30 abril 2021

Das estranhas desconformidades

Nota prévia: algum do raciocínio subjacente a este post deriva de uma conversa havida sobre o tema, pelo que nem todo o raciocínio é meu.

***

No final dos anos 60, António dos Santos (1919 - 1993) grava um fado (talvez balada...) intitulado Partir é morrer um pouco, com música sua e letra de Augusto Mascarenhas Barreto.    

Partir é morrer um pouco

Adeus, parceiros das farras
Dos copos e das noitadas
Adeus sombras da cidade
Adeus langor das guitarras
Canto de esperanças frustradas
Alvorada de saudade

Meu coração como louco
Quer desgarrar-me do peito
Transforma em soluço a voz
Partir é morrer um pouco
A alma de certo jeito
A expirar dentro de nós

Voam mágoas em pedaços
Como aves que se não cansam
Ilusões, esparsas no ar
Partir é estender os braços
Aos sonhos que não se alcançam
Cujo destino é ficar

Deixo a minh'alma no cais
De longe, canso sinais
Feitos de pranto a correr
Quem morre, não sofre mais
Mas quem parte é dor demais
É bem pior que morrer

Embora para algumas pessoas ouvir António dos Santos seja um exercício penoso, é vital ouvi-lo para se perceber do que falo. 


Em 2021, António Zambujo integra no seu último disco (Voz e Violão) um fado intitulado Adeus parceiros das farras, com música de António dos Santos e versos de Augusto Mascarenhas Barreto. Apesar da dupla António dos Santos / Mascarenhas Barreto ser responsável por outras composições (Fado é Canto Peregrino ou Gaivotas em Terra, por exemplo) falamos do fado Partir é morrer um pouco, cujo título Zambujo alterou, substituindo-o pelo primeiro verso  


Dizer que as interpretações são diferentes está no domínio do lugar-comum, porque os cantores são diferentes e Zambujo não é imitador. Em primeiro lugar, porquê substituir Partir é morrer um pouco por Adeus parceiros das farras? Terá Zambujo decidido gravar esta música, como me aventaram por graça, após cinco dias de farra com amigos? E será que António dos Santos já pensava na morte que, afinal, só chegaria 25 anos depois?

Conheço muito bem a versão original do fado, pois gosto muito de António dos Santos. Na verdade, encontro-lhe uma gravitas (no sentido original do termo, que era peso) que aprecio, apesar da toada repetitiva dos seus fados. Porém, ao ouvir a versão original é isso que fica: uma voz grave, acompanhada pelo ritmo grave da viola, a cantar um poema grave. A versão de Zambujo é ligeira, porque a própria voz do cantor se proporciona a isso - não há gravitas, talvez haja, numa ou noutra música dele, a nostalgia das grandes paisagens.

Há, na versão actual de Partir é morrer um pouco, uma certa desconformidade, apesar da interpretação ser irrepreensível do ponto de vista musical. Onde está, então, a desconformidade? Não sei, talvez esteja no timbre de voz, na diferença abissal, na ideia de que partir é morrer um pouco não é a mesma coisa que adeus parceiros das farras, apesar do poema ser o mesmo. 

JdB

29 abril 2021

Textos dos dias que correm

«A pandemia parece o apocalipse, mas não o esqueçamos, todo o apocalipse é uma revelação»

Temos de reconhecer que esta pandemia apanha as nossas sociedades impreparadas. E não falo simplesmente ou sobretudo do ponto de vista sanitário; falo do ponto de vista da nossa experiência, e daquilo que a nossa memória pode extrair em nosso socorro; falo da nossa visão do mundo e da existência, do que julgamos distante ou longínquo e do que está efetivamente perto; do que temos por estritamente individual e do que é coletivo; do que consideramos que nos protege e do que nos expõe; do que temos, ou tínhamos, por adquirido ou como completamente improvável; da consciência da nossa real força e da nossa vulnerabilidade.

Não é fácil, repentinamente, constatar que sabemos de nós próprios e da vida muito menos do que pensávamos. Não é fácil despertar dentro de um mundo desconhecido, como o pobre caixeiro-viajante naquela novela de Franz Kafka.

