30 maio 2023

Viagem ao Sudeste Asiático (V) - Kuala Lumpur

 

Kuala Lumpur é uma cidade construída na horizontal e na vertical. Tem estradas amplas, viadutos grandes, arranha-céus que impressionam pela altura e arquitectura. Ao nível horizontal, tudo é feito para os carros - é uma cidade sem passeios, o que torna o passeio a pé numa actividade difícil e desinteressante.  Os peões circulam pouco, e vão de um lado para o outro das estrada através de viadutos. Numa rua larga e movimentada há poucos semáforos e passadeiras para peões. Não obstante, o trânsito pode ser caótico em alguns momentos / locais.

Uma nota curiosa: a Malásia é um país essencialmente muçulmano, e isso vê-se nas ruas, pejadas de mulheres ou raparigas novas usando o hijab. Ontem de tarde passeámos pelo bairro chamado Little India. Dobramos uma esquina e encontramos a Church of Our Lady of Fatima, o que, já de si, é extraordinário. É uma igreja que data de 1963, parece-me, co um interior desornamentado e indiferente. É uma igreja ampla, sem grandes pormenores arquitéctónicos ou curiosos. Só a sua existência (desconheço a história por trás da igreja) já é estatisticamente desafiante. Paramos num passeio para atravessar uma rua e um jovem com ar indiano sorri e diz-me:


- Hello, how are you?’ 

- Respondo na mesma moeda: 'very well, thank you. And you?'

Pergunta de onde somos. Já esteve em Portugal, pois tem família em Berlim. E diz-me ainda (e resumo o diálogo): 

- 'I am christian; I am a catholic from Islamabad. I am from Pakistan.'

Estamos em Little India, onde a presença indiana é óbvia a olhos nus. Qual a probabilidade de num espaço de 15 minutos encontrar uma igreja católica com nome português e um paquistanês católico?

Mistérios...

JdB

29 maio 2023

Viagem ao Sudeste Asiático (IV) - Malaca

 



Estivemos ontem no Portuguese Settlement, em Malaca. Domingo, hora de almoço; estão 33ºC (um real feel de 40ºC) e um teor de humidade de 70% - um clima particularmente agreste. O bairro português está vazio, para além de alguns cães a vaguearem pelas ruas desertas. Há esplanadas desertas, sujas, onde se imagina (e só se imagina, porque não sei) uma alegria de sábado à noite. Domingo é dia de descanso, e os locais talvez estejam em casa a refugiar-se do calor e da humidade sufocantes.

O Portuguese Settlement é um primor de pormenores, muitos deles de desilusão. O espaço é muito sujo, quase se diria porco. Há vestígios de uma portugalidade (também) curiosa (com o tempo porei mais fotografias): uma capela de Nossa Senhora da Conceição, restaurantes com nomes portugueses - Monterios (assim mesmo), dos Mellos, Vera, Restoran de Lisbon - a anunciarem comida tipicamente portuguesa, nomeadamente marisco; um Cristo-Rei de braços abertos e traços orientais a proteger um barco cujas velas enfunadas têm escrito "Portugal"; o hotel Lisboa em ruínas (quem se hospedaria naquele hotel, quando, e para que efeito?), um renque de casas onde em cada frente há um crucifixo, uma moldura com o brasão dos Melos a encimar uma moldura com o brasão (enfim...) da Federação Portuguesa de Portugal. E um quadro onde um "dicionário" tenta mostrar que o kristang ainda resiste ao olvido. 

Em Malaca, os vestígios de Portugal são escassos - umas placas bilingues junto à Famosa (ou o que resta do antigo forte construído pelos portugueses, talvez em 1512, com recurso a forced labor, como está escrito) e este resquício de uma nacionalidade enfraquecida mal representada pelo Portuguese Settlement, onde parece que os defeitos dos portugueses se juntaram aos defeitos dos locais para dar um resultado humanamente imperfeito, demasiadamente imperfeito para a minha sensibilidade.

Quem vai a Malaca tem de ir ao Portuguese Settlement. Não vê o Portugal da arquitectura, como se vê em Goa ou em Ouro Preto, no Brasil. Afinal, já daqui saímos há 500 anos e as potências colonizadoras seguintes (holandesa e inglesa) fizeram o que entenderam de destruição dos sinais anteriores no centro da cidade. Não se vê Portugal em Malaca, repito. Mas vê-se, neste bairro peculiar, uma saudade de Portugal que quase enternece, como se uma pequena comunidade já muito miscigenada ainda olhasse, com orgulho, para um país que não sabe o que é kristang, ou o que significa, no coração e não na boca, Restoran de Lisboa, um nome comercial repleto de uma nostalgia persistente. Ou como se a frase "a Pátria honrai, que a Pátria vos contempla", fosse uma bonita máxima para por num leque, mas cujo entendimento é difuso. Que Pátria é esta, e quem contempla quem? 

