a direito. Primeiro chuto, primeiro golo. Segundo chuto, segundo golo. E a partir daí, todos os remates que fazia iam invariavelmente até à baliza.

E todos os dias, depois das aulas e antes de ir para casa, ia treinar para o campo. Pousavam a bola no chão, diziam-lhe onde estava a baliza, e o Armando puxava o pé atrás. Chuto, golo.

Depois de tanto treino, passou a ser escolhido para as equipas do intervalo. Enquanto a bola estava em movimento, estava quietinho no seu canto, para não chocarem com ele. Mas, quando havia um pénalti ou um livre ao pé da baliza, já se sabia quem ia marcar. Diziam-lhe ao ouvido onde estava a baliza, o guarda-redes e a barreira, e a grande maioria das vezes a bola ia parar lá dentro.

O facto de ser cego não o deixava ver a bola chegar, mas quando a bola estava parada este problema já não se punha. E foi assim que o Armando, mesmo cego, se tornou no Maradona daquela escola.

SdB (III)

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* publicado originalmente em 13.07.2010

22 junho 2020

Música e texto dos dias que correm



Sem Acção, de Nada Vale a Inteligência

Os conhecimentos ouvem-se, mas para agir a capacidade de audição é praticamente desprezável. Porque agir é estar próximo das coisas e ouvir é estar afastado das coisas. Alguém que apenas ouve será considerado um intruso no mundo, a Natureza não se sentirá ameaçada. Quem ouve poderá acumular conhecimentos, mas essa acumulação não lutará com a Natureza. Esta resiste bem à inteligência, ao raciocínio e à memória do Homem: todas estas qualidades intelectuais são assuntos que dizem respeito exclusivamente ao mundo da cidade, e o que ameaça a Natureza são as acções: os momentos em que os humandos abandonam a audição, e mesmo a linguagem do discurso, e passam a querer falar com o tacto: o único que pode alterar as coisas.

Se os homens, mantendo a sua inteligência incorrupta, fossem seres imóveis, incapazes de qualquer movimento, seriam ainda hoje menos poderosos do que um único metro quadrado de terra espontâneo. Poderiam possuir um grau de aperfeiçoamento no pensamento abstracto, matemático e lógico, mas não deixariam de ser uma espécie secundária ao lado das outras: as possuidoras de movimento. Qualquer cão mesquinho mijaria nas pernas de um homem inteligente, mas imóvel.

Gonçalo M. Tavares, in "Um Homem: Klaus Klump"

21 junho 2020

12º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 10,26-33
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo, disse Jesus aos seus apóstolos:
"Não tenhais medo dos homens,
pois nada há encoberto que não venha a descobrir-se,
nada há oculto que não venha a conhecer-se.
O que vos digo às escuras, dizei-o à luz do dia;
e o que escutais ao ouvido proclamai-o sobre os telhados.
Não temais os que matam o corpo,
mas não podem matar a alma.
Temei antes Aquele que pode lançar na geena a alma e o corpo.
Não se vendem dois passarinhos por uma moeda?
E nem um deles cairá por terra
sem consentimento do vosso Pai.
Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados.
Portanto, não temais:
valeis muito mais do que os passarinhos.
A todo aquele que se tiver declarado por Mim
diante dos homens
também Eu Me declararei por ele
diante do meu Pai que está nos Céus.
Mas àquele que me negar diante dos homens,
também Eu o negarei
diante do meu Pai que está nos Céus".

19 junho 2020

Da venda de uma pequena quinta

Ontem, juntamente com um primo - e em representação do resto da família - formalizei a venda de uma pequena quinta que nos era comum. O acto em si, uma escritura que durou pouco mais de 40 minutos, suscita-me duas ordens de devaneio.

1. A pandemia

Numa sala semi-acanhada de um advogado de província estavam 11 pessoas, todas de máscara: eu, duas pessoas da minha família e a nossa advogada; a compradora e namorado, a sua advogada, um representante da imobiliária, a notária e mais dois técnicos. A compradora é uma rapariga nova, belga, com uns olhos bonitos, e que me dizem ser muito simpática. Não tendo o hábito de vender quintas de família ou outros imóveis, nunca na vida me tinha deparado com uma cerimónia tão fria, tão impessoal, tão distante. O distanciamento social elimina o beijo ou o aperto de mão, a máscara impede a constatação de um face bem disposta. Ambas as coisas, somadas ou concomitantes, impedem um módico de humanidade, de proximidade, de calor afectivo. Contei uma história associada ao nome próprio da compradora, e que é um nome muito comum na minha família, e senti-me despropositado, porque não percebi se ela tinha achado interessante. 

Diz-se que é o sorriso que estabelece o comércio entre as pessoas. Talvez seja e, ao não existir - ou a existir por detrás de uma máscara - o comércio não é mais do que uma transacção que, não fossem as necessidades legais, poderia ser feita por zoom. Ao fim de 40 minutos despedimo-nos com o mesmo calor com que nos despedimos de alguém que nos traz uma encomenda: com educação e vagueza.