Há uns dias, um escritor italiano recordava que a nossa geração tem sido uma juventude dourada na história europeia. Todas as coisas más, que, na verdade, nunca deixaram de acontecer, aconteciam, porém, lá longe, e aos outros. Era tragédias que assistíamos pela televisão e em diferido. E nem nos dávamos conta de que a perceção que construíamos das nossas sociedades - que no fundo correspondem à de uma humanidade co mais saúde, com maior esperança de vida, com mais segurança e proteção, melhor nutrida e vestida – assenta num contexto histórico que não é inabalável, ou, pelo menos, não é tão inabalável como nós pensávamos.

Porém, e pode parecer paradoxal, este tempo presente, este tempo de crise, com as dificuldades que todos conhecemos, representa também uma oportunidade para nos reencontrarmos.

A experiência de confinamento, por exemplo, tem-nos ajudado a compreender talvez melhor o que significa ser, e ser de uma forma autêntica, radical, uma comunidade. Hoje, porventura, percebemos melhor que a nossa vida não depende apenas de nós e das nossas escolhas. Todos estamos nas mãos uns dos outros. Todos experimentamos como é vital esta interdependência, esta trama feita de reconhecimento e de dom, de respeito e solidariedade, de autonomia, de serviço e de relação. Todos esperam uns dos outros, e estimulam-se positivamente a que façam a sua parte. Todos contam. Como dizia o papa Francisco, naquele 27 de março de 2020 que não esqueceremos, na praça vazia de S. Pedro, ninguém se salva sozinho. Estamos todos no mesmo barco. Todos contam.

Os cuidados individuais que somos chamados a exercitar não são a expressão de uma fobia ou apenas do interesse próprio, como se destinados a nos enclausurar na torre de marfim do nosso ego. São sim a forma de colaborar para uma construção maior, de colocar os outros no centro, de sacrificar-se por eles, de privilegiar nesta hora o bem comum.

Esta é, de facto, a hora em que podemos reaprender tantas coisas. Podemos, por exemplo, reaprender a estar nas nossas casas, nas nossas famílias, mas também a sentir que depende de nós o nosso prédio, o nosso sítio, o nosso bairro, a nossa cidade, a nossa região, o nosso país, dando substância efetiva a palavras tantas vezes esvaziadas dela, como proximidade, vizinhança, humanidade, povo e cidadania.

Podemos, por exemplo, reaprender a utilizar as redes sociais não só como forma de divertimento e evasão, mas como canais de presença, de solicitude e de escuta. Sem nos tocarmos, podemos reaprender o valor da presença, da saudação, o estímulo do cumprimento, a incrível força que recebemos de um simples sorriso ou de um olhar.

Sem que os nossos braços se estendam na direção uns dos outros podemo-nos abraçar afetuosamente, como já o fazíamos, ou de um modo mais intenso ainda, transmitindo nesses abraços reinventados o encorajamento, a hospitalidade, a certeza de que ninguém será deixado só. Sem nos conhecermos, poderemos finalmente reaprender a não votar ninguém à indiferença ou tratar os nossos semelhantes como desconhecidos. Nenhum ser humano nos é desconhecido, pois sabemos por nós próprios o que é um ser humano, o que é esse pulsar de medo e de desejo, essa mistura de escassez e prodigalidade, esse mapa que cruza o pó da terra com o pó das estrelas.

Quantas coisas somos chamados a reaprender nestes dias. Mas a vida também é isso: transformação, despojamento, viragem, mudança, que depois pode também estar na origem do nosso reflorescimento. A vida também é este apelo que nos pode chegar através das formas mais exigentes e dolorosas, para que a escutemos melhor, e a escutemos até ao fim como provavelmente não o havíamos feito ainda. Porque a vida é o seu parto interminável, que é também o nosso. E é este incessante modelar do inacabado que a nossa gestação, a par da gestação do mundo, significam.

A pandemia parece o apocalipse, mas não o esqueçamos, todo o apocalipse é uma revelação. Esse é, aliás, o sentido do termo grego “apokálypsis”, que devemos entender e racionalizar não como uma enigmática catástrofe ou um castigo, mas literalmente como um descobrir, um retirar do véu.

Se de uma forma tão brusca, tão violenta, como aquela que o presente histórico vive, o véu que ocultava a nossa visão foi retirado, o que é que nós agora vemos? Penso que ficam a descoberto três coisas.

A primeira é aquela expressa pelos cientistas, que nos recordam que o número das epidemias cresceu e crescerá, porque os nossos modelos de desenvolvimento não têm em conta o equilíbrio dos ecossistemas nem o respeito pela casa comum. Temos atuado no mundo como se estivéssemos sozinhos no planeta, e esquecemo-nos que partilhamos com as outras criaturas ambientes, potencialidades, e também uma palavra urgente para o século XXI aprofundar, conexão.

