28 fevereiro 2023

Textos dos dias que correm

Nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo.
 
Na mocidade somos dois: há em nós a coexistência da nossa inteligência própria, que pode ser grande, e a da estupidez da nossa inexperiência, que forma uma segunda inteligência inferior. Só quando chegamos a outra idade se dá em nós a unificação. Daí a acção sempre fruste da juventude — devida, não à sua inexperiência, mas à sua não-unidade.
 
Ao homem superiormente inteligente não resta hoje outro caminho que o da abdicação.
 
s.d.
 


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
europa-américa
1986

27 fevereiro 2023

Músicas dos dias que correm

 

Enviado por mão amiga com a seguinte legenda: Esta música e vídeo é uma homenagem à Ucrânia e ao seu povo. Slavia Ukraina!!!

Uma música de um tempo que foi o meu...

JdB


26 fevereiro 2023

I Domingo da Quaresma

EVANGELHO - Mt 4,1-11

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto,
a fim de ser tentado pelo Demónio.
Jejuou quarenta dias e quarenta noites
e, por fim, teve fome.
O tentador aproximou se e disse lhe:
«Se és Filho de Deus,
diz a estas pedras que se transformem em pães».
Jesus respondeu lhe:
«Está escrito: 'Nem só de pão vive o homem,
mas de toda a palavra que sai da boca de Deus'».
Então o Demónio conduziu O à cidade santa,
levou O ao pináculo do templo e disse Lhe:
«Se és Filho de Deus, lança Te daqui abaixo, pois está escrito:
'Deus mandará aos seus Anjos que te recebam nas suas mãos,
para que não tropeces em alguma pedra'».
Respondeu lhe Jesus:
«Também está escrito: 'Não tentarás o Senhor teu Deus'».
De novo o Demónio O levou consigo a um monte muito alto,
mostrou Lhe todos os reinos do mundo e a sua glória,
e disse Lhe:
«Tudo isto Te darei,
se, prostrado, me adorares».
Respondeu lhe Jesus:
«Vai te, Satanás, porque esta escrito:
'Adoraras o Senhor teu Deus e só a Ele prestaras culto'».
Então o Demónio deixou O
e logo os Anjos se aproximaram e serviram Jesus.


24 fevereiro 2023

Dos opostos complementares *

- Tu sabes o que é um milagre, Jorge? Sabes o que é um milagre? 

E o Jorge, de olhos postos numa gravura que se descreve já de seguida, a dizer que sim, que sabia, pois então. O milagre é um feito religioso insólito, que supõe uma intervenção especial e gratuita de Deus...

Pela tua rica saúde, Jorge! O milagre não é isso. Isso que descreveste é um espectáculo de fogo de artifício para deleite dos néscios. O problema do milagre, como a humanidade o vê desde sempre, está no desejo do espectáculo, da coreografia, da encenação. E no entanto, o mais importante está no dia seguinte. O milagre, Jorge...

E o Jorge a manter-se de olhos fixos na gravura, pese embora a atenção que dá à Pureza, sua namorada, uma rapariga sobre o baixo, com um ligeiro excesso de peso e de volume ao nível das nádegas e ancas, muito loira e de olhos azuis de água paradisíaca. Mas a gravura, meu Deus!

- ... o milagre, Jorge, pode não ser mais do que uma cozinha impressiva de autor. Lava-nos o palato ou os olhos, mas é efémera, porque actua apenas nos sentidos. O milagre está no dia seguinte, na reverberação de uma palavra que redimiu, na lembrança de uma mão imposta sobre uma pústula, na persistência de um pensamento escutado. O milagre, naquele instante preciso em que Jesus curou o cego ou o paralítico ou o possesso, pode não ser mais do que pirotecnia, uma encenação ousada de uma ópera clássica. Todos estes personagens têm de ser revisitados nas suas casas, nos seus misteres, nas suas relações com os outros ou com o seu eu mais íntimo. O que ficou do milagre? Que mudanças houve que perduram no tempo, como uma cozinha de avó?

O raciocínio de Pureza era imbatível. Mas havia aquela gravura: Salomé, a sensual, e João, o Baptista, frente a frente, segurando ambos, numa metáfora simultaneamente carnal e cruel, uma espada e uma bandeja de prata. Por trás, o tetrarca, rei servidor de império ocupante, de semblante sucumbido e de olhos raiados de lascívia e discernimento, para quem aquela carne dançarina não era mais do que o prenúncio do inferno banhado a sangue inocente. 

Jorge era isto - as paredes crivadas de gravuras, as estantes de livros e a mente de ideias, tudo sobre o mesmo tema obsessivo: os opostos complementares, as simetrias de espelho, as saliências e as reentrâncias. Salomé e o Baptista como representantes do êxtase e da ascese; Cristo e a pecadora como representantes da virtude e do pecado; o branco e o negro na mesma tela, uma taça de gelo a arder, um puzzle, não como momento de lazer, mas como exercício de encaixe. 

Pureza aproximou-se dele e enlaçou-o pela cintura.

- Gostas da gravura, Jorge?

E o Jorge a dizer que sim, que gostava e a deixar-se abraçar, tocar, beijar, a ouvir mimos no pescoço, nos ouvidos, nos olhos, na pele efervescente de sensualidade e amor, nas mãos arrastadas de quem explora e amansa, de quem inquieta e provoca o seu inverso. E a campainha da porta a tocar quando o mundo estava em silêncio, quieto, imóvel, expectante de dois corpos que se agitarão ao som de um desejo. À porta, frente a uma Pureza loira, de olhos muito azuis transparentes, baixa e algo volumosa, está Désirée, uma nativa da Martinica, muito alta, muito escura, com uns olhos negros de carvão e uma finura de corpo que impressiona como um milagre inesperado. No sofá, ainda de olhos postos no êxtase e na ascese, no branco e no negro, no contraste dos dois nomes femininos, Jorge sorri, quase envergonhado, quase despudorado:

- faz-te confusão, Pureza?  