JdB  

28 maio 2023

Solenidade do Pentecostes

EVANGELHO - Jo 20,19-23

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou Se no meio deles e disse lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou,
também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser lhes ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».

26 maio 2023

Poemas e fotografias dos dias que correm

Blue Lake (Bintan, Indonésia) 24 de Maio de 2023

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que,desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carneiro 

25 maio 2023

Vai um gin do Peter’s ?

 ARTE DO SANTO SEPULCRO NA GULBENKIAN

Com boa antecedência, aqui vai o pré-anúncio da exposição «O Tesouro dos Reis. Obras-primas do Museu da Terra Santa», que estará em exibição na Gulbenkian a partir de 10 de Novembro e até 26 de Fevereiro de 2024. 

Pela primeira vez, viajarão para Lisboa peças do Museu da Terra Santa em Jerusalém, da Custódia da Terra Santa, do Patriarcado Arménio de Jerusalém, do Museu George Al-Ama em Belém. Serão complementadas com peças nacionais alusivas ao tema, cedidas por Museus e Bibliotecas portugueses. 

O acervo do Museu da Terra Santa reúne cinco séculos de doações feitas por monarcas católicos europeus aos Lugares Santos, em especial à Basílica do Santo Sepulcro, onde Jesus encontrou a morte. Do Tesouro do Santo Sepulcro virão para Lisboa 75 peças. 


A beneficência de reis e de cortes da Europa confirmava a devoção dos doadores, além de lhes dar prestígio internacionalmente, como acontece hoje com os patrocinadores das causas que movem o nosso tempo. Nas palavras do director do Museu Gulbenkian, António Filipe Pimentel, trata-se de um «acervo incrível de peças extraordinárias que, para além do aspeto religioso e do significado estético, tem também o significado histórico e político. Durante séculos a Terra Santa funcionou como grande teatro da diplomacia internacional, é o local onde as próprias cortes rivalizavam em ofertas para que se repercutissem nas cortes europeias».

Na longa lista de doadores sobressaem Filipe II de Espanha (I de Portugal), o Rei-Sol Luís XIV, D.João V de Portugal, Carlos VII de Nápoles, a Imperatriz Maria Teresa de Áustria, igualmente generosos nas somas avultadas destinadas ao sustento dos Lugares Santos e das comunidades locais. As dádivas artísticas mais frequentes traduziam-se em peças de arte sacra em ourivesaria, pintura, escultura e também têxteis e mobiliário. No caso português, os presentes estendiam-se ainda a bálsamos, perfumes, especiarias e chá vindos do Império Ultramarino. 

Em exposição estarão presentes portugueses artísticos como a lâmpada de igreja oferecida por D.João V, a mitra doada por D. Maria I, a bacia lava-pés de prata doada por D.Pedro II (regente, em 1668 e depois rei a partir de 1683) e usada pelo custódio da Terra Santa no acolhimento aos peregrinos que chegavam à Cidade Santa. De Carlos VII de Nápoles estará o esplendoroso baldaquino para suporte de custódia ou de crucifixo. 

Pormenor da coroa no topo do baldaquino oferecido por Carlos VII de Nápoles.

No extremo esquerdo:  o famoso baldaquino oferecido por Carlos VII de Nápoles.

O vínculo de Gulbenkian à Terra Santa estará simbolizado no magnífico manuscrito arménio, do século XV, rico em iluminuras, oferecido pelo próprio Calouste ao Patriarcado Arménio de Jerusalém, nos anos 40. Naquela altura, o famoso colecionador de origem arménia vivia entre Lisboa e Paris, embora tivesse sido nado e criado na Turquia, onde esteve (Istanbul) até aos 14 anos. 

Em 2023, a magnanimidade do fundador do Museu Gulbenkian repete-se e actualiza-se também pelo trabalho de restauro e de estudo prévio a muitas das peças cedidas por Jerusalém, para lhes restituir o brilho original. O catálogo da exposição propõe-se incluir o historial das peças. 

Depois de Lisboa, a segunda paragem desta exposição itinerante será a Frick Collection em Nova Iorque, seguindo-se outras capitais europeias, até terminar o périplo no novo Museu da Custódia, em Jerusalém.