Em segundo lugar, os nossos estilos de vida no contexto deste mundo globalizado precisam de conversão. Construímos sociedades movidas pelo dogma do utilitarismo, que operam sobretudo como mercados massificados e exibem um desinvestimento dramático no humano. A corrida que nos impomos é produzir mais para consumir mais, e com isto desaprendemos o essencial da vida.

Esta pandemia ajuda-nos a compreender que precisamos de uma nova sabedoria, de modelos mais integrativos, com visões capazes de dialogar com a inteireza da pessoa humana nas usas diversas dimensões. Nestes longos meses, por exemplo, o heroico empenho dos profissionais de saúde, o exemplo do seu sentido de responsabilidade, dedicação e sacrifício inspiram o arranque de um tempo novo.

Embora não possamos esquecer aquilo que o romancista Albert Camus escreveu no seu romance “A peste”: o bacilo da peste pode chegar e ir embora sem que o coração do homem se modifique. E esse seria o verdadeiro desperdício, se nem uma pandemia nos ajudasse a mudar individualmente – porque as grandes mudanças são, antes de tudo, mudanças pessoais –, mas também coletivamente a nossa visão, o nosso coração.

A terceira coisa é que não nos chega agir por medo. Este não pode ser apenas o triunfo do medo, o triunfo da incerteza, do terror do que pode acontecer. Este é o tempo para semear, este é o tempo para relançar a nossa aliança com a vida. E por isso precisamos todos de nos unir e fortalecer para desenvolver apostas de confiança na vida, neste dom incalculável que a vida significa.

Aqui é preciso recordar que no meio da emergência que vivemos não podemos esquecer o testemunho humano altíssimo que nos está a ser dado por todos os cuidadores. Estes são os heróis desta história coletiva. E são milhões que de forma anónima, e com um extraordinário sentido de abnegação, continuaram a manter abertos os serviços e as fábricas, a continuar a produção alimentar e os bens indispensáveis, a vigiar pela segurança, pela saúde material e espiritual, e, claro, nos hospitais a combater por todos nós na primeira linha.

E são inúmeras as histórias, aparentemente minúsculas, mas verdadeiramente gigantes, que nestes meses tão difíceis nos estiveram a ser contadas.

Uma primeira história exemplar, que foi um ícone nas primeiras semanas da pandemia, foi a de uma imagem, contada sem palavras, e que mostra os bastidores de um hospital italiano onde primeiramente se sentiu o efeito devastador da pandemia. A fotografia era uma enfermeira adormecida com a cabeça em cima de um teclado do computador. Tem a máscara colocada no rosto, os braços caídos ao longo do corpo sem nenhum apoio. É uma imagem comovedora no seu desamparo extremo porque se percebe tudo. Há quantas horas aquela mulher não dormia? Que dimensão tem de ter o cansaço, que peso tem de atingir para fazer tombar assim um corpo?

Aquela comovente imagem mostra a atitude ética, e para lá disso, de amor que os profissionais de saúde nestes meses têm testemunhado, e que sem dúvida constitui uma grande reserva de humanidade para as nossas sociedades e um exemplo para todos os cidadãos.

Há já quem diga que a geração que está a viver o turbilhão desta pandemia olhará inevitavelmente para a vide de outra maneira. Esperemos que sim. Esperemos que sim. Que todos passemos a olhar parta a vida de outra maneira. Mas que na equação que porventura espoletará esta mudança de mentalidade não entre só o medo – que nos faz em circunstâncias históricas como esta relativizar tanta coisa e estar disponível para fazer tantos sacrifícios; que nós saibamos considerar, conservar e contar muitas vezes todas as histórias de amor que estão a ser escritas, a começar por esta multidão de profissionais e voluntários que aproxima esta nossa experiência hodierna de crise daquilo que a nossa humanidade tem de melhor.


Card. José Tolentino Mendonça
27.4.2021
Fonte: Governo Regional da Madeira
Publicado aqui em 28.04.2021

28 abril 2021

Vai um gin do Peter’s ?