JdB 

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* publicado originalmente a 30 de Março de 2017      

22 fevereiro 2023

Quarta-feira de Cinzas

 Evangelho: Mateus 6, 1-6.16-18

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Tende cuidado em não praticar as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. Aliás, não tereis nenhuma recompensa do vosso Pai que está nos Céus. Assim, quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita, para que a tua esmola fique em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa. Quando rezardes, não sejais como os hipócritas, porque eles gostam de orar de pé, nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando rezares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa. Quando jejuardes, não tomeis um ar sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto, para mostrarem aos homens que jejuam. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os homens não percebam que jejuas, mas apenas o teu Pai, que está presente em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa».


Música para o dia de hoje

 

21 fevereiro 2023

Poemas dos dias que correm

CARNAVAL

A vida é uma tremenda bebedeira.

Eu nunca tiro dela outra impressão.

Passo nas ruas, tenho a sensação

De um carnaval cheio de cor e poeira...

A cada hora tenho a dolorosa

Sensação, agradável todavia,

De ir aos encontrões atrás da alegria

Duma plebe farsante e copiosa...

Cada momento é um carnaval imenso

Em que ando misturado sem querer.

Se penso nisto maça-me viver

E eu, que amo a intensidade, acho isto intenso

De mais... Balbúrdia que entra pela cabeça

Dentro a quem quer parar um só momento

Em ver onde é que tem o pensamento

Antes que o ser e a lucidez lhe esqueça...

Automóveis, veículos, (...)

As ruas cheias, (...)

Fitas de cinema correndo sempre

E nunca tendo um sentido preciso.

Julgo-me bêbado, sinto-me confuso,

Cambaleio nas minhas sensações,

Sinto uma súbita falta de corrimões

No pleno dia da cidade (...)

Uma pândega esta existência toda...

Que embrulhada se mete por mim dentro

E sempre em mim desloca o crente centro

Do meu psiquismo, que anda sempre à roda...

E contudo eu estou como ninguém

De amoroso acordo com isto tudo...

Não encontro em mim, quando me estudo,

Diferença entre mim e isto que tem

Esta balbúrdia de carnaval tolo,

Esta mistura de europeu e zulu

Este batuque tremendo e chulo

E elegantemente em desconsolo...

Que tipos! Que agradáveis e antipáticos!

Como eu sou deles com um nojo a eles!

O mesmo tom europeu em nossas peles

E o mesmo ar conjuga-nos

Tenho às vezes o tédio de ser eu

Com esta forma de hoje e estas maneiras...

Gasto inúteis horas inteiras

A descobrir quem sou; e nunca deu

Resultado a pesquisa... Se há um plano

Que eu forme, na vida que talho para mim

Antes que eu chegue desse plano ao fim

Já estou como antes fora dele. É engano

A gente ter confiança em quem tem ser...

(...)

Olho p'ró tipo como eu que ai vem...

(...)

Como se veste (...) bem

Porque é uma necessidade que ele tem

Sem que ele tenha essa necessidade.

Ah, tudo isto é para dizer apenas

Que não estou bem na vida, e quero ir

Para um lugar mais sossegado, ouvir

Correr os rios e não ter mais penas.

Sim, estou farto do corpo e da alma

Que esse corpo contém, ou é, ou faz-se...

Cada momento é um corpo no que nasce...

Mas o que importa é que não tenho calma.

Não tenciono escrever outro poema

Tenciono só dizer que me aborreço.

A hora a hora minha vida meço

E acho-a um lamentável estratagema

De Deus para com o bocado de matéria

Que resolveu tomar para meu corpo...

Todo o conteúdo de mim é porco

E de uma chatíssima miséria.

Só é decente ser outra pessoa

Mas isso é porque a gente a vê por fora...

Qualquer coisa em mim parece agora

s.d.

“Carnaval” Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. 

 - 7a.

20 fevereiro 2023

Poemas dos dias que correm

 When Desire Rests 

You know I'm looking at you
you know what I'm thinking
you know you're interested
I am very skillful
you will forget that I am old
unless you want to remember it
unless you want to see
what happens to desire
how free it becomes
how shamelessly involved in love
for every woman
                     and her stockings.
When desire rests,
it is signaled by two people
faraway on a green blanket
(or is it the flowers of moss);
two people waving from a distance
stretched out like things
                                    that have to dry
with tender smiles on their
                                    little round faces;
waving at desire
as it rests in the foreground
foothill-shaped, peaceful,
devoted as a dog made of tears.
leonard cohen 
***
Quando o desejo repousa

Sabes que estou a olhar para ti
sabes em que estou a pensar
sabes que estás interessada
sou muito hábil
vais esquecer-te de que sou velho
a menos que te queiras lembrar
a menos que queiras ver
o que acontece ao desejo
como ele se torna livre e
desavergonhadamente interessado no amor
por cada mulher
                      e pelas suas meias.
Quando o desejo repousa,
fazem-lhe sinal duas pessoas
distantes sobre uma manta verde
(ou serão as flores do musgo?);
duas pessoas que acenam ao longe
estendidas como coisas
                              que têm de secar
com sorrisos ternos nos
                              rostinhos redondos;
acenam ao desejo
enquanto este repousa em primeiro plano
maciço, tranquilo,
fiel como um cão feito de lágrimas.