A partir de Novembro, a capital portuguesa exibirá nas melhores condições preciosidades de reis magnânimos, que irão depois chegar à Cidade Santa devidamente restauradas. É caso para reconhecer que a Fundação preserva o melhor de Calouste!  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

24 maio 2023

Viagem ao Sudeste Asiático (III) - os preconceitos

Kuching (Malásia, Ilha de Bornéu)

A minha viagem ao sudeste asiático reveste-se de um duplo objectivo: (i) assistir a uma conferência com organizações de crianças com cancro / pais / sobreviventes da Ásia e (ii) fazer férias. 

A conferência tem várias valências, das quais irei falando no futuro. Tem uma característica relevante, que é o facto de se conviver de forma próxima, durante 2 dias, com pessoas muito diferentes, unidas, sobretudo pela oncologia pediátrica - podem ser médicos, sobreviventes, pais. Na mesma sala estavam pessoas do Líbano ou do Japão, da Malásia ou do Bangla Desh, de Singapura ou da Índia ou da China. Sim, são todos asiáticos, mas são diferentes - muçulmanos, cristãos, budistas, hindus; gente com tradições diferentes, com  hábitos diferentes, de cores diferentes. 

O contacto com esta panóplia humana permite que eu identifique características pessoais (muito embora não se aplique a esta comunidade): entre mim e uma espécie de falta de paciência pela espécie humana está um fio de cabelo. Eu explico: não tenho preconceitos de beleza, isto é, para mim as pessoas podem ser muito bonitas ou muito feias, não lhes ganho aversão ou proximidade por isso. As pessoas podem ser amarelas ou pretas, não lhes ganho aversão ou proximidade por isso. Dentro de limites, as pessoas podem ter opções políticas diferentes das minhas, não lhes ganho aversão ou proximidade por isso. Onde está o meu preconceito: na ideia que tenho de civilização, de comportamento social, de regras de educação.

O preconceito é uma arrogância. Aquilo que me separa de uma certa espécie de chineses (com quem viajei de Kuching (Malásia) para Singapura, é a noção de civismo. Falam alto e muito, não respeitam o espaço das pessoas, comem de boca aberta, estão de chapéu de pala (muitas vezes posto ao contrário) dentro de casa. A arrogância deriva do facto de eu me entender detentor do conceito de civismo, de ser eu (e a comunidade social onde me insiro) a dizer que não se come de boca aberta, que não se fala alto num avião, que se respeita o espaço do outro e que não se toma uma refeição de "caviada", a revelar ao mundo uma pilosidade abundante e suada. A arrogância deriva do facto de eu não ter esses comportamentos e, por isso, me considerar civilizado.

Conheço gente cujo preconceito são os gordos e feios; dizem, em sua defesa, que são estetas. Ninguém no seu perfeito juízo dirá que isso é um preconceito, toda a gente gosta de beldades delgadas. Ora, em minha defesa direi também que sou um esteta - acontece que o meu olhar arrogante não se fixa no físico, mas no comportamento; não avalio a esbeltez de um par de pernas ou o fascínio da cor de uns olhos, mas avalio a forma como a pessoa se comporta em sociedade. Em bom rigor, o civismo é uma estética. 

JdB

Informação

 Por motivos da conveniência do dono deste estabelecimento, a rubrica da Maria Zarco, Vai um Gin do Peter's, sairá só amanhã, 5ª feira. Mantenham-se vigilantes - porque para este efeito sabem dia e hora.

JdB

21 maio 2023

Solenidade da Ascensão do Senhor

 EVANGELHO - Mt 28,16-20

Conclusão do santo Evangelho segundo São Mateus.

Naquele tempo,
os onze discípulos partiram para a Galileia,
em direcção ao monte que Jesus lhes indicara.
Quando O viram, adoraram n'O;
mas alguns ainda duvidaram.
Jesus aproximou Se e disse lhes:
«Todo o poder Me foi dado no Céu e na terra.
Ide e ensinai todas as nações,
baptizando as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,
ensinando as a cumprir tudo o que vos mandei.
Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos».