A MEMÓRIA DOS POVOS É PATRIMÓNIO VALIOSÍSSIMO 

Talvez seja arrojado tentar ler o passado recente com menos de um século de distância. Basta constatar que só uma só uma minoria (creio) revelou o devido distanciamento crítico, a lucidez e o arcaboiço cultural necessários para interpretar com argúcia os sinais demasiado próximos do tempo do observador. Vale a pena nomear, ao menos, os conhecidos do grande público, como: Vasco Pulido Valente, Eduardo Lourenço, José Augusto Gil, António Barreto, Rui Ramos, Jaime Nogueira Pinto, Jaime Gama, Pe.Manuel Antunes, SJ, arriscando omitir nomes que devessem constar nesta amostragem simbólica.  

Há também vozes menos condecoradas de mais gente com craveira e coragem, habitués de crónicas e de intervenções discernidas e, em geral bem informadas, como as de: Teresa de Sousa, João Pereira Coutinho, Alexandre Homem Cristo, João Vieira Pereira, Daniel Bessa, Helena Garrido, Luís Marques, Paulo Tunhas, João Miguel Tavares, Sebastião Bugalho, José Miguel Júdice, José Manuel Fernandes, Rodrigo Moita de Deus, em vários temas também a Raquel Varela e ainda outros. É um mero elenco possível para confirmar que há razões para não desesperarmos da inépcia e do facciosismo de inúmeros comentadores badalados. 

De certo modo, foram as novas plataformas digitais que melhor começaram e continuam a dar voz às perspectivas menos alinhadas com o politicamente correcto, a que a maioria se vergou para fazer carreira. 
Um dos temas de imediato capturado pela narrativa reducionista, eivada de carga ideológica marxista-trotskista do tempo do PREC, foi a África portuguesa e a complexidade de um passado turbulento, agitado pela Guerra Colonial e pela descolonização. Não por acaso, a memória sobre esses dois fenómenos ficou logo refém do discurso da extrema esquerda, após o vazio de poder que se seguiu à reviravolta política iniciada no dia 25 de Abril de 1974. 

A prazo, foram os povos de África os mais penalizados pelas manobras torpes, que aproveitaram as fraquezas do período pós-revolucionário, atirando-os para o domínio do totalitarismo soviético, enquanto clamavam por democracia e liberdade. Curiosamente (ou só mais do mesmo), nada dessas maquinações foram assumidas, nem contadas com isenção ou o menor respeito pelos factos. À pala do mérito inquestionável – a meu ver – da transição para a democracia, efabulou-se, escondeu-se, mentiu-se para omitir os atropelos à liberdade perpetrados durante o PREC mas, acima de tudo, durante a saída caótica de África. Centenas de milhares foram abandonados às hordas assassinas de revolucionários fabricados à pressão, basicamente sedentos de sangue e de saque. Os que puderam fugir, criando a célebre onda de “retornados”, viram-se injustamente expropriados dos haveres de uma vida de trabalho. Quantos dos sobreviventes escaparam, a custo, às catanas de uma turbamulta selvática, com pouco mais critério do que a cor da pele. Por vezes, nem isso, matando a eito.

Omitiu-se e mentiu-se para ignorar o número avultado dessas vítimas maiores das novas forças antidemocráticas, que avançaram à medida que o exército português abandonava posições na África austral, perdendo-se o único garante de alguma ordem pública. 

Claro que não se pretende negar políticas iníquas também praticadas pelas autoridades lusas naquelas latitudes, sobretudo no século XX, após as repartições desenhadas pelas potências europeias no Congresso de Berlim (1884-85), que acabaram por minar as pretensões portuguesas plasmadas no célebre mapa cor-de-rosa, para unir Angola com Moçambique. Só que nem tudo foram erros, pelo que será igualmente válido lembrar estratégias arrojadas que Portugal adoptou nas suas potências africanas, algumas reveladoras de um humanismo bem à frente do seu tempo, com nativos a governar ipso facto, mulheres a pontificarem sobre domínios assombrosos, gentes de outras etnias não-caucasianas como Pares do Reino e merecedores de títulos nobiliárquicos. 

