30 abril 2018

Poemas dos dias que correm

Taviani

ali por mil novecentos e oitenta e tal
o cinema salvava miúdos com fome de mundo.
entre ciclos na televisão, cinemas de província
e ocasionais saltadas ao grande carrossel,
olhos espantados por espantoso espanto
descobriam pepitas de ouro puro ouro.

tanto devemos aos irmãos ali de cima.
por exemplo: aquele filme que juramos ter visto,
mas de cujo rasto ninguém mais soube,
em que descobrimos, maravilhados,
que o cinema vitalista e pagão, telúrico,
era bem mais do que kitsch e folclore.

por entre as historietas, a vossa infindável 
ternura pelos homens - mesmo se pobres diabos -
encerrava uma daquelas lições para a vida:
todos merecem a sua oportunidade na vida
de todos os demais  - coisa não pouca,
se pensarmos cuidadosamente, com amor. 

a vós, irmãos, e ao corvo que atravessa o filme,
devo aquela coisa que só a infância tem:
o esbugalhado sorriso perante continentes a brilhar,
catedrais inteiras reflectidas nas íris de irmãos
(como nós) de irmãos mais sábios (como vós).
ergo-vos o meu copo de vinho antigo futuro.

a terra tremia. e era delícia. tudo na vida.
película impossível tornada tangível realidade.

gi.

29 abril 2018

5º Domingo da Páscoa

EVANGELHO – Jo 15,1-8

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Eu sou a verdadeira vide e meu Pai é o agricultor.
Ele corta todo o ramo que está em Mim e não dá fruto
e limpa todo aquele que dá fruto,
para que dê ainda mais fruto.
Vós já estais limpos, por causa da palavra que vos anunciei.
Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós.
Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo,
se não permanecer na videira,
assim também vós, se não permanecerdes em Mim.
Eu sou a videira, vós sois os ramos.
Se alguém permanece em Mim e Eu nele,
esse dá muito fruto,
porque sem Mim nada podeis fazer.
Se alguém não permanece em Mim,
será lançado fora, como o ramo, e secará.
Esses ramos, apanham-nos, lançam-nos ao fogo e eles ardem.
Se permanecerdes em Mim
e as minhas palavras permanecerem em vós,
pedireis o que quiserdes e ser-vos-á concedido.
A glória de meu Pai é que deis muito fruto.
Então vos tornareis meus discípulos».

28 abril 2018

Pensamentos Impensados

Expectativas
O atraso no anúncio do nome do novo Príncipe inglês deve-se ao facto do seu pai ser dono de uma agência de apostas e querer facturar mais umas libras.

Primazias
A primeira Primeira-dama foi a Eva.

Lindezas
Há lá coisa mais bonita não é o mesmo que Alah, coisa mais bonita.

Letras ou tretas
Estou a ouvir música e pareceu-me que o cantor disse de uina tem quesitol.
Quesitol deve ser uma droga para matar pulgas e carraças.

Barrigas de aluguer
Vou alugar uma barriga para que faça, por mim, várias actividades para as quais não tenho paciência.

Um senhor
Era homem de fino trato; até tinha bom tracto alimentar e bom tracto urinário.

Trolhas
Os construtores de muralhas tinham aulas de mural.

Cadeias às avessas
Presos revoltam-se; é uma reacção em cadeia.

Novo aborto
Cedilha escreve-se com çedilha?

SdB (I)

27 abril 2018

Dos "frissons" que se desfazem

Já não tenho idade para grandes fetiches, mas não deixo de apreciar a beleza de algumas pessoas que só vejo na televisão. Não são, normalmente, belezas óbvias, aquelas que correspondem a cânones estéticos comummente aceites.

[a esse propósito, tenho um amigo que sempre se fascinou pela Merryl Streep. Quando lhe dizíamos que ela não era bonita, ele citava alguém que sobre alguém teria dito (não afianço a exactidão da frase): ele n'es pas belle, elle est mieux.] 

Por vezes é uma cor de cabelo, uma ligeira assimetria dos olhos, uma boca diferente, um sotaque, sei lá eu. Aconteceu-me isso com uma jovem senhora que era presença relativamente assídua nas televisões. 

Ontem, no lançamento do novo livro da Rita Ferro, 


ela, esta jovem senhora que faz a caridade de suscitar a minha atenção estética, estava lá. Podia ter-me apresentado, ter entabulado conversa, ter dito que graça isto ou aquilo. Muito pelo contrário, o meu frisson desvaneceu-se: um cabelo que não lembra ao diabo, umas botas que também não lembram ao diabo, umas calças demasiado justas para o meu gosto e para a ocasião. Em resumo, uma estética toda sofrível. Tudo se desmanchou quando um fotógrafo quis imortalizar a presença dela numa fotografia: imediatamente pôs um pé à frente, rodou uns graus, fez pose possidónia que doía. Por trás dela (mal sabia ela o fundo daquela sua fotografia), o Rei D. Manuel II e o Rei D. Luís, sérios nos seus óleos imponentes e nas suas fardas garbosas, não tugiam nem mugiam.

O assunto ficou resolvido dentro de mim, tudo graças Um Amante no Porto.

JdB


26 abril 2018

Textos dos dias que correm

Alqueva, Abril 2018


A alma de todos os dias

«Há algo pior do que ter uma alma má e até mesmo fazer-se uma alma má: é ter uma alma bela e feita. Há algo pior do que ter uma alma perversa: é ter uma alma de todos os dias.» Assim escreveu o poeta católico francês Charles Péguy (1873-1914).

É espontânea, no entanto, uma pergunta: o que será essa detestável «alma de todos os dias»? O poeta define-a como «uma alma bela e feita», isto é, pré-embalada, como uma peça de roupa que se compra nas grandes lojas.

É verdade que a alma má, perversa, tenebrosa é uma realidade dramática. No entanto, há outra tragédia que não impressiona, embora seja tão séria, que é a da alma incolor, vazia, opaca, banal, ordinária.

Infelizmente este é o tipo de alma mais difundido. Se alguém a possui, não se preocupa em demasia porque pode responder à eterna pergunta da pessoa que tem tal modelo da alma: «Que fiz eu de mal?».

Na realidade, o mal está precisamente nesse vazio, nessa ausência de autenticidade, nesse quotidiano cinzento e destituído. São palavras paradoxais, mas Pasolini tinha razão quando escrevia em "Humilhado e ofendido": «Pecar não significa fazer o mal: não fazer o bem, isto significa pecar».

É preciso, por isso, redescobrir uma alma genuína, alegre e festiva, que conheça a emoção da bondade, a alegria da vida, a plenitude do amor.

No mundo em que estamos imersos, tudo milita contra essa alma; às vezes até na igreja arrastamo-nos com uma alma descolorida para a levar para casa ainda mais desbotada. É preciso que o Evangelho nos sacuda para redescobrir a verdadeira alma.


P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Trad.: SNPC
Publicado em 25.04.2018

25 abril 2018

Vai um gin do Peter's?

ARQUITECTURA COM IDENTIDADE TEM CASE-STUDIES EM ISTAMBUL

O destino mítico do «Expresso do Oriente» coincide com o expoente do ponto de encontro das civilizações oriental e ocidental, no estreito vital do Bósforo – Istambul. Elo de ligação da Ásia à Europa, é a única cidade situada entre dois continentes. 