leonard cohen
a chama
poemas
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019

19 fevereiro 2023

VII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mt 5, 38-48

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Ouvistes que foi dito aos antigos:
'Olho por olho e dente por dente'.
Eu, porém, digo-vos:
Não resistais ao homem mau.
Mas se alguém te bater na face direita,
oferece-lhe também a esquerda.
Se alguém quiser levar-te ao tribunal,
para ficar com a tua túnica,
deixa-lhe também o manto.
Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha,
acompanha-o durante duas.
Dá a quem te pedir
e não voltes as costas a quem te pede emprestado.
Ouvistes que foi dito:
'Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo'.
Eu, porém, digo-vos:
Amai os vossos inimigos
e orai por aqueles que vos perseguem,
para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus;
pois Ele faz nascer o sol sobre bons e maus
e chover sobre justos e injustos.
Se amardes aqueles que vos amam, que recompensa tereis?
Não fazem a mesma coisa os publicanos?
E se saudardes apenas os vossos irmãos,
que fazeis de extraordinário?
Não o fazem também os pagãos?
Portanto, sede perfeitos,
como o vosso Pai celeste é perfeito».

16 fevereiro 2023

Pensamentos dos dias que correm

Expectativa Frustrada

Quão melhor é apercebermo-nos de que as origens da ira são insignificantes e inofensivas! O que tu vês acontecer junto dos animais, também encontrarás nos homens: vivemos perturbados por coisas frívolas e vãs. O vermelho excita o touro, a áspide ergue-se perante uma sombra, um pano atiça um urso ou um leão: todos os seres da natureza ferozes e selvagens se assustam com coisas vãs. O mesmo acontece com os espíritos inquietos e insensatos: são vencidos pelas aparências; é por isso que consideram ofensiva uma gratificação modesta, a causa mais frequente da ira ou, pelo menos, a mais amarga de todas. De facto, iramo-nos com aqueles que nos são mais queridos porque nos deram menos do que esperávamos ou menos do que os outros obtiveram; para qualquer um dos casos, há um remédio. Ele deu mais a outro homem: contentemo-nos com a nossa parte, sem fazermos comparações: nunca será feliz aquele que atormenta quem é mais feliz que ele. Recebi menos do que esperava: talvez esperasse mais do que me era devido. Este capricho é um dos mais temíveis, pois dele nascem as iras mais perniciosas e mais capazes de atentar contra as coisas mais sagradas.

Séneca, in 'Da Ira'

15 fevereiro 2023

Vai um gin do Peter’s ?

 COMO A MEMÓRIA NOS REVELA  

Dependendo dos colégios por onde uns e outros andaram, assim terão sido mais ou menos frequentes os pedidos de redacções, ora com assunto pré-definido, ora de tema livre. Nos pré-fixados repetiam-se invariavelmente “as férias”, “o Natal”, o fim-de-semana, cada estação do ano, a escola, os amigos, num déjà vue cansativo, em que era custoso não replicarmos o que tínhamos escrito uns meses atrás. Por vezes, surgia um assunto mais inspirador, que nos ajudava a sair do marasmo comum, como experimentei com uma professora do liceu, mais pop, que recolhia ideias nos jornais, a partir de acontecimentos recentes ou de debates na ordem do dia. Essa aproximação a uma realidade mais colorida instigava-nos a investigar a matéria, a estruturar ideias e a esboçar um ponto de vista, conforme nos era dado ver e conhecer do dito assunto. 

Nesse esforço de escrita percebiam-se bem os temas que inspiravam uns ou outros, revelando um pouco da fase em que estávamos, ora tocados por experiências pessoais, ora estimulados por uma matéria política candente, ora fixados no hobby preferido, ora sensíveis a gestos contagiantes de outros. Tinha algo de pedagógico participar nesse exercício, onde se observavam múltiplas evoluções ou simplesmente percursos ziguezagueantes típicos do crescimento. O teste do algodão vinha, quase sempre, nas incursões retrospectivas, fossem narradas com maior preocupação com o vivido ou viessem mescladas com as afectividades individuais, únicas. Percebia-se quanto a memória se guiava (e guia) pelo caminho do coração. Por isso é deliciosa e diz muito deste aluno a redacção onde traça a professora da primária com tamanha estatura e gratidão, mesmo supondo que a protagonista merece ser assim lembrada. Mas quantos dos seus alunos lhe reconhecem este contributo para o seu desenvolvimento?

«A  MINHA  PROFESSORA 

Chega setembro e voltámos à escola. Ou, mais estrondoso ainda, ingressámos na escola pela primeira vez. Com que palavras se evocam essas figuras que, nos anos primeiros da nossa formação, nos ensinaram não só a ler e a contar, mas antecipadamente nos revelaram o que viria a ser impacto disso na nossa vida. São figuras matriciais, protagonistas pacientes que não se assustaram com a nossa turbulência e ignorância, que ativaram em nós o espanto, a inteligência e a dedicação, e fizeram de nós aquilo que depois seremos até ao fim: aprendizes.