Uma série lançada no final de 2020 e intitulada «QUEM MANDAVA NA ÁFRICA PORTUGUESA» revisita os vestígios da passagem portuguesa por lugares sub-saarianos. Entrando no olho do furação, a série desmonta vários dos preconceitos mais propalados por uma certa visão simplista da história, que descarta contributos interessantes e originais implementados por Portugal no Hemisfério Sul. Enfrenta, assim, um passado diabolizado por muitos dos que promoveram ou, pelo menos, cederam a uma descolonização intencionalmente precipitada e atabalhoada. Em jeito de preâmbulo ao primeiro episódio, explica-se: «Querem convencer-nos de que, na relação entre Portugal e África, a oposição se fazia entre europeus dominadores e locais submetidos. Mas não é verdade. Ao longo dos séculos, Portugal implantou-se no continente africano através de elites locais que foram sendo os principais, e frequentemente os únicos, agentes de aculturação portuguesa. No primeiro episódio de Nova História, a NP faz justiça aos africanos que construíram a Portugalidade africana.»
 


Penso que fazer justiça à história honra a memória de quem esteve por bem na Revolução dos Cravos, desejoso de proporcionar uma auto-determinação genuína aos povos africanos e de aproximar Portugal do pelotão de países mais desenvolvidos e livres do mundo ocidental, como defendia Francisco Sá Carneiro e tantos outros de diferentes quadrantes políticos, mas de convicções igualmente democráticas. 

A propósito do 25 de Abril, é deliciosa a história decorrida entre Sophia de Mello Breyner Anderson e a sua amiga Maria Helena Vieira da Silva, a quem a escritora encomendou logo um cartaz sobre aquele dia,  dias depois do golpe de Estado. A mais espantada com os traços impressos na tela era a pintora, que explicou a Sophia ter feito um segundo desenho. Só que também esse desaguara na mesma imagética enigmática, pejada de signos conventuais! Foi a poetisa quem desvendou o mistério: como boa observadora das formas, a pintora inspirara-se na paisagem urbana mais fotografada daquele dia – a acompanhar a subida das chaimites pela calçada do Carmo acima até desembocarem no Largo homónimo, percorrendo um trajecto pontilhado de capelas, Igrejas e, por último, as linhas marcantes das ruínas do Convento do Carmo. Riram-se ambas, concordando com a interpretação cristalina de Sophia, que adorara os dois cartazes e resolvera trazer  o par para Lisboa. 


Título A poesia está na rua, com 70 x 50 cm, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Título 25 Abril 1974, com 73 x 44 cm, também editado pela Fundação Calouste Gulbenkian 

As memórias de Vieira da Silva sobre esse episódio ditam assim: «Aqui há dois anos aconteceu-me uma história curiosa. Uma das minhas amigas, Sophia Andresen (…) pediu-me que fizesse um cartaz para festejar o 25 de Abril, ‘Faz o que te apetecer’ — disse-me ela — ‘a multidão, a rua, o que quiseres, mas é urgente.’  Reflecti, e pus mãos à obra, deixando-me guiar pelo que naturalmente me ia vindo. Quando acabei, olhei para o que tinha feito e fiquei muito inquieta: parecia um vitral, via-se uma igreja e umas ruínas. ‘Neste momento lá em Portugal’ — pensei eu — ‘a política tem prioridade, vão dizer que fiz uma pintura religiosa. Não pode ser, tenho que projectar outra coisa’ e comecei a traçar uma rua antiga de Lisboa com uma multidão e cravos vermelhos. Quando a minha amiga voltou, escolheu o primeiro desenho (acabou por levar ambos). Perguntei-lhe: ‘Não irão dizer que é uma beatice?’ — ‘Não — disse ela —, ‘foi ali mesmo que tudo se passou.’ Lembrei-me então de que ao ler as notícias de Portugal sempre imaginava as manifestações descritas diante de uma igreja que eu conhecia muito bem e da qual gostava, mas que esquecera por completo enquanto trabalhava. E, no entanto, tenho boa memória. O segundo cartaz era uma rua muito próxima dessa igreja, mas não fora ela o centro de tudo o que se passara e sim a tal ruína gótica, o Convento do Carmo. Como tudo isto é misterioso, não é verdade?” 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

26 abril 2021

Duas Últimas

Continuamos em 1972. O disk jockey (talvez naquela altura fôssemos todos mais ignorantes e nos referíssemos a essa pessoa como "aquele que põe os discos)  levanta o braço da agulha do gira-discos (pick-up, para quem já sabia inglês) e retira o disco de vinil. Acabáramos de ouvir o Sylvia's mother,  e os casais de jovens adolescentes largavam-se vagarosamente, eles agradecendo a elas, guardando informações singelas para partilhar com os amigos: deixa apertar ou põe travões, ou talvez nada, porque não se comenta como dança aquela de quem se gosta. 