Percebe-se que seja a quarta maior urbe do mundo, ex-capital do Império Romano do Oriente e depois do Otomano até à sua extinção em 1923, cedendo o lugar a Ancara. Era também a cidade de Calouste Gulbenkian, que ali nasceu (1869) e viveu até aos 15; cursou o liceu e a universidade, respectivamente, em França e Inglaterra; voltou a Istambul; e aos 27 abandonou a Turquia com a família, para escapar à perseguição movida contra a comunidade arménia (1896).

A sequência de nomes da grande metrópole evoca os principais marcos de uma história agitada, alvo-mor das conquistas. Começou Bizâncio (até 330); evoluiu para Constantinopla ao ser elevada a capital da cristandade no Oriente, sob o Imperador Constantino; e submeteu-se a sultanato do Império Otomano (1453) com o nome que ainda mantém. 

Porém, a voragem do tempo não apagou os vestígios da cristianização de Bizâncio, que subsistem com pompa, sendo o caso mais emblemático a Basílica de Santa Sofia ou «Hagia Sophia» («Sabedoria» em grego). 

Endereço: Ayasofya Meydanı, Sultanahmet Fatih. Horário: 9h-18h, de Terça a Domingo. Este edifício sucedeu a dois anteriores, semi-destruídos por tumultos armados; o primeiro foi desencadeado pela condenação ao exílio (ano 404) do famoso e muito popular Patriarca de Constantinopla – João Crisóstomo, pela Imperatriz Eudoxia Aelia.

A versão que persiste é a terceira (532-537), mandada edificar pelo Imperador Justiniano, que a adjudicou aos melhores cientistas da época: o físico Isidoro de Mileto e o matemático Anthemius de Tralles. Tinha bem a noção de que as construções arrojadas e portentosas exigiam engenharia de primeira qualidade, o que pressupunha cálculos matemáticos rigorosos, além de hordas de operários especializados. O soberano reuniu os melhores materiais do Império para erigir uma jóia arquitectónica bizantina, em meia década: com colunas helénicas do Templo de Artemis em Éfeso, pedra pórfido do Egito, mármore verde da Tessália, pedra negra do Bósforo e pedra amarela da Síria. 

Implantada em zona visível da metrópole, que tem uma fisionomia incrivelmente semelhante a Lisboa (minaretes à parte), a Hagia Sophia tornou-se sede do patriarcado ortodoxo de Constantinopla – a Segunda Roma. Era também o local escolhido para as cerimónias imperiais e as coroações. 

Das maiores acrobacias da Basílica é a impressionante cúpula de 102 metros de diâmetro e 182 de altura. Hoje, está situada no bairro histórico de Sultanahmet, em frente à Mesquita Azul e a 5 minutos do reservatório de água, que parece uma basílica subterrânea aquática.

Um reservatório de água artístico, percorrido por estátuas de medusas e colunatas de pedra.

Logo após a conquista da cidade pelo temível Sultão Mehmet II, em 1453, Santa Sofia foi convertida em mesquita, submetida a obras e acrescentos para promover a tão desejada metamorfose. Os mosaicos com ícones foram revestidos de camadas espessas de estuque pintado de arabescos árabes e padrões simétricos florais, característicos da arte sacra maometana. Curiosamente, pela sua beleza incontornável, tornou-se na referência arquitectónica dos templos maometanos de Istambul. 

Vestígios do período em que esteve adaptada a mesquita, cumprindo pobremente uma função avessa à sua raiz. 

Apesar do empenho otomano para imprimir um cunho muçulmano à catedral cristã, os problemas não pararam e o novo selo nunca se lhe afeiçoou. Nada surtiu efeito. Nem os grandes medalhões de caracteres árabes colocados em lugar nobre, no transepto, nem as obras de restauro (1847-49) dos irmãos arquitectos suíço-italianos, com currículo feito em S.Petersburgo – Gaspare e Giuseppe Fossati, que descobriram mosaicos tapados há séculos. Aquelas paredes esguias, ordenadas por três naves desafogadas para formar um rectângulo pontuado por arcos góticos, colunas gigantescas, vidraças transparentes e uma luminosidade que convida a um certo recolhimento, nunca disfarçaram a sua identidade primordial. A arquitectura bizantina – que entusiasmara os califas para a transformar em arte otomana – nunca mudou de natureza, no essencial. 

Volvidos cerca de cinco séculos de intervenções infrutíferas e caras, Istambul rendeu-se à traça original e aceitou acordar a Bela, que ficara Adormecida desde meados do séc.XV. Assim, em 1934-35, Hagia Sophia renasceu como museu-Basílica ortodoxa para revelar os tempos áureos de Constantinopla. Um monumento de luxo, que sobressai na lindíssima cidade banhada pelo Bósforo. 

Quando se cruza o limiar daqueles portais invulgarmente altos, mais do que a beleza, impressiona o eco da História milenar. Um passado ali quase palpável. Quase audível, como se ressentíssemos vibrar a passada fogosa das montadas dos cavaleiros cristãos, ao nosso lado. Uma experiência única! 
Quantas expressões artísticas convoca a arquitectura, harmonizando-as num mesmo espaço?... Grandes artistas, os arquitectos, quando levam tão longe a sua obra! 

Obras de recuperação dos mosaicos escondidos permitem vislumbrar a beleza lendária referida pelos cronistas da primeira era cristã.   

Além desta proeza arquitectónica, Istambul ainda soma um segundo templo que replica à letra, em ponto mais pequeno, o percurso e a força indomável de Hagia Sophia. Menos conhecida, até por estar desviada da zona dos monumentos antigos, a Igreja de São Salvador em Chora ecoa de modo evidente o seu cariz cristão, porque os mosaicos bizantinos preenchem quase todo o espaço, fazendo ressaltar uma identidade gravada, até ao âmago, naquelas pedras. 



Painel da esq.- Presépio invulgar para o padrão ocidental.

Quantas expressões artísticas convoca a arquitectura, harmonizando-as num mesmo espaço?... Grandes artistas, os arquitectos, quando levam tão longe a sua obra! 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)


24 abril 2018

Duas Últimas

Atiro-me ousadamente a um post que os mais distraídos poderão ver como político. Não é, porque a batalha política não tem lugar especial neste estabelecimento. No entanto, hoje, para uma certa franja histórico-intelectual, foi o último dia de vida para a ditadura fascista / salazarista / exploradora da classe operária. Amanhã tudo cairia, dando lugar ao que se tem visto nos últimos 44 anos - do melhor e do pior. 

Ora, caindo o fascismo - e não vou discutir se havia fascismo em Portugal ou não, não interessa para o caso - nada como dar uma espécie de festa de despedida. Assim, sem conhecer nada, a não ser a participação portuguesa, fui ao youtube procurar música de (extrema) direita: italiana, espanhola, portuguesa. A ideia foi comparar "toadas", porque letras é mais difícil. O ritmo militar da italiana e portuguesa não surpreendem.

Aqui fica, para a curiosidade de quem a tiver. Volto a dizer: este post não é político. Para o provar nunca se sabe o que publicarei no 1 de Maio...