2. A família

Por circunstâncias próprias do meu crescimento e da minha vida familiar / social, fui consolidando a ideia de que a família não era o sangue. Podíamos sentir-nos mais familiares de uma vizinha de quem sempre fomos próximos do que de um primo direito a quem nada nos ligava. Não obstante, fui sendo educado - por via de uma capilaridade, não de uma instrução - que a família era o sangue; ou que era muito o sangue. A idade, a experiência ou uma certa sorte, permitiu uma convicção: família é tudo. Ou seja, o não sangue, mas o sangue também. Por vezes o que nos define como família não é, nem a proximidade, nem a semelhança de idades, nem uma convivência próxima, mas uma certa ideia de património imaterial que nos é comum por via de um nome de família. 

Do ponto de vista afectivo nada me ligava à pequena quinta que agora vendi / vendemos. Nunca lá passei férias, em 62 anos de vida não tenho memória de mais de meia dúzia de visitas. Contudo, dentro de mim alojou-se uma certa pena - vendi algo que também era património, sobretudo imaterial, de uma família comum. O desgosto (passe o exagero) que eu tive na venda da quinta é em quantidade igual ao gosto que eu tenho em conhecer um primo (que talvez nunca mais veja) numa qualquer festa. Há qualquer coisa, invisível e intangível, que nos aproxima. O quê? Um antepassado vago, uma história que se ouviu, uma memória comum, um conceito. Talvez a ideia, afectivamente racional (ou a sua inversa) de que família é (também) o sangue. 

JdB             
     

17 junho 2020

Vai um gin do Peter’s ?

MÁSCARAS E TIQUES DE SEGURANÇA CANSATIVOS 

Penso que será consensual o desconforto de usar máscara, a atrapalhar a respiração e até a visão, a fazer calor e a esconder demasiado as feições. É como se meia burka já estivesse a fazer caminho entre nós… Isto não nega que poderá ser uma prevenção sanitária válida para o próprio e para os outros. Qualquer sistema de saúde fragiliza-se se for muito pressionado e o nosso já está frágil, pelo que agradecerá termos um cuidado simples – ainda que irritante – para se evitarem contágios escusados. Mesmo que este vírus seja de perigo questionável, esta acumulação de ordens (algumas num ziguezague confuso, já para não nos determos na multiplicação das excepções incompreensíveis) servirá de estágio para novas pandemias, para lá de uma eventual segunda vaga. Este coronavírus pode ser apenas ‘o fim do princípio’, evocando a expressão de Churchill depois de um ano de guerra.  Em Portugal, até temos a sorte de haver bastante sol, o que costuma erradicar vírus. Esperemos que este não seja uma excepção e tenha causa natural, etc. etc.

Foi a pensar neste tempo bizarro, a ficar sobrecarregado com um ritual de precauções maçador, que a recordação de um episódio com um chefe carismático da Lisnave pode ser inspiradora. Aquele líder com tacto e sentido de humor dava o maior jeito, nesta fase, mas teremos de viver com o que há, como bem sugere o autor, a quem volto a agradecer a possibilidade de postar o seu texto:     


«O capacete do Eng. Perestrello

A maior parte das histórias que conheço da vida profissional do meu Pai foram-me contadas por outros, mas ele abria excepções a esta reserva quando não era o protagonista, ou quando se via como testemunha passiva dos acontecimentos. Foi assim que conheci, através dele, a história dos capacetes.


O assunto era muito importante para o meu Pai, empenhado em promover a segurança dos operários nos estaleiros navais de Lisboa. Uma das suas iniciativas foi comprar capacetes de protecção e pedir aos Directores de cada Departamento que os distribuíssem ao pessoal. A seguir, visitou cada zona de trabalho para verificar se as instruções estavam a ser cumpridas. Infelizmente, em toda a parte estava montada uma autêntica «guerra civil». De um lado, os trabalhadores queixavam-se de que era impossível trabalhar com capacete, de que os capacetes faziam mal à saúde e até criavam situações de perigo. Do outro lado, os Directores não cediam no uso obrigatório dos capacetes ainda que, na melhor das hipóteses, só conseguissem vitórias momentâneas, que não duravam mais do que o tempo de eles virarem as costas. A guerra ainda não tinha começado no Departamento do Eng. Perestrello, porque ele, em vez de distribuir imediatamente os capacetes, seguiu outra estratégia.


Vale a pena apresentar brevemente o Eng. Perestrello. Embora eu não o tenha conhecido directamente, ouvi testemunhos. Era um homem alto, elegante. Herdara da sua família ilustre um certo toque de classe, ainda que ele fosse tão acessível e natural que o relacionamento era descontraído e agradável, sem se notarem as diferenças hierárquicas. Apreciava cada pessoa, gostava de conversar e de conviver, e toda a equipa, desde os operários aos engenheiros e aos colegas da Direcção, reconhecia a sua liderança. Chegou a ser o Administrador-Delegado do estaleiro da Lisnave.