Uma festa adolescente deste ano (ou talvez de 1973, que os discos demoravam a chegar) é um intercalar de músicas da época, não o palco de uma estratégia para manter a pista repleta de corpos em maior ou menor agitação. Põe-se este e depois aquele; talvez se ponha uma série destes, para depois se por uma série daqueles. Por isso o disk jockey cede ao pedido de alguém, ou cede apenas ao seu desejo de dançar também. E põe Mother and Child Reunion

Postei esta mesma música há 10 anos. Não vale a pena ser criativo, pelo que copio parte do que escrevi naquela altura: 

Procurei vagamente os motivos para o título, achando que poderia relacionar-se com o encontro de uma criança com a sua mãe. No primeiro comentário que vislumbrei há um petit rien de júbilo: uma música de paz, a celebrar o regresso dos soldados do Vietname. Não desisti da busca de uma comoçãozita nostálgica que contrabalançasse o ritmo alegre do reggae. Eis que me confronto com o espanto: a música relaciona-se com a morte do cão do artista, que foi buscar (o artista, não o cão) o título Mother and Child Reunion ao nome de uma receita chinesa feita com galinha e ovos... Há uma altura em que devemos interromper a demanda, sob risco de desmoronamento emocional das nossas entranhas.

A letra, para quem a quiser conhecer melhor (e não como a cantávamos na altura) segue abaixo do youtube)

JdB



Mother and Child Reunion
No, I would not give you false hope
On this strange and mournful day
But the mother and child reunion
Is only a motion away
Oh, little darling of mine
I can't for the life of me
Remember a sadder day
I know they say let it be
But it just don't work out that way
And the course of a lifetime runs
Over and over again
No, I would not give you false hope (no)
On this strange and mournful day
But the mother and child reunion
Is only a motion away
Oh, little darling of mine
I just can't believe it's so
Though it seems strange to say
I never been laid so low
In such a mysterious way
And the course of a lifetime runs
Over and over again
But I would not give you false hope (no)
On this strange and mournful day
When the mother and child reunion
Is only a motion away
Oh, oh, the mother and child reunion
Is only a motion away
Oh, the mother and child reunion
Is only a moment away (oh oh)
Oh, the mother and child reunion
Is only a motion away
Oh (oh), the mother and child reunion
Is only a moment away
Oh, oh, the mother and child reunion
Oh, is only a motion away
Oh, the mother and child reunion
Is only a moment away (way, way, way)

25 abril 2021

IV Domingo da Páscoa

EVANGELHO - Jo 10,11-18

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo, disse Jesus.
«Eu sou o Bom Pastor.
O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas.
O mercenário, como não é pastor, nem são suas as ovelhas,
logo que vê vir o lobo, deixa as ovelhas e foge,
enquanto o lobo as arrebata e dispersa.
O mercenário não se preocupa com as ovelhas.
Eu sou o Bom Pastor:
conheço as minhas ovelhas
e as minhas ovelhas conhecem-Me,
do mesmo modo que o Pai Me conhece e Eu conheço o Pai;
Eu dou a minha vida pelas minhas ovelhas.
Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil
e preciso de as reunir;
elas ouvirão a minha voz
e haverá um só rebanho e um só Pastor.
Por isso o Pai Me ama:
porque dou a minha vida, para poder retomá-la.
Ninguém Ma tira, sou Eu que a dou espontaneamente.

Tenho o poder de a dar e de a retomar:
foi este o mandamento que recebi de meu Pai». 

23 abril 2021

O Fado, canção de vencidos

As duas mães
1930 | G. Santos Monteiro
Ao encomendar-se o morto,
Ao fazer-se o batisado,
As duas mães se encontraram
Junto do templo sagrado.

Pela mãe acompanhado
Entra a capela um anjinho,
Tão lindo no caixãosinho
Descoberto e enfeitado.
E enquanto o padre anafado
Orava, frio, absorto,
Da pobre mãe sem cofôrto
P’las faces febris, candentes,
Caía o pranto em torrentes
Ao encomendar-se o morto.

Nisto, ao pé da capelinha,
Outro cortejo aparece,
Outra mãe que ao colo aquece,
Uma linda criancinha.
Vai levar, a inocentinha,
Da pia o banho sagrado.
Com que amor e cuidado,
Vendo esse botão de rosa,
A mãe sorrirá ditosa
Ao fazer-se o batisado…

Vai o morto a retirar
No descoberto caixão,
Entra ridente e brincão
O vivo p’ra batisar.
Daquele a cor faz chorar,
Deste os olhos se escancararam,
E quando ambos passaram,
Um saindo outro entrando,
No adro bom e nefando
As duas mães se encontraram.