JdB

     



23 abril 2018

Poemas dos dias que correm

(In)definição

poeta: 
uma formidável máquina de sentir o pensamento.
e de pensar o sentimento.

***

Um Postal do Exílio

na foto, em contraluz, recortando as ruínas,
um escorrega de brincar jaz silencioso,
esperando a criança que por ele desceu,
nesses dias em que tudo era ainda tanto,
nesses dias em que todos eram ainda.

Deus meu, há fotografias fulminantes,
onde aquele que fomos nos pergunta,
como se um directo de direita
seguido por um directo de esquerda:
rapaz, rapaz, por onde andas tu?

tão fraco poema para tão forte punchline.
e o poeta desaba chão adentro.

gi.

22 abril 2018

4º Domingo da Páscoa

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo, disse Jesus.
«Eu sou o Bom Pastor.
O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas.
O mercenário, como não é pastor, nem são suas as ovelhas,
logo que vê vir o lobo, deixa as ovelhas e foge,
enquanto o lobo as arrebata e dispersa.
O mercenário não se preocupa com as ovelhas.
Eu sou o Bom Pastor:
conheço as minhas ovelhas
e as minhas ovelhas conhecem-Me,
do mesmo modo que o Pai Me conhece e Eu conheço o Pai;
Eu dou a minha vida pelas minhas ovelhas.
Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil
e preciso de as reunir;
elas ouvirão a minha voz
e haverá um só rebanho e um só Pastor.
Por isso o Pai Me ama:
porque dou a minha vida, para poder retomá-la.
Ninguém Ma tira, sou Eu que a dou espontaneamente.
Tenho o poder de a dar e de a retomar:
foi este o mandamento que recebi de meu Pai».

21 abril 2018

Pensamentos Impensados

A dar horas
A fome pode ser um sinal interior de pobreza.

Esbanjador
Fazia tantas perguntas que esgotou os pontos de interrogação que tinha herdado.

Cargas
À carga fiscal prefiro uma carga policial.

Astrofísica
Os astronautas, quando em órbita, praticam a interrupção voluntária da gravidade.

Voltas do vira
Leio no CM: diz que ficou gay depois de tomar analgésico. É natural, só não sei o que quer dizer gésico.

Inconcebível
Adão era de uma família mono-parental e foi despejado. Inconstitucional.

Pernas para que te quero
Os golos de Ronaldo são autênticos jet leg.

SdB (I)

20 abril 2018

Textos dos dias que correm

Alfie Evans: Quando a lei não sabe nada do amor

Os acontecimentos extremamente dolorosos de Alfie Evans e dos seus pais são um convite a alargar a nossa reflexão para além da resposta emotiva mais imediata. Com efeito, é um caso que abre interrogações a diversos níveis, todos muito complexos. Menciono apenas alguns: a legitimidade da interferência "pública" na relação entre pais e filhos; a relação entre os pais e um filho gravemente doente; o escândalo do sofrimento inocente.

O que está por trás de todos estes questionamentos, unindo este caso ao de Charlie Gard, bem como a outros anteriores, é a disponibilidade ou indisponibilidade da vida humana e o direito de estabelecer-lhe o valor com parâmetros denominados de "objetivos". No desafio que esta história representa, quero no entanto centrar-me brevemente na reflexão sobre a ligação misteriosa que intercorre entre os pais e um filho doente ou deficiente, realidade que encontrei muitas vezes na minha profissão.

[Antes de prosseguir, o contexto: Alfie Evans tem 23 meses e está em estado semi-vegetativo num hospital britânico, em Liverpool, desde dezembro de 2016, devido a uma doença neurológica degenerativa que os médicos parecem desconhecer. Na passada quarta-feira um tribunal decretou que o hospital pode desligar o suporte que garante a vida do bebé. A sentença foi suspensa depois de um pedido de "habeas corpus", indeferido na segunda-feira. Resta o recurso ao Supremo Tribunal, mas as esperanças de sucesso são muito baixas. Entretanto, mais de 250 mil pessoas assinaram uma petição para salvar a criança. Vários hospitais na Alemanha e Itália - nomeadamente o Bambino Gésu, em Roma, ligado ao Vaticano -, ofereceram-se para acolher Alfie. O papa Francisco, que no início do mês se referiu, no Twitter, à situação, recebeu hoje o pai do bebé, antes da audiência geral, durante a qual afirmou: «Quero sublinhar e confirmar com firmeza que o único dono da vida, do início ao fim natural, é Deus. E o nosso dever, o nosso dever é fazer tudo para proteger a vida».]

Quem se ocupa de crianças que nascem com graves dificuldades é inevitavelmente atingido por uma inegável evidência: uma vez entrada no mundo, a vida concreta do filho - ainda que profundamente ferida - assume para os seus pais um valor indiscutível, antes imprevisto e por vezes até imprevisível.

Uma consideração hipotética, abstrata da perspetiva de uma criança que vai nascer com uma grave doença ou uma deficiência só pode ser uma ideia que assusta. Todas as mulheres grávidas vivem como um pesadelo essa possibilidade, e a multiplicação das perguntas e exames médicos na gestação responde a esse profundo medo. Mas quando nasce um bebé doente, a dor indizível e a revolta que a acompanha unem-se quase sempre a outros sentimentos de sinal diferente: contraditórios, difíceis de descodificar com clareza até para os próprios protagonistas, estes sentimentos exprimem todavia a ligação indissolúvel que os pais - sobretudo a mãe - têm como o seu filho.

Quando dá à luz, a mulher passa sempre através de uma luta de alto valor simbólico: reter e deixar ir são os dois movimentos opostos do parto, e são os mesmos que caracterizam toda a sua vida de mãe, sempre combatida entre o manter o filho perto de si e o impeli-lo a tornar-se protagonista da própria vida. Se o filho que nasce é demasiado frágil, a luta entre o manter e o distanciar-se assume conotações dramáticas que servirão de cenário de toda a relação futura. A mãe, que perceciona o filho em continuidade consigo, torna-se como uma leoa que defende a sua cria: lutará por ela, multiplicará os esforços quer para a proteger quer para a apoiar. A mãe terá de testemunhar ao mundo o valor daquela vida que não sabe testemunhá-la por si própria. A necessidade do filho, a sua absoluta vulnerabilidade, comportam a intensificação da ligação e a tendência a excluir qualquer outro da relação entre ambos.

O filho gravemente doente é um desafio absolutamente particular para o pai. Menos implicado diretamente na ligação que a criança tem com a mãe, menos envolvido nas necessidades primárias de cuidado, encontra-se perante a tarefa de o legitimar e reconhecer como dom da própria mulher, que teme, por seu lado, tê-lo gravemente desiludido: só assim poderá ajudá-la a tratar a ferida profundíssima de ter dado à luz um filho "imperfeito" e apoiar a coragem de que precisa para tomar conta dele e defendê-lo. Reconhecer e legitimar um filho com uma doença grave ou deficiência é uma assunção de paternidade "alta", a que nem todos sabem responder.