Como disse, quando recebeu instruções para distribuir os capacetes, o Eng. Perestrello não se apressou. Começou por reunir a Direcção e os engenheiros e combinar que eles próprios passariam a usar capacete. No dia seguinte, mal desceu às oficinas, com o seu capacete, foram os operários que se dirigiram a ele e lhe pediram para também receberem capacetes: «se os Directores e os engenheiros usam capacete, muito mais se justifica essa protecção para quem trabalha nas oficinas». Não foram precisos muitos argumentos para o convencer e rapidamente se contabilizou e se distribuiu o número de capacetes necessários.


Nos outros departamentos, a tensão da «guerra dos capacetes» arrastou-se por mais tempo e a melhoria das condições de segurança no estaleiro, neste domínio e noutros, exigiu um esforço enorme e persistente. Só no departamento do Eng. Perestrello as coisas eram diferentes.  Aí – contava o meu Pai –, os operários almoçavam de capacete na cabeça.


 
A Administração e alguns Directores do estaleiro acompanham membros do Governo numa visita oficial em 1965. Não era só o Eng. Perestrello a usar capacete, mesmo nestas ocasiões


As máscaras faciais, as viseiras e todas as regras de segurança que as autoridades estabeleceram para o actual tempo de pandemia recordam-me os capacetes do estaleiro naval nos anos sessenta. Algumas pessoas sentem verdadeira repugnância em cumprir as regras e estão convencidas de que as exigências são inúteis, ou até prejudiciais. Sobretudo quando o Governo, ou até as autoridades eclesiásticas, dão directivas concretas em relação às igrejas e às cerimónias religiosas, ferve-lhes o sangue de indignação pelo desprezo das coisas de Deus e o desrespeito pela liberdade fundamental de Lhe prestar culto. Realmente, a obediência é uma virtude difícil quando choca com o nosso ponto de vista.

Talvez uns líderes tenham mais jeito que outros para facilitar a obediência. Em todo o caso, é interessante reparar como – dependendo da perspectiva com que vemos as situações – a mesma coisa nos parece intolerável ou a consideramos um direito honrosamente conquistado.


Talvez a obediência mais custosa tenha mais mérito e dê mais alegria a Deus. Ainda que talvez, com alguma distância emocional, acabemos por reconhecer que «não era caso para tanto».



José Maria C. S. André
Publicado a 14 de Junho de 2020 em blogues luso-canadianos
e em diário açoreano. 

Repescando a importância do ponto de observação para a forma de percepcionar a realidade e depois reagir, uma imagem certeira clarifica esse peso. Goethe tinha a convicção de que a maioria dos desentendimentos entre as pessoas era fruto de meros mal-entendidos, cada um a partir da sua perspectiva pessoal, com pouca capacidade, por vezes também sem especial vontade, de se colocar na posição do outro para entender as suas motivações e tentar alguma aproximação. 


Que dizer das diferenças óbvias e, por vezes, abissais entre os pontos de vista de gerações separadas por séculos de distância? Que dizer da actual vaga de pretensos julgamentos ao passado, alimentada pelo típico atrevimento dos mais ignorantes, rápidos a resvalar para as  reacções categóricas e impositivas? Que dizer do desrespeito alarve pelo património artístico dos povos, a pretexto de não passar no crivo de gente disposta a fazer tábua rasa da história? Que dizer desta intentona para reescrever a história sob a batuta de uma censura violenta e em tolerância zero? De facto, são sempre as mentalidades censórias as adeptas de apagar e reformular a memória do passado. No fundo, já estamos a presenciar actos de cariz totalitário, ainda que os desordeiros tenham pouca ou nenhuma noção disso, apenas deambulando ao sabor das multidões, especialmente vulneráveis ao descontrole e à irracionalidade. De facto, deveria fazer soar campainhas nas nações que prezam a liberdade, enquanto a onda não evolui para tsunami. Ironicamente, voltamos a constatar que este tipo de vandalismo medra melhor em ambientes democráticos, à sombra da liberdade de expressão. O menos que se lhes pode sugerir, com fleuma britânica, é:


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

16 junho 2020

Poemas dos dias que correm *

Obrigada por terem aguardado

Senhores passageiros,
Vamos dar início ao embarque.
Neste momento convidamos somente os passageiros de Primeira Classe.
Obrigada por terem aguardado.

Convidamos agora a embarcar
os passageiros Membros Corporativos Exclusive, Superior, Privilege e Excelsior,
seguidos dos passageiros Membros Corporativos Platina triplo, duplo ou single,
seguidos dos passageiros Membros Corporativos Gold e Silver,
seguidos dos passageiros Membros Corporativos Coral Club.
Podem embarcar igualmente militares que se apresentem devidamente fardados.

Obrigada por terem aguardado. Convidamos agora
a embarcar os passageiros Membros Corporativos Bronze Alliance e os passageiros
que se inscreveram no nosso sistema de pontos Metais Raros e no Esquema de Gratificações, e obrigada por terem aguardado.