Cheio de afecto e carinho
Trocam elas um olhar
E vê-se a feliz chorar
Ao olhar o caixãosinho.
Entretanto ao inocentinho
Sorri a mãe do finado.
Essas mães, coração dado,
Tão bem se compreenderam
Que o seu sentir inverteram
Junto do templo sagrado.
G. Santos Monteiro – «As duas mães», Guitarra de Portugal, 30 de abril de 1930, n.º 196, ano n.º 8, p. 4.
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22 abril 2021

Duas Últimas

Estou certo de que dancei Sylvia's Mother cantado pelo Dr. Hook. É uma música de 1972, e eu estava na fase de pedir para dançar, de dançar, e de agradecer a dança. Entre o pedir e o agradecer, um slow de quatro minutos com uma rapariga da minha idade, do meu grupo de amigos, com o cabelo a cheirar a Timotei, talvez, a ser mais ou menos comedida no aperto de dois corpos juvenis. Não havia nunca maldade, apenas um gosto (ou uma necessidade) de sentir um corpo próximo, quase imóvel, uma perspectiva de qualquer coisa ou de coisa nenhuma. Talvez fosse apenas uma música de que se gostava, numa altura em que dançar muito junto era uma emoção que não se consegue descrever à luz do vocabulário de hoje. 

Algumas músicas sei com quem dancei; esta não me lembro. Mas que dancei, estou certo que dancei. E Também cantei, porque cantávamos o que dançávamos, embora nem sempre percebêssemos o que cantávamos. A frase Sylvia's Mother, permanentemente repetida, está bem presente na minha memória, juntamente com a melodia.

Ler o poema - e coloco-o a seguir ao youtube - dá uma ideia precisa do que cantávamos: a mediação de uma mãe entre a sua filha e um pretendente. Nunca saberemos se a mãe de Sylvia a protegia ou se protegia a si própria; nunca saberemos se Sylvia foi feliz com o homem de Galveston, ou se preferia aquele que se quer despedir dela e de quem a mãe a afasta. Nunca saberemos isso, como nunca saberemos muitas coisas que se passaram no passado, porque foi assim e como teria sido se fosse diferente. 

Nota: como explicamos à gente de agora o que era um período de telefone, o que era por moedas numa máquina para podermos falar mais três minutos?

JdB

Sylvia's mother says Sylvia's busy
Too busy to come to the phone
Sylvia's mother says Sylvia's trying
To start a new life of her own
Sylvia's mother says Sylvia's happy
So why don't you leave her alone?
And the operator says forty cents more
For the next three minutes
Please, Mrs. Avery, I just gotta talk to her
I'll only keep her awhile
Please, Mrs. Avery, I just want to tell her goodbye
Sylvia's mother says Sylvia's packing
She's gonna be leaving today
Sylvia's mother says Sylvia's marrying
A fella down Galveston way
Sylvia's mother says please don't say nothing
To make her start crying and stay
And the operator says forty cents more
For the next three minutes
Please, Mrs. Avery, I just gotta talk to her
I'll only keep her awhile
Please, Mrs. Avery, I just want to tell her goodbye
Sylvia's mother says Sylvia's hurrying
She's catching the nine o'clock train
Sylvia's mother says take your umbrella
'Cause, Sylvie, it's starting to rain
And Sylvia's mother says thank you for calling
And, sir, won't you call back again?
And the operator says forty cents more
For the next three minutes
Please, Mrs. Avery, I just gotta talk to her
I'll only keep her a while
Please, Mrs. Avery, I just want to tell her goodbye
Tell her goodbye
Please, tell her goodbye

21 abril 2021

Textos dos dias que correm

O PROVINCIANISMO PORTUGUÊS

Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. O facto é triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.

O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela — em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz.

O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.

Se há característico que imediatamente distinga o provinciano, é a admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas. Recordo-me de que uma vez, nos tempos do « Orpheu», disse a Mário de Sá-Carneiro: «V. é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa V. é vítima da educação portuguesa. V. admira Paris, admira as grandes cidades. Se V. tivesse sido educado no estrangeiro, e sob o influxo de uma grande cultura europeia, como eu, não daria pelas grandes cidades. Estavam todas dentro de si».