Mas quanto isso acontece, quando o pai apoia a mãe e a mãe aceita partilhar com ele a ferida e a tarefa, a relação reforça-se de modo particular, e ambos aumentam a capacidade de amor: amor recíproco e amor pelo filho. Encontrei muitos pais de crianças com deficiência ou doença grave: nenhum deles alguma vez me expressou o desejo de se libertarem delas, e nenhum, ainda que sofredor e desafiado, me expressou arrependimento por tê-las posto no mundo. Todos, indistintamente, lutam: estão no presente, no aqui e agora de uma realidade por vezes muito difícil, mobilizados junto à vida frágil dos filhos sem nunca duvidarem de que aquela vida tem valor.

Quando encontram o médico pedem-lhe acompanhamento, suporte, solidariedade; pedem que faça o que pode ser feito para aliviar o sofrimento do filho e para promover-lhe as competências remanescentes, por pequenas que sejam. Não pedem milagres. A força deste laço pode fazer medo a quem o observa de fora, pode parecer irrazoável, irracional. Contrasta com a ideia tão comum e falsa de que o ser humano é capaz de amar só quem que lhe pode dar gratificação: um filho são, inteligente, se possível belo. Tornou-se hoje muito difícil compreender a ideia de que a vida se justifica só com a vida, que pode justificar-se por si mesma, sem condições. Aquilo que talvez nos deve fazer refletir é o facto de que quem duvida do valor destas vidas "difíceis" não são quase nunca as pessoas afetivamente mais próximas: são sobretudo os estranhos, pessoas que raciocinam em abstrato.

A forte solidariedade que a vida de Alfie está a suscitar diz-nos algo de muito importante: esta não é uma batalha abstrata, não é um batalha de princípios. É, antes, a expressão da solidariedade concreta por uma vida concreta, é a proximidade real de um uma dor real. Às considerações abstratas e hipotéticas da lei respondem espontaneamente todas as pessoas que se identificam com a vivência real e as exigências concretas de uma mãe e de um pai. Exigências que se exprimem, hoje, numa só: o respeito "sem se e sem mas" pela vida frágil e real do seu filho, ao qual querem poder permanecer até quando parar espontaneamente de lutar.


Mariolina Ceriotti Migliarese
Neuropsiquiatra infantil
In Avvenire
Trad./edição: SNPC
Publicado aqui em 18.04.2018

19 abril 2018

Pensamento Impensado

Gaffes
Vejo numa fotografia Marcelo a fazer uma festinha na mão da Rainha Letizia. É lamentável esta intimidade com as pessoas da realeza. O Rei Felipe devia ter dito: tira a mão da popeline.

SdB (I)

Duas Últimas

Sem pretender fazer concorrência ao dono deste estabelecimento, partilho convosco que também eu fui ao encontro do silêncio num destes últimos fins-de-semana, participando com a minha mulher, em Fátima, num retiro espiritual realizado segundo o método de Santo Inácio de Loyola, vulgo Exercícios Espirituais.

Foram dois dias diferentes que pouco mais de vinte pessoas ali passaram, em ambiente de silêncio, mesmo (principalmente) às refeições, sob a orientação de um Padre Jesuíta experiente e sabedor.

Os temas lançados para reflexão eram actuais, exigentes e bem pensados, com uma boa simbiose entre uns mais teóricos e outros mais práticos, e foram de uma maneira geral superiormente comentados pelo orientador do retiro.

O silêncio que por ali reinou praticamente sem falhas foi naturalmente fulcral para que os objectivos pretendidos - resumidos na frase " retirar-nos serve sempre para voltar melhor para a vida" - possam ser atingidos, gerando descanso ("só avança quem descansa", lema de uma conhecida reflexão), calma e o consequente enfoque no que a vida tem de mais importante, no que podemos fazer para melhorar a nossa forma de vida e a dos que nos estão próximos.

Vim melhor, mais "cristão", espero que se mantenha. Procurarei não me esquecer de fazer por isso, é difícil mas vale bem a pena.

Entretanto, deixo-vos com a lisboeta Ana Bacalhau, conhecida sobretudo dos Deolinda mas aqui a solo, com uma música cujo nome tem alguma coisa a ver com o que fui ouvindo e refletindo no retiro.

Espero que apreciem.

fq

18 abril 2018

O Sagrado e o Profano (ou crónica de um peregrino no Alentejo II)



As fotografias acima são da Igreja de Santa Maria Madalena, em Olivença. Curiosamente, o côr-de-rosa, mais dominante na fotografia de baixo, é quase uma ilusão de óptica, pois o tecto está pintado de branco. A tonalidade deriva do facto da luz atravessar um vitral em tons de azul e amarelo.

***



O restaurante: Adega do Cachete, em S. Pedro do Corval (Reguengos). Falamos de uma sopa de cação, perfumada com poejos e coentros, e uns secretos de porco que se desfaziam na boca, acompanhados de um esparregado pecaminoso. Antes vieram uns torresmos, sobre os quais não há vocabulário...

***

O sagrado e o profano, nesta peregrinação por terras de Reguengos.

JdB

17 abril 2018

Crónica de um peregrino no Alentejo



Estou em Monsaraz. Podia falar dos pezinhos de coentrada que provei e cuja consistência me suscitou desinteresse; podia falar do vinho, do bom tempo, do fim de tarde glorioso, da antevisão de uma ida a Olivença, aquele enclave luso em terras castelhanas. Mas o que fixo é isto: o silêncio, a lonjura, o infinito, um ou outro regresso a uma adolescência feliz, a calma. Acima de tudo o silêncio, esse bem escasso nas sociedades modernas. 




Alentejo


A luz que te ilumina,

Terra da cor dos olhos de quem olha!

A paz que se adivinha

Na tua solidão

Que nenhuma mesquinha

Condição

Pode compreender e povoar!

O mistério da tua imensidão

Onde o tempo caminha

Sem chegar!...   

   

Miguel Torga, 1974, in "Antologia Poética"





16 abril 2018

Dunning-Kruger

havia sempre qualquer coisa que não,
como uma equação que ficasse por resolver,
um cubo mágico resistente à perícia.

ele: um marechal-general no seu labirinto,
jogando xadrez e alta estratégia,
com o seu irmão-espectro-fantasma.

pena o curso interrompido,
quando descobriu os romances de cavalaria,
abandonando a grande escola prática.

talvez tivesse ido às aulas de psicologia,
talvez tivesse estudado o efeito de Dunning-Kruger,
talvez não tivesse falhado a vida
- ou a mais simples pontaria.

gi.

15 abril 2018

III Domingo da Páscoa

EVANGELHO – Lc 24,35-48

Naquele tempo,
os discípulos de Emaús
contaram o que tinha acontecido no caminho
e como tinham reconhecido Jesus ao partir do pão. Enquanto diziam isto,
Jesus apresentou-Se no meio deles e disse-lhes: «A paz esteja convosco».
Espantados e cheios de medo, julgavam ver um espírito. Disse-lhes Jesus:
«Porque estais perturbados
e porque se levantam esses pensamentos nos vossos corações? Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo;
tocai-Me e vede: um espírito não tem carne nem ossos,
Como vedes que Eu tenho».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e os pés. E como eles, na sua alegria e admiração,
não queriam ainda acreditar, perguntou-lhes:
«Tendes aí alguma coisa para comer?» Deram-Lhe uma posta de peixe assado,
que Ele tomou e começou a comer diante deles. Depois disse-lhes:
«Foram estas as palavras que vos dirigi, quando ainda estava convosco:
‘Tem de se cumprir tudo o que está escrito a meu respeito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos’».
Abriu-lhes então o entendimento
para compreenderem as Escrituras
e disse-lhes:
«Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia,
e que havia de ser pregado em seu nome
o arrependimento e o perdão dos pecados
a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sois as testemunhas de todas estas coisas».