Obrigada por terem aguardado. Gente Reconhecida e Comprovadamente Bela
pode agora embarcar, bem como os cavalheiros que tragam consigo uma cópia
da revista Cigar Aficionado, bem como os passageiros que subscreveram
a nossa promoção Diamante Vermelho, Opala Negra, ou Granada Azul.
Podem embarcar agora os passageiros com cartões Safira, Rubi e Esmeralda,
seguidos dos passageiros com cartões Ametista, Onix, Obsidiana, Azeviche,
Topázio e Quartzo. Podem também embarcar agora os clientes cuja tarifa lhes dá direito à Fast Track ou à Faixa de Embarque Prioritário, os passageiros das Elites Eleitas, os clientes com Acesso Preferencial e os Primeiros Entre os Iguais.

Convidamos também a embarcar os passageiros com comprovativo
de elegância e um valor mínimo de dez mil dólares americanos,
vestindo peças de estilistas e/ou fatos de alfaiate;
convidamos também a embarcar os passageiros que tenham peças de joalharia
(incluindo relógios de pulso) com preço de venda a retalho
superior ao salário anual médio
de um professor do ensino secundário a meio da carreira.

Podem também agora embarcar os passageiros que falem alto
aos telemóveis sobre vendas de acções recentemente concluídas,
compra de imóveis e aquisições agressivas,
bem como gestores de fundos de investimento com comprovado registo
no enfraquecimento de pequenas ou médias ambições.

Podem também embarcar agora os passageiros nas classes
Argila, Calcário, Marga e Barro. Os passageiros que adquiriram
os nossos pacotes Dignity ou Orquídea da Manhã
podem recolher os seus fatos de treino desinfectados antes do embarque.

Obrigada por terem aguardado.
Convidamos agora a embarcar os passageiros medíocres,
seguidos dos passageiros a quem falta perspicácia empresarial
ou potencial para genuína liderança, seguidos da gente
com pouca ou nenhuma importância, seguidos de gente
que funciona como gente em perda fiscal.
Os passageiros com bilhetes para as zonas Ferrugem, Serradura, Papelão,
Poça e Areia podem agora começar a reunir os seus
pertences e migalhas e preparar-se para o embarque.

Pedimos aos passageiros dependentes parcial ou totalmente da
assistência social ou da bondade que validem os seus cupões de viagem
junto do Balcão da Quarentena.

Suor, Pó, Reles, Caspa, Fezes, Palha, Restos,
Cinza, Pus, Lama, Tijolo, Farpa e Fuligem;
podem todos embarcar agora.

(tradução de Ana Luísa Amaral)

***

Thank you for waiting

At this moment in time we’d like to invite
First Class passengers only to board the aircraft.

Thank you for waiting. We now extend our invitation
to Exclusive, Superior, Privilege and Excelsior members,
followed by triple, double and single Platinum members,
followed by Gold and Silver Card members,
followed by Pearl and Coral Club members.
Military personnel in uniform may also board at this time.

Thank you for waiting. We now invite
Bronze Alliance Members and passengers enrolled
in our Rare Earth Metals Points and Reward Scheme
to come forward, and thank you for waiting.
Thank you for waiting. Accredited Beautiful People
may now board, plus any gentleman carrying a copy
of this month’s Cigar Aficionado magazine, plus subscribers
to our Red Diamond, Black Opal or Blue Garnet promotion.
We also welcome Sapphire, Ruby and Emerald members
at this time, followed by Amethyst, Onyx, Obsidian, Jet,
Topaz and Quartz members. Priority Lane customers,
Fast Track customers, Chosen Elite customers,
Preferred Access customers and First Among Equals customers
may also now board.

On production of a valid receipt travellers of elegance and style
wearing designer and/or hand-tailored clothing
to a minimum value of ten thousand US dollars may now board;
passengers in possession of items of jewellery
(including wristwatches) with a retail purchase price
greater than the average annual salary
of a mid-career high school teacher are also welcome to board.


Also welcome at this time are passengers talking loudly
into cellphone headsets about recently completed share deals
property acquisitions and aggressive takeovers,
plus hedge fund managers with proven track records
in the undermining of small-to-medium-sized ambitions.

Passengers in classes Loam, Chalk, Marl and Clay
may also board. Customers who have purchased
our Dignity or Morning Orchid packages
may now collect their sanitised shell suits prior to boarding.

Thank you for waiting.
Mediocre passengers are now invited to board,
followed by passengers lacking business acumen
or genuine leadership potential, followed by people
of little or no consequence, followed by people
operating at a net fiscal loss as people.
Those holding tickets for zones Rust, Mulch, Cardboard,
Puddle and Sand might now want to begin gathering
their tissues and crumbs prior to embarkation.

Passengers either partially or wholly dependent on welfare
or kindness, please have your travel coupons validated
at the Quarantine Desk.

Sweat, Dust, Shoddy, Scurf, Faeces, Chaff, Remnant,
Ash, Pus, Sludge, Clinker, Splinter and Soot;
all you people are now free to board.

Simon Armitage

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Retirado daqui

15 junho 2020

Textos dos dias que correm

A Dor como Padrão para a Intensidade dos Sentidos

Normalmente, a ausência de dor é apenas a condição física necessária para que o indivíduo sinta o mundo; somente quando o corpo não está irritado, e devido à irritação voltado para dentro de si mesmo, podem os sentidos do corpo funcionar normalmente e receber o que lhes é oferecido. A ausência de dor geralmente só é «sentida» no breve intervalo entre a dor e a não-dor; mas a sensação que corresponde ao conceito de felicidade do sensualista é a libertação da dor, e não a sua ausência. A intensidade de tal sensação é indubitável; na verdade, só a sensação da própria dor pode igualá-la.