“SÃO (…) PROTAGONISTAS PACIENTES QUE NÃO SE ASSUSTARAM COM A NOSSA TURBULÊNCIA E IGNORÂNCIA, QUE ATIVARAM EM NÓS O ESPANTO, A INTELIGÊNCIA E A DEDICAÇÃO”

Há dias dei comigo a pensar numa das minhas professoras do ensino primário. Conheci-a no último ano do primeiro ciclo do ensino básico, a então quarta classe. Havia feito os anos iniciais de escolaridade em Angola e chegava à Madeira, onde para mim tudo era novo e, certamente, também difícil, penso eu agora. A escola ajudou-me a refazer de dores de que eu não era consciente. Lembro-me de três episódios. O primeiro foi uma aula fora da escola, por meados de outubro: a professora levou-nos ao caminho do cais, serpenteado de grandes árvores, para que recolhêssemos folhas de outono. Eu até aí não sabia o que era o outono, habituado às duas estações africanas. Entreguei-me, por isso, àquela atividade um bocado às cegas, valorizando erroneamente alterações mínimas nas folhas, coisas que o verão produzira nelas. Enchi as mãos de folhas que me fizeram ouvir aquela que é a primeira frase que recordo da professora: “Essas não são ainda as folhas do outono.” A verdade é que, não sei bem porquê, recebi aquela correção sem descorçoar. Deve ter sido feita no tom certo. Voltei àquele caminho sozinho e com mais atenção. Encontrar o outono nas folhas tornara-se uma tarefa pessoal importantíssima e depressa aquelas folhas amareladas e vermelhas, como se fixassem em si uma labareda, vieram a ser a minha primeira coleção, para desconcerto dos meus irmãos e primos, que seguiam com ironia e desespero aquele meu súbito arrebatamento de caçador de inutilidades. Porém, alguma utilidade tiveram aquelas horas perdidas, pois, quando a professora nos pediu uma composição escrita sobre o outono, tinha alguma coisa para dizer. Isso, porém, não diminuiu a surpresa que para mim foi o modo como a professora festejaria a minha composição, colocando-a num quadro de cartolina, dependurado numa das paredes da sala. Experimentei contentamento e vergonha, pois na infância tudo nos custa mais do que se mostra, até a alegria. Este foi o segundo episódio. O terceiro foi dramático e não teve nada de escolar, mas atesta como os professores humanizam a escola, evitando que ela se torne uma máquina de processos e de técnicas. O barco onde trabalhava o meu pai não tinha entrado no porto, falava-se à boca pequena de um possível naufrágio e que os tripulantes estariam dispersos, e, quem sabe, mortos. A minha mãe sacudia como podia a nossa angústia e não tinha dúvidas de que o melhor seria não faltarmos à escola. Assim foi. Recordo que o nó que tinha na garganta estrangulava o meu corpo e que choramingava. A professora falou-me com desembaraço, como se fala aos crescidos nesses momentos, mas deu depois uma parte da aula sentada a meu lado.

Sei muito pouco da vida desta mulher maravilhosa que na minha cabeça ficou sempre como “a minha professora”. E o nosso encontro mais recente, teve o seu quê de cómico. Ela assistiu a uma sessão em que eu falava e no final veio cumprimentar-me. Senti uma emoção que não fui a tempo de esconder. E atrapalhado perguntei se ainda dava aulas. Ela deu uma gargalhada e, nesse momento, os nossos olhos com doçura se cruzaram. Só então me dei conta de como e porquê, dentro de nós, fantasiamos que o tempo não passa.»

– José Tolentino Mendonça – publicado na
revista do semanário “Expresso” de 5.SET.2020  

É significativo este artigo ter sido publicado no rescaldo do regresso às aulas, após 6 meses de ausência para a maioria dos miúdos, devido ao confinamento decretado em Março de 2020, a que se juntaram os 2 meses de férias. Meio ano longe da escola é muito tempo na vida de quem tem pouca idade! Partilhar uma lembrança tão positiva sobre quem mais nos pode ajudar na escola foi mesmo certeiro, ainda que o texto possa ter demorado a chegar aos mais novos. 

O final oferece uma chave óptima sobre as vantagens do olhar capaz de repassar a vida sob um ângulo positivo, não por embelezamentos artificiais, mas pela capacidade de guardar o que vale a pena! É um apelo ao dom do discernimento começando por encarar a vida como mistério. Não se confunde com um branqueamento do passado, mesmo que por motivos de higiene psicológica (tentação compreensível). Não é fantasia que algum tempo não passa, antes sustenta a trama da nossa vida, graças à memória! Isto é notório nas pessoas mais velhas, mais desmemoriadas, mas ainda com acesso ao passado distante. É refrescante ouvir e ler memórias tão agradecidas ao passado. Sim, também somos feitos do património de vida acumulada, que a memória preserva como as flores mais importantes do jardim, regando esses segredos antigos com a água e os truques vitamínicos que encontrar (ou não) no nosso coração, ora revitalizantes, ora amargosos e sombrios; ora livres e respeitadores, ora julgadores e assertivos… 

De certo modo, viver é relativamente fácil. O desafio está em saber viver e saber recordar, segundo o sábio conselho: ficai com o que é bom

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

14 fevereiro 2023

Dos diálogos conjugais *

 Sabe, Jorge, o erro não é uma palavra com quatro letras apenas, como você o concebe. E não é, tão pouco, uma palavra  de utilização única, como se fosse um artigo descartável.  

Jorge olhou para a mulher e suspirou, porque o desalento e o amor podem surgir no mesmo fôlego, na mesma expiração de ar, na mesma manifestação física de um peito que sobre e desce ao ritmo do pulsar de um coração. Por isso o suspiro, feito papel de fantasia que embrulha amor e desalento.

Você acha que o erro é como o Everest para certas pessoas: sobe-se uma vez, está subido. Ou a ressaca para outras: tem-se uma vez, e não há vontade de repetir. Ou mesmo a pena capital: não há possibilidade de repetição. Mas o erro é uma constante, porque a melhoria é constante. Tem de haver aquele para que haja esta. 