14 abril 2018

Pensamentos Impensados

Realidades
Sophia é Rainha e é uma Senhora.
Letizia é uma Rainha mas não é uma senhora.

Descarto-me
Mais uma vez aqui venho discordar do sucesso da frase penso, logo existo. É uma frase duma total vacuidade, ou como diria Hermann José, sem substrato. Proponho eu pago impostos, logo existo.  Tem conteúdo. Enfim, a patetice é livre e foi para isso que se fez o 25 de Abril.

Portas abertas
Há uns bons 50 anos eu e o mesmo primo que me acompanhou  na visita a S. Miguel de Odrinhas, fomos visitar o Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães. Nesse tempo julgo que não havia Guias e as visitas eram conduzidas por um porteiro ou contínuo. A visita fez-se com o "guia" a debitar frases do género: este quadro representa Fulano, nesta cama dormiu Beltrano e nesta cadeira sentava-se Cicrano. A dada altura disse: Coisas dos tempos dos Condes e dos Marqueses. E assim acabou a visita.

Suspensões
Lula da Silva talvez não tivesse sido preso se tivesse pedido o Habeas Corpus da Sophia Loren.

Votações
Só lhe faltavam 80% dos votos para atingir a unanimidade.

Regras
Aquilo que no futebol se chama descontos devia chamar-se acrescentos.

SdB (I)

13 abril 2018

Encontros dos dias que correm


9ª Conferência Europeia da Childhood Cancer International

Enquanto entidade organizadora, a Acreditar acolhe em Lisboa, entre os dias 13 e 15 de Abril, 120 representantes de congéneres europeias bem como membros da Sociedade Europeia de Oncologia Pediátrica.

Sob o lema Fit for the Future (Preparar o Futuro), as associações europeias representantes de pais de crianças e jovens com cancro e sobreviventes vão falar do futuro do cancro pediátrico em todas as suas vertentes: o apoio aos doentes e famílias, as novas terapias, passando pelas questões da sobrevivência. 

Sobre a Childhood Cancer Internacional: organização que congrega associações de pais de crianças e jovens com cancro e sobreviventes de todo o mundo. Foi criada em 1994, tendo a Acreditar sido um dos membros fundadores. É actualmente constituída por 183 associações de pais e doentes de cancro infantil que representam, no total, 310 associações, espalhadas pelos cinco continentes.

12 abril 2018

Contos dos dias que correm

Esta Noite em Samarcanda

Uma manhã, o califa de uma grande cidade viu chegar o seu primeiro vizir num estado de grande agitação. Perguntou as razões desta aparente inquietação e o vizir disse-lhe:

- Suplico-te, deixa-me sair desta cidade ainda hoje.

- Porquê?

- Esta manhã, ao atravessar a praça para vir ao palácio, senti que me batiam no ombro. Voltei-me e vi a morte que me olhava fixamente.

- A morte?

- Sim, a morte. Reconheci-a logo, toda vestida de negro com um xaile vermelho. Está cá e olhou para mim para me meter medo. Procura-me, tenho a certeza. Deixa-me sair da cidade neste mesmo instante. Levo o meu melhor cavalo e posso chegar esta noite a Samarcanda.

- Seria mesmo a morte? Tens a certeza? 

- Absoluta. Vi-a como te vejo a ti. Tenho a certeza de que tu és tu e tenho a certeza que ela era ela. Deixa-me partir, peço-te.

O califa, que tinha afecto pelo seu vizir, deixou-o partir. O homem voltou a sua casa, selou o melhor dos seus cavalos e transpôs a galope uma das portas da cidade, em direcção a Samarcanda.

Um pouco mais tarde, o califa, atormentado por um pensamento secreto, decidiu disfarçar-se, como por vezes fazia, e sair do seu palácio. Sozinho, dirigiu-se à grande praça. No meio dos ruídos do mercado, procurou a morte com o olhar e avistou-a, reconheceu-a. O vizir não se tinha enganado. Tratava-se realmente da morte, alta e magra, de negro vestida, o rosto meio dissimulado sob um xaile de algodão vermelho. Ia de um grupo para outro, no mercado, sem que dessem por ela, aflorando com um dedo o ombro do homem que montava a sua tenda, tocando no braço de uma mulher carregada de hortelã, evitando uma criança que corria para ela.

O califa dirigiu-se à morte. Esta reconheceu-o imediatamente, apesar do disfarce, e inclinou-se em sinal de respeito.

- Tenho uma pergunta a fazer-te – disse-lhe o califa, em voz baixa.

- Escuto.

- O meu primeiro vizir é um homem ainda novo, de boa saúde, eficaz e provavelmente honesto. Porque é que esta manhã, quando ele vinha para o palácio, lhe tocaste e o assustaste? Porque o olhaste com um ar ameaçador?

A morte pareceu ligeiramente surpresa e respondeu ao califa:

- Não queria assustá-lo. Não o olhei com ar ameaçador. Simplesmente, quando chocámos por acaso na multidão e o reconheci, não pude esconder o meu espanto, o que ele deve ter tomado por ameaça.

- Espanto porquê? - perguntou o califa.

- Porque – respondeu a morte – não esperava vê-lo aqui. Tenho um encontro com ele esta noite, em Samarcanda.

In Tertúlia de Mentirosos, colectânea de contos compilada por Jean-Claude Carrière

11 abril 2018

Vai um gin do Peter's?

HÁ 500 ANOS, OS MERCADORES ITALIANOS VIAJARAM COM A MADONNA DI LORETO 

É conhecida a frase de Darwin sobre o trunfo dos animais que melhor sobreviveram à turbulência climática e geológica do planeta. Primeiro, o investigador desfez o equívoco do costume: não foram as espécies mais inteligentes, nem as mais fortes, maiores e/ou majestosas. Os campeões tinham sido os mais versáteis, pela destreza em adaptar-se às novas condições de vida, suplantando dificuldades e ameaças.   

Três séculos antes de Charles Darwin, os mercadores italianos(1) provaram a validade da sua tese, ao desencantarem uma resposta à altura do rombo comercial provocado pela chegada de Vasco da Gama à Índia, na Primavera de 1498. 

Viagem das 3 naus com um navio de abastecimento.
Lisboa - 8.Jul.1497 »»  Calecute - 17.Maio.1498

Já em 1453, a conquista de Constantinopla pelos otomanos tinha aberto brechas irreversíveis no monopólio das especiarias, tornando arriscada a rota do Mediterrâneo. No entanto, a estocada final deu-se com a inauguração da via marítima Atlântico-Índico, que desviou para o Tejo o poderoso circuito comercial das preciosidades exóticas orientais. 