18 maio 2023

Poemas dos dias que correm *

Desde as cozinhas na cave

Desde as cozinhas na cave onde
marroquinos preenchiam tacinhas escacadas
com um doce cor-de-laranja suspeita
até às retretes com as paredes cheias
suponho que de palavrões em várias línguas
tudo era muito cosmopolita a casa
para mim bastante duvidosa ou talvez fosse só eu
que andasse suspeitosa nunca o saberei
lá não hei-de voltar
jamais no meu quarto começou por estar
uma americana que se não se chamava
Daisy pouco lhe faltava
fingia que lia Rich Man, Poor Man
gritava de noite à janela Shut up!
porque realmente saía muita gente
sempre em grita e riso do passage
de que esqueci o nome onde havia poeirentos
vidros azuis translúcidos salitre osgas
depois apareceu-me uma Stefania
que se dizia ruiva veneziana
e viver na Via Cava Aurelia
nunca acreditei em Roma
fazia por tudo e por nada queixas
ao gordo guardador das chaves
que dormia de tronco nu debaixo
de um cobertor branco de pelúcia
dois ou três gatos geralmente pretos perto
(embora estivesse muito abafado o tempo)
lá não hei-de voltar
 
adilia lopes
dobra
poesia reunida
o decote da dama de espadas (1988)
assírio & alvim
2021 

17 maio 2023

Viagem ao Sudeste Asiático (I)

Singapura vive da modernidade e da velhice; não parece haver nada antigo. Ou são edifícios modernos, ou são edifícios (casas, como as das fotografias abaixo, em Little India) que são velhas. Não há antiguidade. É uma cidade civilizada, onde as pessoas são modernas: no metro olham todas para o telemóvel. Há uma grande mistura: chineses, indianos, malaios. É uma cidade civilizada, para resumir. 

JdB






16 maio 2023

Ideias vagas sobre a coroação de Carlos III

 Não vou falar do meu pendor monárquico que é moderado, tal e qual o que devoto ao Sporting: gosto, revejo-me, defendo, sou crítico, por vezes muito crítico. Isto aplica-se ao meu clube de eleição, como se aplica ao meu regime de eleição. Num e noutro caso não o sou cegamente. No caso da monarquia, tenho um respeito (quase) incondicional pelo pretendente. Os parênteses é uma tentativa de estabelecer um compromisso entre o ideal e o real. Defendo o ideal monárquico, mas não consigo ser indiferente à pessoa que, num dado momento, o representa. 

Assisti à coroação de Carlos III. Fui sempre uma das pessoas que não alinhou na ideia (para mim estapafúrdia) de saltar de Isabel II para William qualquer coisa (não sei que algarismo será) sem passar por Carlos II e - numa graça de Monopólio - não pagar a portagem. Não falamos de um mentecapto, de um aldrabão, de um incapaz. Falamos de um homem bem preparado, com características próprias, que defendeu ideias muito à frente do seu tempo. Um home, talvez, pouco popular e desamado por via da sua vida sentimental. Porém, não o coroar rei seria uma aberração num país onde a tradição ainda é o que é.

Segui a cerimónia pela BBC. Uma reportagem irrepreensível, cheio de bom gosto e sobriedade, para além de uma enorme precisão informativa. Não fiquei fã de algumas peças escolhidas por Carlos III, mas isso é um pormenor. Nesses momentos em que se ouvia a música, sem qualquer comentário adicional, fiz zapping para a SIC ou TVI / CNN. Terror dos terrores - estavam sempre a falar, sempre a debitar informação ou ideias, ou opiniões. em momento algum podia haver espaço para o silêncio e para o desfrute das imagens / som. Aposto que mencionaram os aspectos mais sórdidos das vidas deste e daquele, acrescentaram pormenores de duvidoso interesse. E nunca - mas nunca! - se calaram.

Nada tenho a dizer sobre a cerimónia, que foi um primor de beleza, de tradição, de bom gosto, de atenção ao pormenor. Nada se faz por acaso, nada se diz por acaso, tudo tem uma razão de ser. Curiosidade (ou talvez não): todas as intervenções discursivas (com excepção das totalmente religiosas) têm por detrás o "dever". A palavra "dever" é usada para tudo - pede-se ao rei que exerça o dever, o rei compromete-se a exercer o dever. A ideia de serviço está escarrapachada em tudo.

Termino com um desvario linguístico (que espero não ser errado): a origem etimológica da palavra ministro é servidor. O ministro serve; em Portugal o ministro serve-se. A diferença está num hífen e em duas letrinhas...

JdB

14 maio 2023

VI Domingo da Páscoa

 EVANGELHO - João 14,15-21

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos.
E Eu pedirei ao Pai, que vos dará outro Defensor,
para estar sempre convosco:
o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber,
porque não O vê nem O conhece,
mas que vós conheceis,
porque habita convosco e está em vós.
Não vos deixarei órfãos: voltarei para junto de vós.
Daqui a pouco o mundo já não Me verá,
mas vós ver Me eis, porque Eu vivo e vós vivereis.
Nesse dia reconhecereis que Eu estou no Pai
e que vós estais em Mim e Eu em vós.
Se alguém aceita os meus mandamentos e os cumpre,
esse realmente Me ama.
E quem Me ama será amado por meu Pai
e Eu amá-lo-ei e manifestar-Me-ei a ele».