Jorge fixou-lhe o semblante. Reconheceu que Carmo, a mulher, nunca fora bonita, mas era sensual, com uma sensualidade filha de gestos elegantes, de uma ligeira assimetria do nariz face à boca, de umas pernas discretas, de um cabelo forte, de um sorriso franco que lhe denunciava um fulgor que ele bem conhecia. Carmo não era bonita - era melhor. A beleza das mulheres estava sobrevalorizada, achava ele. Era um conceito datado, contemporâneo com a ideia de que os homens não sabiam tomar conta dos filhos, pelo que a paternidade se resumia à procriação e ao sustento. As mulheres queriam-se mães e queriam-se bonitas. A inteligência, a cultura, a rapidez de raciocínio, a ligação que se estabelece entre os vários saberes do mundo não eram, na altura, atributos femininos. Por isso, pensava Jorge, numa certa radicalidade de raciocínio a vaidade exclusivamente física era uma menorização da mulher. 

O Becket é que tinha razão, quando defendia a ideia de se tentar de novo, de falhar de novo, de falhar melhor. Você é um arrogante, talvez mesmo uma espécie de ingénuo, que é uma forma de arrogância da raça humana. Os erros não se evitam, repetem-se. A única coisa que podemos fazer é minorar-lhes o impacto.

Jorge olhou para trás, para a vida. Reviveu o desastre que a mulher tinha tido dois meses após terem casado, a ideia expressa pelo médico de que a sua sobrevivência tinha sido um verdadeiro milagre, a convicção da sogra, numa fé transbordante de exagero, de que tinha havido um milagre, os terços e as peregrinações e as novenas para agradecer o milagre. Milagre não era nada daquilo. Cada vez mais se convencia de que Deus, de certa forma, desconhecia o corpo das suas criaturas, só lhes conhecia a alma, porque a presença divina se revelava apenas ao nível do imaterial, não na cura dos ossos partidos ou na cicatrização das feridas pustulentas. 

Errar faz bem Jorge; reconhecer o erro faz ainda melhor; perdoar o erro é a cereja no topo do bolo. Gosto pouco dessa sua radicalidade pouco cristã.

Jorge viu-lhe a curva do nariz, a camisa ligeiramente decotada, as calças justas, uma madeixa de cabelo displicente. Imaginou-a sem o avental de cozinha com que estava agora; imaginou-a a despir-se lentamente, provocantemente, com uma sensualidade que eliminava o desejo de beleza. Olhou-lhe para as mãos, para os olhos amendoados com que fitava o coelho que, morto, cortado aos bocados e sujeito a uma marinada de três dias, aguardava o lume. E Jorge revelou-se prudentemente pessimista - Carmo não sabia cozinhar, nunca cozinhara um coelho. E o animal tinha sido morto por ele, com um tiro certeiro e indolor. Temeu o pior - temeu o fracasso culinário no qual o erro repetido, tão apregoado por Carmo, não tinha espaço. 

No fim da refeição olhou para ela e desejou-a; antes de a beijar teve tempo para lhe dizer: cale-se de uma vez por todas. Em culinária os erros não são admissíveis, porque são incorrigíveis - tudo o que se faça para emendar não é mais do que um retalho postiço num tecido de luxo. E dê-me um beijo, porque me enganei na ideia dos milagres. O coelho está fantástico, e você  é péssima cozinheira.

JdB

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* publicado originalmente a 12 de Junho de 2017

12 fevereiro 2023

VI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mt 5,17-37
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas;
não vim revogar, mas completar.
Em verdade vos digo:
Antes que passem o céu e a terra,
não passará da Lei a mais pequena letra
ou o mais pequeno sinal,
sem que tudo se cumpra.
Portanto, se alguém transgredir um só destes mandamentos,
por mais pequenos que sejam,
e ensinar assim aos homens,
será o menor no reino dos Céus.
Mas aquele que os praticar e ensinar
será grande no reino dos Céus.
Porque Eu vos digo:
Se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus,
não entrareis no reino dos Céus.
Ouvistes que foi dito aos antigos:
'Não matarás; quem matar será submetido a julgamento'.
Eu, porém, digo-vos:
Todo aquele que se irar contra o seu irmão
será submetido a julgamento.
Quem chamar imbecil a seu irmão
será submetido ao Sinédrio,
e quem lhe chamar louco
será submetido à geena de fogo.
Portanto, se fores apresentar a tua oferta sobre o altar
e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti,
deixa lá a tua oferta diante do altar,
vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão
e vem depois apresentar a tua oferta.
Reconcilia-te com o teu adversário,
enquanto vais com ele a caminho,
não seja caso que te entregue ao juiz,
o juiz ao guarda, e sejas metido na prisão.
Em verdade te digo:
Não sairás de lá, enquanto não pagares o último centavo.
Ouvistes que foi dito:
'Não cometerás adultério'.
Eu, porém, digo-vos:
Todo aquele que olhar para uma mulher desejando-a,
já cometeu adultério com ela no seu coração.
Se o teu olho é para ti ocasião de pecado,
arranca-o e lança-o para longe de ti,
pois é melhor perder-se um dos teus membros
do que todo o corpo ser lançado na geena.
E se a tua mão direita é para ti ocasião de pecado,
corta-a e lança-a para longe de ti,
porque é melhor que se perca um dos teus membros,
do que todo o corpo ser lançado na geena.
Também foi dito:
'Quem repudiar sua mulher dê-lhe certidão de repúdio'.
Eu, porém, digo-vos:
Todo aquele que repudiar sua mulher,
salvo em caso de união ilegal,
fá-la cometer adultério.
Ouvistes que foi dito aos antigos:
'Não faltarás ao que tiveres jurado,
mas cumprirás os teus juramentos para com o Senhor'.
Eu, porém, digo-vos que não jureis em caso algum:
nem pelo Céu, que é o trono de Deus;
nem pela terra, que é o escabelo dos seus pés;
nem por Jerusalém, que é a cidade do grande Rei.
Também não jures pela tua cabeça,
porque não podes fazer branco ou preto um só cabelo.
A vossa linguagem deve ser: 'Sim, sim; não, não'.
O que passa disto vem do Maligno».