Com enorme diligência e esforço, considerando a precariedade dos meios de transportes quinhentistas, inúmeras famílias de Florença, Veneza, Génova, Cremona e Piacenza decidiram instalar-se em Lisboa. A rapidez e radicalidade do transplante poderá ter sido influenciado por inside information sobre a revolução comercial iminente causada pelos portugueses, uma vez que muitos dos especialistas estrangeiros contratados pela coroa nacional para preparar a navegação em oceano, vinham de Itália. Por iniciativa do Infante D.Henrique, Portugal transformara-se num laboratório científico e tecnológico, onde se apuravam as técnicas de marinharia(2) através dos progressos registados na matemática, na astronomia, na construção naval, ou no equipamento náutico, para permitir navegar em alto mar – um meio infinitamente mais hostil do que as águas seguras e conhecidas do Mediterrâneo.  

Duas décadas depois do desembarque em Calecute, o grupo de italianos radicados em Lisboa já se impunha em número e importância. A capital portuguesa convertera-se numa metrópole rica e fervilhante de europeus e gentes de outras raças, entre curiosos, cientistas, espiões, navegadores, mercenários, comerciantes, artesãos, artistas e imigrantes.

À época, Lisboa podia orgulhar-se de ser a única capital europeia, onde se passeavam transeuntes africanos, como o ilustra a pintura flamenga «Chafariz D’El Rei», datada entre 1570 e 1619 pelas duas prestigiadas especialistas britânicas neste período – Annemarie Jordan e Kate Lowe.
Actualmente, pertença da colecção Berardo.

Ciosa das suas raízes, a comunidade da língua de Dante tratou de angariar fundos para comprar um terreno junto à muralha fernandina, onde veio a ficar a torre Norte da Porta de Santa Catarina, para ali erigir uma igreja dedicada à Madonna di Loreto. A italianidade impregnou a obra, sob a batuta do arquitecto Filippo Terzi. A própria independência territorial também ficou assegurada, com a integração do novo templo na paróquia mais importante de Roma, situada a 1.800 kms de Lisboa: S.João de Latrão! Ainda hoje mantêm o vínculo directo à Santa Sé, sob a gestão da ordem missionária Dehoniana (desde 1953). 

Recuando 500 anos, até ao dia 8 de Abril de 1518, dava-se a inauguração do espaço sagrado que os lisboetas conhecem por «Igreja dos Italianos». Logo na fachada exterior principal, que ainda é a original (séc.XVII), o nicho alto ostenta uma imagem de Nossa Senhora do Loreto com o menino, trazendo para Portugal a devoção já muito popular em Itália, desde o século XIV. Sobre a porta, persistem as armas pontifícias ladeadas por dois anjos, do escultor Borromini. Nos nichos laterais há duas estátuas de estilo italiano, mas atribuídas a um escultor francês. 



A segunda imagem do Loreto encontra-se na capela-mor, também conhecida pela sua abóboda de berço e pelo retábulo de mármore policromado italiano. Esta devoção evoca a forma milagrosa como a casa da Sagrada Família, em Nazaré, escapou aos saques dos sarracenos e foi transportada por anjos desde a Terra Santa até à Europa. Começou por “fazer escala” na Croácia mas, pouco depois, “aterrou” na povoação italiana de Loreto, onde se mantém, continuando a atrair peregrinos dos lugares mais recônditos. Não por acaso, foi escolhida para Padroeira da Aviação, aludindo ao modo como chegou à costa norte da bacia mediterrânica.  



Na decoração interior da Igreja predomina o mármore italiano, numa disposição em nave central com doze capelas laterais, intercaladas pelas grandes pinturas murais dos doze apóstolos a parecerem esculturas portentosas, a par das imagens dos evangelistas em pedra. 

As vicissitudes por que passou, consumida violentamente por dois incêndios – em 1651 e no terramoto de 1755 –, não atrapalharam a comunidade italiana de Lisboa que, no espaço de 2 décadas, se lançou nas obras de reconstrução, quase de raiz. O segundo projecto já tem cunho português, num projecto neoclássico de Joaquim António dos Reis Zuzarte, depois concluído por José da Costa e Silva.

Na fachada ocidental, o tom pastel em azul-esverdeado,  deu maior sofisticação à Praça Camões

A anteceder as comemorações do quinto centenário, houve novo restauro, terminado em vésperas do Natal de 2017. Mal os andaimes foram retirados, a nova iluminação suspensa do tecto trouxe à luz a variedade dos murais, a beleza das imagens e dos painéis do revestimento superior (séc.XIX), além de realçar as telas sobre os altares laterais. A Igreja renasceu com um interior festivo e colorido, até ali escondido sob um pó escuro, que lhe dava um aspecto triste e empobrecido. 

O painel central é da autoria de Pedro Alexandrino de Carvalho (1810) e a parte periférica do tecto, além dos murais com os 12 Apóstolos, são de Cirilo Volkmar Machado (1823). A soberba elipse suspensa, repleto de focos luminosos cirurgicamente apontados, veio de Espanha.  

A sacristia também vale uma visita, para se apreciarem os azulejos do ceramista espanhol Gabriel del Barco e as pinturas de António Machado Sapeito. Outra das preciosidades escondidas desta Igreja é o arquivo histórico luso-italiano, que preserva documentos de origem, um deles do século XV.  

As comemorações do quinto centenário envolvem um programa intenso de concertos, conferências, visitas(3), que darão pretexto a redescobrir a nova decoração do Loreto, consistentemente italianizada. 

Quem conheça bem o Chiado e esta Igreja, saberá que um dos seus carismas, invulgar na Lisboa de hoje, é a confissão, num horário alargado, 360 dias por ano com raras falhas. Nem ali falta o sotaque e o salero italianos, a fazer jus ao cunho original da primeira comunidade de expatriados vindos das belíssimas cidades, que só se reuniram sob a mesma bandeira em 1870. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)

(1)  Como país unificado, Itália data de 1870.
(2)  Os dois gins dedicados à exposição da Gulbenkian «360º Ciência Descoberta» focam-se nesta convulsão da arte da navegabilidade: sobretudo 20 de Maio de 2013; parcialmente também 22 de Abril de 2013. 
(3)   Site da Igreja: http://igrejaloreto.wixsite.com/lisboa e dois artigos muito elucidativos da RR:   http://rr.sapo.pt/noticia/110191/500-anos-igreja-do-loreto-lanca-programa-de-comemoracoes


10 abril 2018

Duas Últimas

Aviso à navegação: este post não é para gente que queira coisas contentinhas pela manhã.

O Eça falava no som triste do oboé mas eu tenho para mim que som triste mesmo é o do violoncelo. Talvez não haja instrumento tão triste, mesmo quando (e não é este o caso) toca uma música agitada. Há no som do violoncelo uma nostalgia, uma gravidade e uma tristeza bela que são independentes, quase, daquilo que interpretam. 

O violoncelo não é, digo eu que nada sei, um instrumento de Primavera, menos ainda de Verão: é outonal, sobretudo: reflexivo, convidando à interioridade, ao dobrar-se sobre si mesmo para efeitos de protecção do que agride e que vem do exterior, que por vezes não é mais do que o interior que parece que vem de fora. 

Talvez este canto dos pássaros que aqui vos trago não seja o que os traz para cá, mas o que os leva para fora. É um movimento de partida, porque outonal, porque acompanhado pelos dias que encurtam e que convidam à memória - esse refúgio que todo o homem procura em tempos de intempérie.