Hannah Arendt, in 'A Condição Humana'

***

A Dor e o Prazer

A natureza colocou o género humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está vinculada, por uma parte, a norma que distingue o que é recto do que é errado, e, por outra, a cadeia das causas e dos efeitos.
Os dois senhores de que falamos governam-nos em tudo o que fazemos, em tudo o que dizemos, em tudo o que pensamos, sendo que qualquer tentativa que façamos para sacudir esse senhorio outra coisa não faz senão demonstrá-lo e confirmá-lo. Através das suas palavras, o homem pode pretender abjurar tal domínio, porém na realidade permanecerá sujeito a ele em todos os momentos da sua vida.

Jeremy Bentham, in 'Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação'

14 junho 2020

11º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 9,36-10,8

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus, ao ver as multidões, encheu-Se de compaixão,
porque andavam fatigadas e abatidas,
como ovelhas sem pastor.
Jesus disse então aos seus discípulos:
«A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos.
Pedi ao Senhor da seara
que mande trabalhadores para a sua seara».
Depois chamou a Si os seus doze discípulos
e deu-lhes poder de expulsar os espíritos impuros
e de curar todas as doenças e enfermidades.
São estes os nomes dos doze apóstolos:
primeiro, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão;
Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão;
Filipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o publicano;
Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu;
Simão, o Cananeu, e Judas Iscariotes, que foi quem O entregou.
Jesus enviou estes Doze, dando-lhes as seguintes instruções:
«Não sigais o caminho dos gentios,
nem entreis em cidade de samaritanos.
Ide primeiramente às ovelhas perdidas da casa de Israel.
Pelo caminho, proclamai que está perto o reino dos Céus.
Curai os enfermos, ressuscitai os mortos,
sarai os leprosos, expulsai os demónios.
Recebestes de graça, dai de graça».

12 junho 2020

Duas Últimas

Swingle Singers: "conheci-os" talvez em 1969 a cantarem Bach, através de um disco do meu Pai que se ouvia muito lá em casa. O mesmo conceito, algumas décadas depois.

JdB


11 junho 2020

Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo

EVANGELHO - Jo 6, 51-58

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
disse Jesus à multidão:
«Eu sou o pão vivo descido do Céu.
Quem comer deste pão viverá eternamente.
E o pão que Eu hei de dar é a minha Carne
pela vida do mundo».
os judeus discutiam entre si:
«Como pode Ele dar-nos a sua Carne a comer?»
Jesus disse-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Se não comerdes a Carne do Filho do homem
e não beberdes o seu Sangue,
não tereis a vida em vós.
Quem come a mina Carne e bebe o meu Sangue
tem a vida eterna;
e Eu o ressuscitarei no último dia.
A minha Carne é verdadeira comida
e o meu Sangue é verdadeira bebida.
Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue
permanece em Mim, e Eu nele.
Assim como o Pai, que vive, Me enviou, e Eu vivo pelo Pai,
também aquele que me come viverá por Mim.
Este é o pão que desceu do Céu;
não é como aquele que os vossos pais comeram, e morreram;
quem comer deste pão viverá eternamente».

10 junho 2020

Duas Últimas


Comecei há pouco a ler o livro acima; tal como o nome indica, é o primeiro volume de uma colectânea de textos, sobre arquitectura, do arquitecto americano Frank Lloyd Wright (1867 - 1959). É claro que já me tinha vindo à memória a música de Simon & Garfunkel intitulada So Long, Frank Lloyd Wright. Ontem decidi ir ver a letra e o que estava por detrás da composição. E percebi que a música é de despedida: na cabeça de Paul Simon já estava imaginada a ruptura musical entre ambos. Art Garfunkel, que tinha sido estudante de arquitectura, só anos mais tarde veio a perceber que a música era para ele.

Aos 2'56" alguém grita do fundo: So long already, Artie.

JdB



So Long, Frank Lloyd Wright

So long, Frank Lloyd Wright
I can't believe your song is gone so soon
I barely learned the tune
So soon
So soon

I'll remember
Frank Lloyd Wright
All of the nights we'd harmonize till dawn
I never laughed so long
So long
So long

Architects may come and
Architects may go and
Never change your point of view
When I run dry
I stop awhile and think of you

So long, Frank Lloyd Wright
All of the nights we'd harmonize till dawn
I never laughed so long
So long
So long

09 junho 2020

Da pandemia como carrasco ou gerador de um certo tipo de relacionamento

Segundo João Miguel Tavares, numa conversa do Observador sobre novos espaços de trabalho (penso que na semana passada) se a palavra mais usada nos últimos tempos é pandemia, a segunda será teletrabalho. São essas as duas que interessam para este meu devaneio.