09 fevereiro 2023

Poema e fotografia dos dias que correm

 


E A MORTE PERDERÁ O SEU DOMÍNIO


E a morte perderá o seu domínio.
Nus, os homens mortos irão confundir-se
com o homem no vento e na lua do poente;
quando, descarnados e limpos, desaparecerem os ossos
hão-de nos seus braços e pés brilhar as estrelas.
Mesmo que se tornem loucos permanecerá o espírito lúcido;
mesmo que sejam submersos pelo mar, eles hão-de ressurgir;
mesmo que os amantes se percam, continuará o amor;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Aqueles que há muito repousam sobre as ondas do mar
não morrerão com a chegada do vento;
ainda que, na roda da tortura, comecem
os tendões a ceder, jamais se partirão;
entre as suas mãos será destruída a fé
e, como unicórnios, virá atravessá-los o sofrimento;
embora sejam divididos eles manterão a sua unidade;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Não hão-de gritar mais as gaivotas aos seus ouvidos
nem as vagas romper tumultuosamente nas praias;
onde se abriu uma flor não poderá nenhuma flor
erguer a sua corola em direção à força das chuvas;
ainda que estejam mortas e loucas, hão-de descer
como pregos as suas cabeças pelas margaridas;
é no sol que irrompem até que o sol se extinga,
e a morte perderá o seu domínio.

Dylan Thomas
(27/10/1914 - 9/11/1953)
In "A Mão ao Assinar Este Papel"
(Tradução de Fernando Guimarães)

08 fevereiro 2023

Da família que se encurta

Para o A., no Céu de onde olha para nós. 

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Passavam cinco minutos das nove da manhã de ontem quando recebi a mensagem esperada: uma prima minha tinha morrido. Fui vê-la no sábado e não evidenciou sinal algum de que se tinha apercebido da minha presença. Talvez fruto da doença ou dos cuidados paliativos, estava já no mundo dela, de sossego e espera. Não sei se sentiu as minhas festas; não sei se ouviu a graça que dizíamos um ao outro sempre que falávamos ao telefone: olhe A., olhe agora, olhe a casa da... O facto de não ter evidenciado que sentia ou ouvia não quer dizer que não sentisse ou ouvisse. Talvez sim ou talvez não, é pouco importante.

Há pouco mais de dois anos, no decurso da venda de uma quinta de família, escrevi o parágrafo abaixo:

Por circunstâncias próprias do meu crescimento e da minha vida familiar / social, fui consolidando a ideia de que a família não era o sangue. Podíamos sentir-nos mais familiares de uma vizinha de quem sempre fomos próximos do que de um primo direito a quem nada nos ligava. Não obstante, fui sendo educado - por via de uma capilaridade, não de uma instrução - que a família era o sangue; ou que era muito o sangue. A idade, a experiência ou uma certa sorte, permitiu uma convicção: família é tudo. Ou seja, o não sangue, mas o sangue também. Por vezes o que nos define como família não é, nem a proximidade, nem a semelhança de idades, nem uma convivência próxima, mas uma certa ideia de património imaterial que nos é comum por via de um nome de família.  

Esta minha prima era da minha família em todos os aspectos: era do meu sangue e era do meu afecto. Tínhamos um nome em comum e tínhamos um património em comum: histórias, acima de tudo, porque os imóveis quase não existiam. Talvez a família se torne mais importante à medida que envelhecemos e realizamos que temos mais passado do que futuro. Conversar com ela - e com os irmãos, únicos primos direitos deste lado - era percorrer um território conhecido, familiar. Era, de certa forma, um regresso a casa. Saber que foi para o Céu é perceber, no meu pequenino egoísmo, que a minha casa afectiva está mais pequena, irremediavelmente mais pequena. Na última meia dúzia de anos foi-se esvaziando com uma rapidez injusta, porque levou gente a quem faltavam muitos anos para cumprir a estatística da esperança de vida. 

Tive um desgosto grande com a morte desta minha prima. Um desgosto que não se compara ao dos filhos, netos e irmãos mas, não obstante, um desgosto. Porque era minha amiga, porque era muito boa pessoa - e porque era da minha família do coração. E porque, apesar de tudo o que a vida nos ensina, ainda nos custa aceitar que nunca mais veremos alguém de quem gostamos muito. Perde-se uma fonte de informação, uma fonte de amizade, uma presença regular na mesa onde celebrávamos datas específicas. O que se ganha, porque também se ganha, ainda que dolorosamente? A certeza da efemeridade das coisas e das pessoas, a evidência de que aquilo que separa a vida da morte é um fio de cabelo; entre estar e deixar de estar há um pedaço de nada. 

Resta-nos lutar pelos que nos são mais próximos, para que permaneçam próximos e para que possamos usufruir do futuro desconhecido que temos até que vislumbremos a curva da estrada. Se estas mortes prematuras não nos derem discernimento, então tudo é vão.