E talvez este cinema paraíso seja todo ele feito de preto e branco, de lembranças, de beijos roubados e de fogos que tudo levaram, menos aquilo que nenhum fogo consome.  

Não é, repito, um post para gente contentinha. Para isso há estabelecimentos melhores.

JdB




09 abril 2018

Dos adjectivos e das acções *

Emma Woodhouse, handsome, clever, and rich, with a comfortable home and happy disposition, seemed to unite some of the best blessings of existence; and had lived nearly twenty-one years in the world with very little to distress or vex her.

É assim que começa o romance Emma, de Jane Austen. De alguma forma seria assim – obviamente com outros adjectivos que completassem o quadro – que descreveríamos muitos dos nossos amigos: egoísta, generoso, atento, irascível, avaro, orgulhoso, simples, discreto, corajoso, divertido, inteligente.

Obviamente que só poderemos classificar os nossos amigos desta forma depois de os termos vistos em acção. Quando eles nos chegam ao contacto são uma folha em branco – ou uma folha semi-preenchida por terceiros. Nada sabemos deles e aceitarmos o que deles nos dizem está numa dimensão de confiança, ou de credulidade, sempre afectada por uma expectativa. Afinal, cada um vê o que vê, o que para si é importante ou tem mais impacto. Ser-se generoso requer demonstração, a entrega de uma certa evidência; classificar alguém de irascível só é justo se o tivermos visto exercer a sua irascibilidade; só se é corajoso em face de uma situação de risco. Não sabemos o que somos até agirmos.

Imaginemos, então, que nos era pedido para descrevermos um amigo muito próximo. Mas, em vez de usarmos adjectivos – orgulhoso, vaidoso, culto, egocêntrico – estávamos obrigados a referenciar situações. Isto é, não dizer que fulano é generoso, mas que fulano, num determinado dia, prescindiu do seu almoço para dar o dinheiro aos pobres. Não dizer que fulano é inteligente, mas que numa determinada situação – ou continuidade de situações – consegue discernir, encontrar ligações, ver mais além.

Há diferença na abordagem? Há seguramente. Qual é a diferença? Não tenho bem a certeza. Mas fico com a sensação de que é mais justo – ainda que potencialmente mais maçador. Obriga-nos a um exercício de memória que é uma retribuição nos casos positivos: não falar das virtudes com um ar vago mas identificá-las, e ser isso que caracteriza uma pessoa. Nos casos negativos a coisa fia mais fina, e não sei o que dizer... A vida das pessoas é muito mais do que aquilo que elas são. É também, ou sobretudo, o que elas fizeram.


JdB

* publicado originalmente em 12 de Novembro de 2014

08 abril 2018

2º Domingo da Páscoa

EVANGELHO – Jo 20,19-31

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».
Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo,
não estava com eles quando veio Jesus.
Disseram-lhe os outros discípulos:
«Vimos o Senhor».
Mas ele respondeu-lhes:
«Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos,
se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado,
não acreditarei».
Oito dias depois,
estavam os discípulos outra vez em casa,
e Tomé com eles.
Veio Jesus, estando as portas fechadas,
apresentou-Se no meio deles e disse:
«A paz esteja convosco».
Depois disse a Tomé:
«Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos;
aproxima a tua mão e mete-a no meu lado;
e não sejas incrédulo, mas crente».
Tomé respondeu-Lhe:
«Meu Senhor e meu Deus!»
Disse-lhe Jesus:
«Porque Me viste acreditaste:
felizes os que acreditam sem terem visto».
Muitos outros milagres fez Jesus na presença dos seus discípulos,
que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram escritos
para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus,
e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome.

07 abril 2018

Pensamentos Impensados

Predestinado
Nasceu no dia 25 de Dezembro na cidade de Natal; chamava-se Natalino.

Nos braços de Morfeu
Dormiu bem?
Não sei, estava a dormir.

Ataques súbitos
O sexo, na Natureza, nem sempre é de comum acordo; muitas vezes é precedido de coices, dentadas
e patadas.  Isto é que é assédio sexual.

Quedas
Decadente - Diz-se de quem lhe caiu o décimo dente.

Impostos
O marido contratou um capanga para lhe matar a mulher.
O alegado homicida não sabe em qual alínea do IRS deve declarar o dinheiro recebido.

Nobiliarquia
Rainha Isabel cria novo título de nobreza: "Sir" Ampo.

Armas brancas
Fui ao talho; o ambiente era de cortar à faca.

SdB (I)

05 abril 2018

Poemas dos dias que correm

O Mar é Longe, mas Somos Nós o Vento

O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.

Pedro Tamen, in "Daniel na Cova dos Leões"

***

Desencontro

Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.

E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,

de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra.

Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum'

04 abril 2018

Pensamento Impensado

Bis...cicleta
Juventus vai protestar o jogo contra o Real Madrid, alegando que Ronaldo marcou um golo montado numa bicicleta.

SdB (I)

Pensamento Impensado

Pato bravo
Nos  Estados Unidos é raro o dia em que não há uma trampalhada.

SdB (I)

Duas Últimas

Uma ronda cuidada pelas letras de tudo o que se escreveu em Portugal (ou no mundo sobre Portugal) para ser cantado revelaria certamente muitas comunalidades. Se é fado é saudade, triseza, ciúme, guitarra. Se sairmos do fado pode ser tudo: cavalos de corrida, cartas de amor, anel de rubi. Do que se escreve sobre Portugal não sei - mas imaginaria Amália, Eusébio, Ronaldo, Mourinho, talvez obrigado, bom dia, adeus, marisco.

Carlos Cano compôs esta música - Maria la Portuguesa - em homenagem a Amália. Gosto da música (embora não sei bem que tipo de música é) mas nem sempre tenho castelhano suficiente para perseguir o que o cantante diz. Mas fixo palavras curiosas, que elevam o reino dos algarves a uma nível diferente, porque constante de letras internacionais que falam de Vila Real e Faro (também Ayamonte, que é um pouco nosso por via das compras). 

Fado, Amália, Maria a Portuguesa, Faro e Vila Real. Talve se fale de Albufeira e Armação de Pera ou Zézé Camarinha, mas já lá não chego. Brincadeiras à parte, aqui ficam duas versões da música que Carlos Cano compôs em homenagem à fadista. Música de que gosto muito. Afinal é um ritmo latino e eu, sei lá porquê, é disto que gosto...

JdB 



03 abril 2018

Das relíquias

A minha relação com as relíquias religiosas só não é mais queiroziana por algum respeito pela Igreja e manifesta falta de rasgo literário da minha parte. Sendo A Relíquia um dos meus livros de eleição, é nele (também) que vou buscar citações que me divertem com quem as sabe - o meu Pai ou o meu querido amigo fq. O Raposão traria uma relíquia da Terra Santa (e lembremo-nos que Jerusalém era, para o Alpedrinha, pior que Braga, irra!) que provocaria êxtases à Titi - nada mais nada menos do que a coroa de espinhos com que Cristo foi crucificado. Veio, afinal, a camisa de noite da Mary - a Maricoquinhas. Do odor de santidade ao odor de sensualidade foi um instante que marcou a perdição do devasso. 