Dois pequenos episódios: 

(i) Estou na Igreja. Passa por mim uma pessoa de quem sou amigo; engraçada como é, diz-me a rir por detrás da máscara que lhe tapa uma faixa de rosto que vai do nariz até ao queixo: sou fulana... 

(ii) Estou num supermercado. Passa por mim um cavalheiro que eu não me parece saber quem é; traz uma máscara que lhe tapa uma faixa de rosto que vai do nariz até ao queixo. Acena e baixa a máscara para se identificar; embora não conheça o cavalheiro (posso estar enganado, contudo) baixo também a minha máscara. De facto, não nos conhecemos, mas só percebemos isso com a cara destapada

Não tenho histórias curiosas de teletrabalho, cujo modelo sigo quase exclusivamente ha 13 anos. O que sei, o que vou ouvindo por aí, é que o futuro da vida profissional das pessoas passará desejavelmente por um sistema misto: as pessoas vão ao emprego uns dias, trabalharão em casa outros. O terrível deste sistema, agravado com uma utilização generalizada da máscara em lugares públicos ou mais confinados, é que matará uma forma de romance que era determinante para um tipo de pessoas. Em bom rigor, o meu raciocínio poderia aplicar-se ao mundo universitário, com o misto de aulas à distância e aulas presenciais com máscara.

Conheci pessoas que casaram com colegas de faculdade; conheci pessoas que casaram com colegas de emprego; conheci pessoas cuja vida social passava quase exclusivamente pelos/as colegas de faculdade ou de emprego. Esse modelo de vida está em risco, e o governo deveria olhar para estas pessoas, não como um foco de dificuldades económicas, mas como um problema de saúde mental - ou como um caso de estudo a ser publicado nas revistas da especialidade. Pode ser tudo, o que dificulta a análise e a respectiva medida correctiva.

Na verdade, com o teletrabalho as pessoas ver-se-ão menos; com a obrigatoriedade da utilização da máscara as pessoas ver-se-ão ainda menos. Ora, não se vendo, resta-lhes apaixonarem-se (ou aproximarem-se socialmente) por aquilo que intuem uma da outra, por aquilo que vão descobrindo, pela beleza interior tão desvalorizada face aos atributos físicos. As pessoas apaixonar-se-ão também pela voz - ou pelo tacto. Mas fá-lo-ão intermitentemente, em função dos dias a que o patrão as manda ir trabalhar à empresa.

O Sr. Santos contínuo e a D. Adélia da Contabilidade, ambos empregados numa metalúrgica de Fernão Ferro? O Alberto (de Fornos de Algodres) e a Sandra (de Bencatel) ambos estudantes de Antropologia? A vida ser-lhes-á mais penosa, o encanto mútuo gerado pela proximidade profissional ou universitária mais difícil. Resta-lhes o zoom e uma máscara mais criativa. O que está por trás fica remetido para o exercício da imaginação e para as 2ªs, 3ªs e 6ªs quando cruzarem os olhos e imaginarem uns dentes.

JdB 

07 junho 2020

Duas Últimas (enviado por mão amiga)

Solenidade da Santíssima Trindade

EVANGELHO - Jo 3,16-18

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
disse Jesus a Nicodemos:
«Deus amou tanto o mundo
que entregou o seu Filho Unigénito,
para que todo o homem que acredita n'Ele
não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo
para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por Ele.
Quem acredita n'Ele não é condenado,
mas quem não acredita n'Ele já está condenado,
porque não acreditou no nome do Filho Unigénito de Deus».

05 junho 2020

Poemas dos dias que correm

Quando vier a Primavera

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Alberto Caeiro

***

Despedida

Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo.

Mia Couto

04 junho 2020

Do Rio de Janeiro em 1977

Não estou a contar que a maioria das pessoas que visita este estabelecimento se entretenha a ver um filme de mais de 40 minutos sobre o Rio de Janeiro de 1977. Mas vale a pena - talvez, digo eu - ver meia dúzia de minutos para perceber o que eu já partilhei neste estabelecimento quanto ao fascínio da minha primeira ida à cidade maravilhosa, talvez em 1975.

Não tenho vocabulário interior para explicar o que foi o impacto daquela relativamente curta viagem. Não sei se eram os meus 17 anos, se era a primeira viagem transatlântica de avião, se era o facto de partir no Inverno e, algumas horas depois, aterrar no calor húmido do Verão; não sei se era a praia, uma sensação de leveza que eu não tinha capacidade para apreender, ou o contraste daquilo que eu conhecia do estrangeiro - Badajoz e Londres. Talvez fosse apenas o chá mate ou chá limão na praia, ou a lanchonete Bob's, onde comíamos uma sandes de ovo e bebíamos um choppinho ao fim da tarde. Alguma coisa era. Talvez fosse, simplesmente, a minha primeira viagem sem a autoridade paternal por perto. 

O Rio de Janeiro de 1975 - e ainda muito em 1977 quando lá fui pela segunda vez - era uma cidade segura: andava-se de ônibus a altas horas da noite, não se era assaltado nas ruas, o calçadão era aquilo que se vê no filme: desafogado, limpo, em cima de uma praia de uma beleza imensa onde nada se roubava quando íamos tomar banho. Em 2002 ou 2003, quando lá voltei por uns dias, quase não podia sair-se do hotel após o cair da noite.