JdB 

07 fevereiro 2023

Da surdez

Alfredo tinha 67 anos e uma melena loira rebelde. Era um homem bem constituído, fruto de uma genética favorável e de um cuidado militante com a alimentação e o desporto. Apesar da idade, via invulgarmente bem, pelo que não usava óculos; o cabelo, bem cortado, era ainda farto, e vestia-se de forma clássica mas moderna. Na importante arte da conversa era fluido, falando de temas variados com uma segurança que lhe advinha da curiosidade, não da sapiência. Se sabia, partilhava; se não sabia, perguntava. Tinha uma noção muito certa da duração das histórias: uma graça conta-se em três pinceladas, porque o excesso de pormenor não acrescenta valor, muito pelo contrário. Era uma boa companhia, aderindo a programas díspares sem qualquer preconceito: ia se o divertia ou se lhe espicaçava o interesse, independentemente de ser num palácio bem conservado ou numa agremiação desportiva com uma certa decadência.

Foi numa festa de cariz popular que se cruzou com a Paula. Encostado a um pilar com um copo de cerveja na mão, observava as pessoas a dançar, naquela espécie de exorcismo que parece caracterizar a dança de hoje em dia. Alfredo tinha da dança uma visão diferente: era, acima de tudo, um ritual de acasalamento ou uma manifestação de afecto, embora percebesse aquela agitação frenética de pessoas que querem expulsar demónios que assumem a figura de stress do trânsito, de um chefe intolerável, de um ordenado que não chega ao fim do mês ou de uma conjugalidade que já conheceu melhores dias. As pessoas dançavam - mas já não dançavam com ninguém.

Paula aproximou-se e disse-lhe uma graça: se pode usufruir da agitação dos Duran Duran, porque prefere o imobilismo de uma coluna? Ele sorriu e atirou-se com destreza modesta à pista. Nos minutos seguintes conversaram (alto, para vencer o som ambiente) e dançaram, falaram de trivialidades e dos sítios que tinham sido locais um do outro numa juventude mais distante. Embora Paula e Alfredo não se conhecessem, identificavam os sítios, os rituais, as expressões. E isso levava-os a rir e, pelo menos do lado de Alfredo, a perspectivar uma noite interessante que não sabia onde podia terminar. Alfredo sentia-se novo, interessante e interessado, disponível para uma aventura, por mais inocente que fosse. Não precisava de óculos para ver as feições interessantes de Paula a agitar-se ao som de uma música mais frenética, e porventura mais ruidosa do que ele gostaria. Em bom rigor, tudo em Alfredo estava bem conservado - apenas a audição o traía. Talvez traição não fosse a palavra certa, porque a surdez chegava com a idade, não à socapa.

Paula aproximou-se e disse-lhe: gostaria de beber um copo em minha casa no fim da festa? Alfredo tinha 68 anos e uma melena loira rebelde. Apesar dos olhos de águia tinha uns ouvidos de mouco e não compreendeu a pergunta, pelo que respondeu: não percebi...  Para surpresa dele viu Paula corar brevemente e sentiu o sorriso dela esmorecer de timidez. Não percebi... Paula disfarçou, agitou o corpo com gosto e, chegando-se a ele numa distância toda cheia de pudor e vergonha, ripostou: perguntei se gostava dos Roxy Music...

JdB  

05 fevereiro 2023

V Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 5, 13-16

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Vós sois o sal da terra.
Mas se ele perder a força, com que há-de salgar-se?
Não serve para nada,
senão para ser lançado fora e pisado pelos homens.
Vós sois a luz do mundo.
Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte;
nem se acende uma lâmpada para a colocar debaixo do alqueire,
mas sobre o candelabro,
onde brilha para todos os que estão em casa.
Assim deve brilhar a vossa luz diante dos homens,
para que, vendo as vossas boas obras,
glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus».

02 fevereiro 2023

Textos dos dias que correm

 OS HOMENS DIVIDEM-SE NA PRÁTICA EM TRÊS CATEGORIAS...

Os homens dividem-se, na vida prática, em três categorias — os que nasceram para mandar, os que nasceram para obedecer, e os que não nasceram nem para uma coisa nem para outra. Estes últimos julgam sempre que nasceram para mandar; julgam-no mesmo mais frequentemente que os que efectivamente nasceram para o mando.

O característico principal do homem que nasceu para mandar é que sabe mandar em si mesmo. O característico distintivo do homem que nasceu para obedecer é que sabe mandar só nos outros, sabendo obedecer também. O homem que não nasceu nem para uma coisa nem para outra distingue-se por saber mandar nos outros mas não saber obedecer.

O homem que nasceu para mandar é o homem que impõe deveres a si mesmo. O homem que nasceu para obedecer é incapaz de se impor deveres, mas é capaz de executar os deveres que lhe são impostos (seja por superiores, seja por fórmulas sociais), e de transmitir aos outros a sua obediência; manda, não porque mande, mas porque é um transmissor de obediência. O homem que não nasceu para mandar nem para obedecer sabe só mandar, mas, como nem manda por índole nem por transmissão de obediência, só é obedecido por qualquer circunstância externa — O cargo que exerce, a posição social que ocupa, a fortuna que tem...

Chamamos para estas singelas considerações psicológicas a atenção dos leitores. Devidamente compreendidas, elas elucidar-lhes-ão muitas coisas, e muita gente...

Fernando Pessoa
(1888 - 1935)

In "Revista de Comércio e Contabilidade nº4" (Lisboa, 25 de Abril de 1926)

01 fevereiro 2023

Vai um gin do Peter’s ?

 MONSTROS OU HERÓIS - O QUE TRANSFORMA CIDADÃOS COMUNS? 