***

Durante séculos a Igreja e as relíquias viveram excessivamente perto uma da outra. Supostamente provenientes de um santo, um dedo era objecto de veneração, um dente idem idem, uma tíbia em bom estado ou um perónio semi-carcomido pelos vermes e pelo tempo suscitavam uma hiper-ventilação devota. Há relíquias expostas em igrejas mas não lhes encontro mais do que uma porcaria morta, putrefacta, feia, susceptível de crendices e tratadas como se fossem uma preciosidade. Que não são.

Para efeitos do que aqui me traz, o dedo de S. Francisco Xavier é tão relevante para a História da humanidade como o dedo de Isaac Newton ou do merceeiro do meu bairro. A tíbia do Padre António Vieira não faz mais pela salvação das almas do que igual osso do pai do soldado desconhecido, sendo que não se sabe quem é um ou outro (o soldado e o pai...).  Um dedo é um dedo, um osso é um osso, e não consigo perceber por que motivo devemos acarinhar estas ideias peregrinas da importância das relíquias. S. Francisco Xavier foi importante pelo que fez, e a santidade está nele, não num dedo gangrenado e preto colocado numa caixa de madeira nobre. O que os santos fizeram e que devia ser motivo de exemplo ou inspiração não se vê numa tíbia, numa caveira, num cabelo conservado por artes humanas. O importante neles é o testemunho, não a anatomia. Cultivar a devoção à relíquia é cultivar o direito à fezinha, ao meu santo antoninho, ao meu querido s. judas tadeu. Um santo é aquilo que pensou, escreveu, fez. E isso não se vê num fémur - que nem se sabe se é de quem se pensa que é.

Vem este arrazoado cansado e invernoso a propósito do Santo Sudário. Falou-se nesse tema há umas semanas, num almoço de amigos, a propósito de uma conferência. Voltei a ler sobre isso este sábado, no Observador. Vivia com a impressão que já se tinha provado que aquele pano não era do tempo de Cristo; fiquei depois com a impressão que sim, que é. Confesso que não sei bem o que pensar - e não sei se quero pensar muito. Uma parte do sudário é uma relíquia -  um osso, um prego que cravou Jesus Cristo, a coroa de espinhos que o Raposão traria à Titi, uma madeirinha (ou tabuinha?) aplainada por S. José. Uma parte do sudário é, repito, um objecto de devoção que não percebo bem, embora seja evidente a diferença relativamente ao eventual polegar de Santa Escolástica. A importância está em Jesus Cristo, não no que ele usou, mesmo que fosse naquilo que nos redime - a Cruz, a sepultura, a ressurreição.

Ora, há uma diferença no Santo Sudário. Um dedo é um dedo, um osso é um osso, um cabelo é um cabelo e, nesse sentido (e nesse sentido apenas) um cravo seria um cravo, uma madeirinha uma madeirinha. Porém no Santo Sudário há uma diferença substantiva: a manifestação de uma ciência que só poderia ser divina. Jesus Cristo, presumo eu, não foi pintado antes de ser sepultado. Ora, nesse sentido, não há razão, à luz da ciência, para que o corpo de Cristo ficasse marcado (talvez pintado seja demasiado profano...) naquele tecido que o envolveu. Houve uma explosão qualquer - uma libertação de energia, um milagre, algo não explicável à luz do conhecimento actual. É fácil cortar-se  uma falangeta, arrancar uma mecha de cabelo, rapar um bocadinho do madeiro onde Cristo agonizou. Mas ninguém sabia fazer aquilo com o Santo Sudário. É por isso, e só por isso, que eu gostaria que o Santo Sudário fosse verdadeiro. Era o sinal do celeste, do espantoso - de tudo o que está acima da nossa compreensão e que nos remete a uma pequenez saudável. 

Estarei demasiado irreverente?

JdB  

01 abril 2018

Do controlo da imperfeição *

Fiat lux. Depois disto, e ao longo de seis dias, tudo se criou: a separação da terra e das águas, a verdura, a erva com semente, as árvores de frutos; a tarde e a manhã, ao terceiro dia; os monstros marinhos e todos os seres vivos que se movem na água, e todas as aves aladas; depois os animais domésticos, os répteis e os animais ferozes. Por fim, o ser humano, a quem foi dado tudo o que havia sido criado nos dias antes. O Homem agarrou então naquilo que existia em seu redor e na inteligência com que tinha sido bafejado e criou as coisas científicas: a roda, as válvulas, a máquina a vapor, o pressóstato, a electricidade, o bico de bunsen, os computadores, a placa de petri, a gasolina, o óleo lubrificante, o viscosímetro e o jacto de tinta. 

Assim como Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, o homem criou a técnica à sua imagem e semelhança. No entanto, enquanto Um desejou a permanente perfeição, o outro contentou-se com a eterna imperfeição. A consciência da imperfeição é um princípio de sabedoria, talvez o ponto mental mais chegado ao absoluto primor de que o ser humano é capaz. E por isso tudo é inventado, não pelo esmero das coisas, mas por uma espécie de quase oposto. Não se inventa a perfeição, mas o controlo da imperfeição. Porque se inventou o pressóstato? Para manter constantes as pressões dos fluidos. O que motivou Petri a inventar a placa? A dominação do crescimento microbiano. Para que serve o óleo lubrificante? Para reduzir o atrito.

A imperfeição é o apelido pelo qual todos os homens se tornam iguais, membros de uma mesma congregação - que mais não é do que uma família que se entende pelo jargão. É por isto que o homem não consegue dominar uma certa vida própria dos fluidos, a assepsia nos ambientes, a fricção entre materiais que gemem e aquecem de dor. Dar como supérfluo a existência de alguns equipamentos, imaginar-lhes obsolescência face à perfeição que se deseja é ambicionar em cada rosto frágil o olhar de Deus sobre o mundo, é usurpar o trono onde Ele se senta com um amor que não o é senão. Só o inacabado é nosso, cabe nas nossas mãos, circula livremente pela nossa mente. Por isso a placa, o lubrificante, tudo o resto. A perfeição não nos pertence - apenas somos donos do caminho que a tem como destino nunca alcançado.

Só a guerra é nossa, que a paz é coisa do Céu. Talvez por isso o homem tenha inventado os acordos, que mais não são do que o pressóstato das pessoas que respiram.

JdB     

* publicado originalmente em 20 de Fevereiro de 2015

1º Domingo da Páscoa

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

No primeiro dia da semana,
Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro
e viu a pedra retirada do sepulcro.
Correu então e foi ter com Simão Pedro
e com o discípulo predilecto de Jesus
e disse-lhes:
«Levaram o Senhor do sepulcro
e não sabemos onde O puseram».
Pedro partiu com o outro discípulo
e foram ambos ao sepulcro.
Corriam os dois juntos,
mas o outro discípulo antecipou-se,
correndo mais depressa do que Pedro,
e chegou primeiro ao sepulcro.
Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou.
Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira.
Entrou no sepulcro
e viu as ligaduras no chão
e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus,
não com as ligaduras, mas enrolado à parte.
Entrou também o outro discípulo
que chegara primeiro ao sepulcro:
viu e acreditou.
Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura,
segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.

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