Vi meia dúzia de minutos do filme. Do ponto de vista cronológico poderia aparecer no filme, porque estava lá naquele ano; porém, tudo aquilo me pareceu de uma época tão distinta, tão afastada da minha, tão longínqua no tempo, que me achei deslocado. Afinal, só se passaram 43 anos; e eu estou 43 anos mais velho. O primeiro comentário a este filme diz tudo: Meu Deus !!!!!!!!!! Éramos felizes e não sabíamos. Tempos maravilhosos. Quem conheceu o Rio de 1975 e conhece o Rio agora talvez profira o lamento com uma propriedade que não é a minha, que não vivo lá. Mas sim, gostava de recuar 43 anos e revisitar tudo; até mesmo  - ou talvez sobretudo - a emoção.

JdB

03 junho 2020

Vai um gin do Peter’s ?

UMA CRIANÇA DESENHOU A SAUDADE E MERGULHOU NO DESENHO

Uma imagem forte está, compreensivelmente há anos, a percorrer as redes sociais. Menos compreensível são as conotações quase opostas a que se tem prestado, tirando partido do seu enorme impacto, pelos vistos muito versátil. 

Se dúvidas houvesse sobre a elasticidade da expressão humana para influenciar a carga de significado de determinada mensagem, a história da divulgação da fotografia que se segue, é a melhor prova desse potencial, por vezes, a poder rasar alguma manipulação. 

Hoje, sublinha-se o problema das «fake news» como se a mentira fosse um fenómeno novo e não acompanhasse a humanidade desde o início, estando logo no epicentro da parábola do jardim do Éden. São, geralmente, lançadas com intencionalidade manipulativa, por governantes e gente do poder (mas não apenas) no afã de pontificarem sobre o rumo dos acontecimentos. Exemplos óbvios: Nero, Calígula, Filipe o Belo, Elizabeth I, Richelieu, Bismark, Rasputine, Lenine, Mussolini, Hitler, George W. Bush no caso da invasão do Iraque, etc. 

A tal imagem tão glosada parte de um jogo infantil comum, pelo menos no Médio Oriente pobre, de desenhar a giz, no chão, os desejos e os melhores sonhos. Foi nesse contexto que uma pequena orfã se aconchega, poeticamente, no coração da mãe querida que desenhou e ali adormece. Consta que nem terá chegado a conhecê-la, mas pouco é explicado sobre as circunstâncias daquela morte, se de doença, guerra, acidente (só na repescagem recente se atribui à guerra, que vem insinuada mas não provada nas citações mais antigas e próximas da fonte). Segundo o costume muçulmano, a criança entra descalça em solo sagrado, porque assim concebe o interior dos contornos da figura maternal gravados no chão:


Em 2013, a imagem circulou como crítica à invasão e desmantelamento do Iraque pelas tropas norte-americanas a mando de George W.Bush, embora continue por esclarecer a causa da morte daquela mãe, por hipótese – ainda que menos provável – alheia ao conflito militar. De todos os modos, isto em nada diminui a tragédia da guerra, per se. A legenda clarifica o objectivo do divulgador: «No Compassion. Only ambition». 

Em 2014, a imagem continuou a correr no mesmo registo político e acusatório, mas desta vez com o dedo apontado ao Presidente dos EUA em funções – Barack Obama – que proferira um discurso a referir os êxitos obtidos no Iraque: 

(c) Bahareh Bisheh
«Over the last 12 years or so, we have all seen horrific images of the human cost of this ongoing Global War On Terror.  I have heard (and shared) first-hand stories from our Troops of the local children they meet on their deployments in the hellholes of the world...»

Em 2015, surgiu num blog de espiritualidade oriental, integrado num conjunto de fotografias semelhantes, passando a um contexto de exaltação da capacidade humana de superação. A tal ponto vale a apologia, que termina com um cartoon sobre o valor determinante da perspectiva com que se encara a realidade, mesmo a mais adversa. Desse modo, coloca a tónica no olhar e na atitude com que se escolhe lidar com os factos (última imagem desta sequência), sendo que o cartoon apenas mostra a opção positiva adoptada pelos dois protagonistas, apenas diferentes na localização:

LEGENDA: «This picture broke my heart and made me appreciate my life a lot more»


Ao menos, em sonhos, aproximam-se da casa acolhedora que lhes faltará. 

Apesar do perigo em que estão, ambos preferem fixar-se nos motivos que merecem ser festejados.

Em 2017, reapareceu de forma neutra e sem legendas num artigo sobre apoio a menores abandonados, valendo-se da sua eloquência para evidenciar a dor indizível de uma inocente vulnerável. 