Com a autoridade de ser judeu e de ter sido o Procurador Chefe no Tribunal de Nuremberga, onde altos responsáveis nazis foram julgados, Benjamin Ferencz não hesitou em identificar o fenómeno que, a seu ver, mais transfigura os seres humanos, podendo levá-los às maiores bestialidades: a guerra. Naturalmente, que um período especialmente ilustrativo da horrenda desfiguração humana foi a Segunda Guerra Mundial. «Law, not war» era uma das recomendações deste advogado-escritor-pensador lúcido e bondoso, que teve a coragem de não diabolizar nenhum povo nem nenhuma geração, percebendo quanto a maldade e a bondade são opções ao alcance de cada ser humano. Daí a abordagem invulgarmente isenta e discernida com que reflecte sobre as causas do Holocausto. Entre os muitos testemunhos deixados (https://benferencz.org/), segue o da entrevista dada à CBS, aos 97 anos de idade: 

«HOW COULD ORDINARY MEN BE CAPABLE OF SUCH EVIL? 
THE LAST NAZI PROSECUTOR HAS THE ANSWER

In an interview with the last living Nuremberg prosecutor, 97-year-old Ben Ferencz (BF), Sixty Minutes’ Leslie Stahl (LS) asked him a question that gets to the heart of what is so unfathomable about the Holocaust. Ferencz was the chief prosecutor for the U.S. Army at the Einsatzgruppen trial, one of the 12 war crimes trials held in Nuremberg, Germany, after the end of World War II. He helped prove the guilt of a group of German SS officers accused of participating in mobile death squads in which over a million men, women and children were shot dead in their own towns and villages across Eastern Europe.

LS - How could ordinary people commit such extraordinary evil? Did you meet a lot of people who perpetrated war crimes who would otherwise in your opinion have been just a normal, upstanding citizen?
BF - Of course, is my answer. These men would never have been murderers had it not been for the war. These were people who could quote Goethe, who loved Wagner, who were polite (even these men who had committed these horrible atrocities – who had shot down more than a million innocent people – were normal, ordinary men)  

LS - What turns a man into a savage beast like that?
BF - He’s not a savage. He’s an intelligent, patriotic human being. 

LS - He’s a savage when he does the murder though. 
BF - No. He’s a patriotic human being acting in the interest of his country, in his mind. 

LS - You don’t think they turn into savages even for the act? 
BF - Do you think the man who dropped the nuclear bomb on Hiroshima was a savage? Now I will tell you something very profound, which I have learned after many years. War makes murderers out of otherwise decent people. All wars, and all decent people.» 

Ferencz em 2017, fotografado por Robin Utrech, da AFP.

Exemplos de bestialidades na Guerra de 1939-45 são incontáveis. Basta lembrar as atrocidades cometidas por muitos (quase todos os) nazis e combatentes japoneses, mas igualmente por alguns aliados, quando deixaram um rasto de barbárie escusada. Foi o caso do avanço do Exército Vermelho sobre Berlim, saqueando, violando e matando civis indefesos e inocentes, no seu percurso até ao coração do Reich.

Ferencz não disse, mas a guerra também produz o oposto, quando instiga bravura e heroísmo em graus épicos. Poderão ser casos mais raros e com certeza mais discretos, quase sempre a fluir no anonimato. Mas nem por isso merecem menos destaque do que a perversão à solta. Foi o caso de uma família polaca pobre, do povoado de Markowa – os Ulm, com 7 filhos (o mais novo ainda na barriga da mãe) – assassinada pelas SS, em Março de 1944, por se ter atrevido a dar guarida a uma família judia, apesar de estar ciente do risco que corria e das dificuldades financeiras que tinham. A generosidade dos Ulm, até ao martírio, foi reconhecida e homenageada pelo Vaticano como acto heróico de autêntica santidade. Por isso, numa decisão histórica, toda a família, incluindo o bebé por nascer (inédito!), foi beatificada. A nota publicada pelo Dicastério para a Causa dos Santos, em Dezembro de 2022, indica o motivo (na tradução disponível, em inglês): «Venerable Servants of God Jozef and Wiktoria Ulm and their seven children († March 24, 1944). A married lay couple with seven children, murdered out of hatred of their faith on March 24, 1944, who, although aware of the risks and financial difficulties, hid a Jewish family in their house for a year and a half. When discovered, they were all murdered, including the child in Victoria’s womb.» 

Quatro das crianças Ulm.

Os pais Jozef e Wiktoria e os seus 7 filhos: Stanisława de 7 anos, Barbara de 6, Władysław de 5, Franciszek de 4, Antoni de 2, Maria de 1 e o bebé ainda na barriga da mãe grávida de 8 meses.

Continuamos a acompanhar, em directo, uma guerra selvática em solo europeu, causada por uma invasão ilegal, injusta e incrivelmente violenta, que permanece indiferente à mortandade do povo ucraniano, mas também da juventude russa, para além da devastação material e do deslocamento forçado de milhões de ucranianos. Quando este pesadelo terminar, haverá mais distanciamento para se analisarem as atrocidades cometidas, a par dos gestos heróicos que coabitaram com a maldade mais grotesca. 

Possa a guerra na e contra a Ucrânia – felizmente no foco dos media – servir de lembrete ao horror hoje perpetrado noutras geografias mais esquecidas e remotas, como na Síria, na Etiópia, em Cabo Delgado no Norte de Moçambique, na Nigéria, etc. No fundo, dói que continue a ser ignorado o alerta lapidar e sábio de Ferencz sobre a distorção humana (talvez para a maioria) que a guerra favorece.  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

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