12 maio 2023

Moleskine de uma congresso de oncologia pediátrica

Estive estes dias que passaram em Valência, numa conferência europeia sobre oncologia pediátrica, com médicos e representantes de organizações de pais / doentes, mas também com sobreviventes. Voltarei a falar deste tema em maior detalhe, talvez, mas o que posso dizer de imediato é que, apesar do cansaço (afinal, falar uma língua estrangeira o dia todo não é fácil...) foram 4 dias imensamente gratificantes. Algumas notas soltas para já (num misto de informação ligeira e de ténue irritação):

Inteligência artificial

Durante uma hora fala-se deste tema, das suas implicações na oncologia pediátrica: protecção de dados, confidencialidade, desemprego dos patologistas. Ora, se a inteligência artificial vai gerar uma menor necessidade nesta classe de profissionais de saúde, isso significa que serão menos precisos. E se são menos precisos, então basta exportar a inteligência artificial para os pais em vias de desenvolvimento, onde as crianças morrem de cancro (também) por falta de pessoal especializado.

Pegada ecológica

Todos os anos há um congresso internacional de oncologistas pediátricos e de associações de pais / doentes. No ano que vem será (ainda ninguém me conseguiu explicar porquê) no Hawai. Falava com amigos sobre a viagem, sobre o meu relativo desinteresse em ir à ilha, sobre o preço das viagens, etc. Alguém opinou: acho esse congresso inaceitável; ninguém pensou na pegada ecológica? Ora eu, que no domingo parto para a Malásia e Singapura para (também) assistir a uma conferência regional sobre o tema, fiquei de cabelos eriçados, e só respondi, no limiar da bruteza: era o que mais faltava, começar a gerir as minhas viagens em função da pegada ecológica...

Gente negativa 

Oiço uma palestra em que alguém fala de se fugir das pessoas negativas, porque não acrescentam valor. Na véspera, perante alguém que comentou a menor qualidade de uma refeição, houve logo uma resposta certeira: é preciso sermos positivos, e pensar que tivemos um jantar; amanhã será melhor. Toda a gente fala da importância de sermos positivos e isso gera-me uma certa irritação. Para já, todos temos a nossa "negatividade": uns é por palavras, outros são por actos. E, confesso, o excesso de positivismo cansa-me, porque é artificial; é apenas uma coisa que se diz, para fingir que somos bons, queremos viver felizes, fugimos das pessoas tóxicas. Ao meu lado diz-me uma pessoa: numa organização é fundamental termos pessoas negativas: são eles que detectam os riscos... Haja alguém lúcido, não vendido à pureza da vida.

JdB

10 maio 2023

Vai um gin do Peter’s ?

TRANSBORDARAM DA TELA PARA A VIDA

Na Primavera de 2013, após 10 anos de meticuloso restauro, o Rijksmuseum anunciou a reabertura de portas com uma campanha publicitária portentosa. Escolheu uma das telas coqueluche do seu acerto – a «Ronda da Noite» de Rembrandt (1642) – e inventou maneira de a trazer para o dia-a-dia do público, como desafio a rever o original em exibição na sala renovada do museu. 


A intervenção do arquitecto espanhol Cruz y Ortis recuperou a traça original do edifício do século XIX, dotando-o das estruturas de apoio do século XXI. Numa cidade de canais, como Amsterdam, o grande desafio de qualquer obra é evitar infiltrações, pois qualquer furo no chão abre uma brecha para a entrada de água.

A ideia de dar vida ao famoso quadro de Rembrandt, de certo modo, replica o contexto histórico que terá inspirado o artista. Uma das novidades e originalidade da obra reside, precisamente, no efeito mais próximo do instantâneo fotográfico de uma multidão activa do que da encenação estática, em pose, comum na pintura da época, sobretudo na representação de grupos. Neste conjunto de 18 personagens pontifica o capitão Frans Banninck Cocq a dar ordem de marcha ao pelotão do II Distrito de Amsterdam. Na liderança, era coadjuvado Lugar-Tenente Willem van Ruytenburch. Sobre a esquerda, a figura feminina alvo de um dos focos cirúrgicos de Rembrandt corresponde à mascote da companhia. Outros focos destacam mais pormenores relevantes sob um fundo intencionalmente escuro, salientando o gesto de comando do capitão ou a bandeira desfraldada ao vento ou o homem do tambor a marcar o ritmo da formatura ou os canos das carabinas metálicas, conferindo movimento e dimensão guerreira à cena retratada. Deparamo-nos com um corpo de guarda em acção, só faltando ouvir vozes, batuques e sentir cheiros.  