Mais recentemente, emergiu em redes sociais brasileiras, readquirindo conotação positiva e maior carga poética enquanto corporização da saudade: 


Na saudade, o desenho da pequenina iraquiana ganha uma dimensão próxima da perspectiva da autora-criança. Nesse sentido, torna-se especialmente verdadeira. Sem se negar a validade dos alertas sobre o horror da guerra e o flagelo da orfandade, a legenda brasileira devolve autenticidade ao gesto magnífico da minúscula artista plástica, que fez arte talvez sem saber. À simplicidade da sua pintura juntou uma coreografia genuína e plena de significado, que alavancou a força daquela mensagem visual. Da saudade, cantaram poetas-escritores brasileiros, que também navegam na língua de Camões dando-lhe, em geral, um colorido caloroso: «Ela estava triste. Não era uma tristeza difícil. Era mais como uma tristeza de saudade. Ela estava só. Com a eternidade à sua frente e atrás dela.» (Clarice Lispector – I); «Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.» (C. Lispector – II); «Guarda estes versos que escrevi chorando / Como um alívio a minha saudade / Como um dever do meu amor  / E quando houver em ti um eco de saudade / Beija estes versos que escrevi chorando.» (Machado de Assis). 

Com razão clamava Pessoa que o melhor do mundo são as crianças, capazes de atingir um patamar de verdade condensada, que as aproxima das estrelas. Não por acaso, também a obra-prima da menina iraquiana só se deixa ver e perceber a partir de cima… do céu, onde habitará a presença mais invisível da sua representação, retratada com sorriso suave e olhos atentos. Naquele recorte em giz onde adormeceu a criança rodeada de eternidade (segundo Lispector), ficou igualmente desenhada a ligação da terra ao céu com passagem pelo coração gigantesco daquela pequenina, que se ofereceu para pulsar com vida no lugar do coração de uma mãe inalcançável à vista, mas pressentida através do olhar interior. Percebe-se por que quis tirar os sapatos.  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

02 junho 2020

Duas Últimas

Muito provavelmente aconteceu comigo o que aconteceu com outros. Talvez mais com outros, dado o meu interesse menos entusiasmado pela chamada música pop do que a generalidade dos meus amigos da mesma idade. Contudo, em festivais, em boîtes, em festas ou, simplesmente, no remanso de um quarto, de um carro ou de um namoro, cantei muitas músicas pop. Hoje percebo que cantava muito sem perceber o que cantava; e percebo que a música, em quase todos os casos, tem mais poder sobre nós do que a letra. 

De facto, e na generalidade dos casos, cantava porque a batida da música - fosse lenta ou agitada - me impelia a isso. Talvez tenha mesmo, no desvario da minha adolescência, sei lá eu, cantado músicas que apelavam ao racismo, à expulsão dos professores, à morte dos padres ou ao incesto. Não sei, imagino eu. Não sei o que cantava, limitava-me a muitas vezes a papaguear palavras ao som de uma música que me agitava o interior.

Na sequência de uma das minhas leitura para efeitos de doutoramento (A Biography of Loneliness) li que Eleanor Rigby, uma música dos Beatles que conheço desde que ela chegou a Portugal, reflecte a preocupação que McCartney, o autor da letra, manifestava, desde criança, pelos idosos. 

[a título de curiosidade, estou a ler outro livro chamado A History of Solitude. Se Loneliness é solidão, solitude é estar sozinho... Dava-me jeito a facilidade dos brasileiros, que traduziram solitude (em inglês)... por solitude (em português)]

Eleanor Rigby seria uma velha solteirona que recolhe o arroz após um casamento que ela nunca gozará. Confesso que não fui investigar; mas fui buscar a letra para perceber que, de facto, cantei isto muitas vezes, talvez numa dada altura soubesse tudo de cor. Mas, na verdade, talvez não fizesse a mais leve ideia do que estava a cantar. Passadas algumas décadas, a pergunta all the lonely people / where do they all come from? já não faz sentido. Sabemos bem de onde vêm. 

JdB

--- 


Eleanor Rigby

Ah, look at all the lonely people
Ah, look at all the lonely people

Eleanor Rigby
Picks up the rice in the church where a wedding has been
Lives in a dream
Waits at the window
Wearing the face that she keeps in a jar by the door
Who is it for?

All the lonely people
Where do they all come from?
All the lonely people
Where do they all belong?

Father McKenzie
Writing the words of a sermon that no one will hear
No one comes near
Look at him working
Darning his socks in the night when there's nobody there
What does he care?

All the lonely people
Where do they all come from?
All the lonely people
Where do they all belong?

Ah, look at all the lonely people
Ah, look at all the lonely people

Eleanor Rigby
Died in the church and was buried along with her name
Nobody came
Father McKenzie
Wiping the dirt from his hands as he walks from the grave
No one was saved

All the lonely people (ah, look at all the lonely people)
Where do they all come from?
All the lonely people (ah, look at all the lonely people)
Where do they all belong?


01 junho 2020

Textos e imagens dos dias que correm

Praia do Macúti (Beira, Moçambique) Setembro de 2008

A vida é uma casa com duas portas. Há uns que entram e que têm medo de abrir a segunda porta. Ficam girando, dançando com o tempo, demorando-se na casa. Outros se decidem abrir, por vontade de sua mão, a porta traseira. Foi o que eu fiz, naquele momento. A minha mão volteou o fecho do armário, a minha vida rodeou o abismo.

(Mia Couto)

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