A negritude que marca o cenário, típico em Rembrandt, motivou o nome atribuído posteriormente ao quadro, que foi interpretado como um episódio nocturno, apesar de o pintor ter sido omisso a respeito da hora do dia representada. 

A encomenda ao génio da idade de ouro da pintura flamenga destinava-se à sede de uma das três companhias da guarda civil de Amsterdam, incumbidas da defesa da cidade, da manutenção da ordem, da extinção de incêndios e de atender aos acidentes na via pública. Nesse tempo, acumulavam funções militares, policiais e de bombeiros. 


Recentemente, a Inteligência Artificial permitiu uma reconstrução minuciosa da tela original, que foi cortada aos lados e no topo para caber na parede da Câmara Municipal de Amsterdam para onde foi transposta, em 1715. Curiosamente, esta obliteração, impensável nos nossos dias, provinha da fama já consagrada a Rembrandt, cuja obra merecia ser exibida num dos edifícios mais nobres da cidade, segundo esclarecem os historiadores de arte. Isto confirma quanto as modas mudam e com elas os comportamentos, o que expõe a falácia de tentar ajuizar outras gerações com os critérios e os costumes da actualidade.

A tela completa, a incluir as extremidades laterais cortadas no século XVIII. No séc.XX,
registaram-se várias tentativas de vandalização da tela. 

Este salto da pintura para a vida lembra os “Concertos para Jovens” do compositor norte-americano Leonard Bernstein, apostado em entusiasmar as crianças e os adolescentes pela música clássica. Este movimento foi replicado em Portugal pelo maestro José Atalaya (1927-2021). No início da década de 70, o português enchia o S.Luiz (no Porto, o Rivoli), aos Domingos de manhã, para concertos comentados e explicados às famílias, introduzindo os mais novos (sobretudo) numa sonoridade diferente, erudita. As salas abarrotavam de gente e na RTP o programa chegava a todos os que viviam longe de Lisboa e do Porto. Em plena ditadura, o maestro informal esforçava-se por «destruir a barreira entre o público e o artista» e em «informalizar os concertos». Até sugeria que a música clássica fosse ouvida «em mangas de camisa», tentando impregnar um universo erudito da coloquialidade divertida do jazz. Por que não embalar e emocionar-se com as composições de Tchaikovsky, Mozart, Beethoven, Mahler?… Como observava o jornalista Pedro Tadeu, por ocasião da morte do maestro: «esteve para ser engenheiro, mas trocou a resistência de materiais pelos resistentes à música que chamavam erudita para a remeterem só para os eleitos». 




Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e perde-se a memória. Mal abandonou os ecrãs de televisão, pouco interessada na divulgação cultural, Atalaya foi caindo no esquecimento e com ele recuou alguma disseminação da música clássica, novamente relegada para o Olimpo dos deuses, novamente cotada de privilegiados. Fazem falta estes visionários, de Bernstein a Atalaya, que criaram momentos com humor e arte, como tocar o Requiem de Mozart junto às pinturas rupestres do Foz Côa.  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

09 maio 2023

Da ideia juvenil de casa comum *

 Aqui há algumas semanas falei com alguém que me é próximo sobre a ideia de casa comum. A ligação ao texto do papa Cuidar da Casa Comum foi óbvia, ainda que o horizonte da minha dissertação mental fosse mais modesto... Mas o facto é que o conceito - sei lá eu por que motivo - me andava a pairar no espírito até ter aproveitado um momento para sair da mente para fora.

A ideia de casa comum é aplicável a muitas dimensões: os sócios de uma empresa, os habitantes de um mesmo espaço, os cuidadores de uma mesma pessoa, uma relação conjugal. Ter presente a ideia de casa comum pode dar uma conotação diferente a muito do que fazemos. Dito de uma forma simples, a aplicável a uma dimensão familiar pode transformar uma tarefa num gesto de amor. Num instante, levar um velho a um médico, fazer um jantar, engomar umas calças ou substituir alguém que está cansado deixa de ser algo de maçador, e que pode não apetecer, para ser o cuidar de algo que é comum - e uma camisa que é preciso lavar-se para que outro vá a um evento importante pode ter essa dimensão. 

Recuo 45 anos para os anos de uma juventude normal, com paixonetas adolescentes que variavam equilibradamente entre o sucesso e o insucesso. Hoje, por uma associação qualquer de ideias, veio-me à memória uma rapariga por que me apaixonei com 15 ou 16 anos. Estávamos numa casa de amigos comuns e eu pedi-lhe para me guardar os cigarros, a chave de casa, uma caixa de fósforos, não sei. Podia ter posto tudo isso em cima de uma cómoda, que por aí ficariam. Não obstante, quis entregar-lhe a ela. Foi há 45 anos, mas foi - olhando para trás - a primeira ideia que tive de casa comum: alguém que olhava por algo que era meu, por mais insignificante que fosse esse algo.

JdB

* publicado originalmente a 22 de Julho de 2019

08 maio 2023

Pensamentos dos dias que correm *

 9 de Outubro de 1938

A arte de desenvolver os pequenos motivos para nos decidirmos a realizar as grandes acções que nos são necessárias. A arte de nunca nos deixarmos desencorajar pelas reacções dos outros, recordando que o valor de um sentimento é juízo nosso, pois seremos nós a senti-lo e não os que assistem. A arte de mentir a nós próprios, sabendo que estamos a mentir. A arte de encarar as pessoas de frente, incluindo nós próprios, como se fossem personagens de uma novela nossa. A arte de recordar sempre que, não tendo nós qualquer importância e não tendo também os outros qualquer espécie de importância, nós temos mais importância do que qualquer outro, simplesmente porque somos nós. A arte de considerar a mulher como um pedaço de pão: problema de astúcia. A arte de mergulhar fulminante e profundamente na dor, para vir novamente à tona graças a um golpe de rins. A arte de nos substituirmos a qualquer um, e de saber, portanto, que cada pessoa se interessa apenas por si própria. A arte de atribuir qualquer dos nossos gestos a outrem, para verificarmos imediatamente se é sensato. 

A arte de viver sem arte.

A arte de estar só.  

cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004

* tirado daqui

 

07 maio 2023

V Domingo da Páscoa

 EVANGELHO - Jo 14,1-12

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Não se perturbe o vosso coração.
Se acreditais em Deus, acreditai também em Mim.
Em casa de meu Pai há muitas moradas;
se assim não fosse, Eu vo lo teria dito.
Vou preparar vos um lugar
e virei novamente para vos levar comigo,
para que, onde Eu estou, estejais vós também.
Para onde Eu vou, conheceis o caminho».
Disse Lhe Tomé:
«Senhor, não sabemos para onde vais:
como podemos conhecer o caminho?»
Respondeu lhe Jesus:
«Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
Ninguém vai ao Pai senão por Mim.
Se Me conhecêsseis, conheceríeis também o meu Pai.
Mas desde agora já O conheceis e já O vistes».
Disse Lhe Filipe:
«Senhor, mostra nos o Pai e isto nos basta».
Respondeu lhe Jesus:
«Há tanto tempo que estou convosco
e não Me conheces, Filipe?
Quem Me vê, vê o Pai.
Como podes tu dizer: 'Mostra nos o Pai'?
Não acreditas que Eu estou no Pai e o Pai está em Mim?
As palavras que Eu vos digo, não as digo por Mim próprio;
mas é o Pai, permanecendo em Mim, que faz as obras.
Acreditai Me: Eu estou no Pai e o Pai está em Mim;
acreditai ao menos pelas minhas obras.
Em verdade, em verdade vos digo:
quem acredita em Mim fará também as obras que Eu faço
e fará ainda maiores que estas,
porque Eu vou para o Pai».

04 maio 2023

"Mas quem é esse que te segue do outro lado?"

(...)
Who is the third who walks always beside you?
When I count, there are only you and I together
But when I look ahead up the white road
There is always another one walking beside you
Gliding wrapt in a brown mantle, hooded
I do not know whether a man or a woman
—But who is that on the other side of you?
(...)

[Quem é o outro que sempre anda a teu lado?
Quando somo, somos dois apenas, lado a lado,
Mas se ergo os olhos e diviso a branca estrada
Há sempre um outro que a teu lado vaga
A esgueirar-se envolto sob um manto escuro, encapuzado
Não sei se de homem ou de mulher se trata
- Mas quem é esse que te segue do outro lado?]

Tradução de Ivan Junqueira, tirada daqui

A dado momento, no seu vasto poema The Waste Land, the T. S. Eliot, é mencionado um terceiro que te segue do outro lado. Quem é este terceiro?   

***

O livro South, de Ernest Henry Shackleton, conta a viagem do Endurance ao Pólo Sul, no início do séc. XX. Numa delas, o barco fica preso no gelo e a tripulação tem de procurar a salvação por terra. Há um momento em que o explorador escreve, retratando uma das incursões: "often there were four, not three". 

Numa passagem do Evangelho segundo São Lucas (Lc 24,13-35) pode ler-se esta famosa passagem:

Dois dos discípulos de Emaús
iam a caminho duma povoação chamada Emaús,
que ficava a sessenta estádios de Jerusalém.
Conversavam entre si sobre tudo o que tinha sucedido.
Enquanto falavam e discutiam,
Jesus aproximou Se deles e pôs Se com eles a caminho.
Mas os seus olhos estavam impedidos de O reconhecerem.

***

Estas são - entre possíveis outras - as explicações para o trecho de The Waste Land: num conjunto de três tripulantes do Endurance, há uma quarta "entidade" (o explorador chama-lhe providence, Worsley, um tripulante, refere-se-lhe como another person. A caminho de Emaús não há apenas dois discípulos, mas uma terceira personagem. Ambas as alusões se referem a algo positivo, isto é, Jesus Cristo, a providência. Ora, esse que te segue do outro lado poderia ser não alguém, mas algo? Será que por vezes o que caminha connosco é um passado que tanto nos redime como nos amaldiçoa? Pode ser apenas lastro que nos equilibra ou lastro que tem de ir borda fora para que o barco não afunde? 

Quem é - ou quem, na verdade, pode ser - esse que nos segue sempre do outro lado?

JdB

03 maio 2023

Pouco barulho *

Há dias falava de palavras, do estardalhaço ininterrupto que fazem dentro de nós, dos estragos capazes de provocar. Há-de ser assim com todos, fazendo menos mossa a uns, que as gerem melhor, mais a outros, que sufocam se lhes não dão primazia, andamento e caminho visível. Tempos houve em que me acalorava a conversa, a comunicação, a fala, o desabafo, as ideias. Hoje, nada disso me interessa como outrora. Chego a ter saudades do silêncio. Palavras leva-as o vento, estrebucha o ditado em mim. Estafam-me conversas sérias, cansam-me as opiniões sobre tudo e mais alguma coisa. Os porquês disto e daquilo, que se exigem a ferro e fogo, servindo umas poucas de inverdades e loucuras. Encantam-me os que sem abrir boca dizem tudo. E vou à lua com os que teimam fazer com o gesto o seu discurso, a sua declaração de amor. Hoje, percebo uma série de homens calados que havia antigamente. E as mulheres que agora me dizem “fazes-me rir”. Conversas, de facto, só para rir. Para chorar, para ensinar, para guardar, escrevam. Mergulhem no silêncio, oiçam-se e escrevam como souberem. Nas mãos, nas paredes, nos panos da loiça. De resto, poupem-se. Senão um dia ninguém vos ouve.


DaLheGas

* publicado originalmente a 16 de Maio de 2009

01 maio 2023

Pensamentos dos dias que correm

 Não precisamos de ler, estudar ou conhecer ninguém, quando produzimos nós próprios. Pois não basta que produzamos nós próprios? E gostemos de nós próprios? Que nos pode dar o espírito alheio, quando sobre o próprio nosso desceu em línguas de fogo a sabedoria de tudo? Melhor: A verdade é que nem precisamos nós próprios de produzir (toda a produção é uma limitação), ou mal precisamos de produzir, para usufruirmos as vantagens do criador e produtor. (...) Aprende a contar uma anedota; duas anedotas; três anedotas; quatro anedotas... uma anedota diverte muita gente; quatro anedotas divertem muito mais... aprende a polvilhar de blague todas essas ideias sérias, pesadas, profundas, obscuras, - ao cabo simplesmente maçadoras - com que pretendes sufocar (...); aprende a cultivar aquele subtil espírito de futilidade que ligeiramente embriaga como um champanhe, e a toda a gente agrada, lisonjeia todos, por a todos nos dar a reconfortante impressão de pertencermos ao mesmo meio... estarmos ao mesmo nível; não queiras ser nem sobretudo sejas mais inteligente ou mais sensível, mais honesto ou mais sincero, mais trabalhador ou mais culto, mais profundo ou mais agudo... numa palavra: superior. Sim, homem! aprende a ser como os outros, dizendo bem ou mal de tudo e todos - conforme - sem os excederes nem te comprometeres demasiado; e deixa-me lá esses Proustes e esses Gides e esses Dostoievskis e esses Tolstois (vem aí o tempo em que todos esses jarrões serão levados para o sótão!), deixa-me essa estética e essa mística e essa metafísica e essa ética (já o tempo chegou de se ver a inutilidade e o ridículo dessa pretensiosa decoração), deixa-me lá esses estrangeiros, e essas estrangeirices.


José Régio, in 'Presença, Folha de Arte e Crítica, 1927-1940'

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