O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. Diga-se incidentalmente: é esta uma das explicações do socialismo. Se alguma tendência têm os criadores de civilização, é a de não repararem bem na importância do que criam. O Infante D. Henrique, com ser o mais sistemático de todos os criadores de civilização, não viu contudo que prodígio estava criando — toda a civilização transoceânica moderna, embora com consequências abomináveis, como a existência dos Estados Unidos. Dante adorava Vergílio como um exemplar e uma estrela, nunca sonharia em comparar-se com ele; nada há, todavia, mais certo que o ser a «Divina Comédia» superior à «Eneida». O provinciano, porém, pasma do que não fez, precisamente porque o não fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo. Se assim não sentisse, não seria provinciano.

É na incapacidade de ironia que reside o traço mais fundo do provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redacções, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Exarnina com grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério.

A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment — o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele «desenvolvimento da largueza de consciência», em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser provinciano.

O exemplo mais flagrante do provincianismo português é Eça de Queirós. É o exemplo mais flagrante porque foi o escritor português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado. As suas tentativas de ironia aterram não só pelo grau de falência, senão também pela inconsciência dela. Neste capítulo, «A Relíquia», Paio Pires a falar francês, é um documento doloroso. As próprias páginas sobre Pacheco, quase civilizadas, são estragadas por vários lapsos verbais, quebradores da imperturbabilidade que a ironia exige, e arruinadas por inteiro na introdução do desgraçado episódio da viúva de Pacheco. Compare-se Eça de Queirós, não direi já com Swift, mas, por exemplo, com Anatole France. Ver-se-á a diferença entre um jornalista, embora brilhante, de província, e um verdadeiro, se bem que limitado, artista.

Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos.


Textos de Crítica e de Intervenção. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.  - 159.

1ª publ. in “Notícias Ilustrado”, série II, nº 9. Lisboa: Agosto. 1928.

19 abril 2021

Do protocolo

Foi seguramente por ser monárquico e anglófilo que assisti, com interesse, às cerimónias fúnebres do Príncipe Filipe de Inglaterra. A conjunção "e" é importante: não acompanharia com a mesma curiosidade se se tratasse de um Presidente da República inglês, não seguiria com o mesmo gosto se fosse um Príncipe consorte da Holanda. 

Em sentido lato, o protocolo é o grande inimigo do improviso, com tudo o que isso tem de bom e de mau. Porém, neste tipo de cerimónias - pode ser um jantar de gala, um casamento, uma cerimónia fúnebre, uma homenagem aos caídos nas várias guerras - o protocolo é o inimigo de uma certa barbárie; é a regra que ordena o caos, é a informação que dá segurança ao inexperiente, é a instrução que confina o saloio ou retrai o criativo. O protocolo define o que não pode ser universalmente intuído: o tempo das coisas, a posição relativa das pessoas, as precedências, os ritmos feitos de som e silêncio, de movimento e quietude. 

Ninguém bate os ingleses neste tipo de protocolo. Assistir a uma cerimónia desta envergadura - mesmo que com apenas 30 convidados - é perceber que nada é deixado ao acaso, que os tempos se cumprem, que cada um sabe o seu sítio e que ninguém diz a ninguém "com licença" para passar num corredor estreito. Há, em tudo, uma atenção impressionante aos mais ínfimos detalhes. Não falo da precisão de um relógio suíço ou do controlo de uma missão espacial: falo de uma organização que tem tanto de funcional como de estético. Nada se faz que não tenha um propósito, ou que não esteja suportado numa tradição que se quer manter, sob risco de perda de uma civilização assente (também) nos símbolos.

Poderá parecer anacrónico saber-se que o próprio Príncipe Filipe participou, ao longo dos últimos 18 anos, na preparação do seu próprio funeral. Estamos habituados a ouvir das pessoas, como eu próprio ouvi, que querem ser cremadas ou não, que querem música ou não, que querem flores ou não. O que ele decidiu é independente da sua condição de marido da rainha de Inglaterra: não encomendou a composição de um Requiem, não sugeriu grandes coros ou grandes desfiles. Limitou-se a decidir coisas que definissem quem ele era, quais as suas origens, a que dava ele importância, o que o constituía. Não surpreende ver-se, num local mais discreto mas, mesmo assim, parte integrante de tudo, um carro puxado por dois cavalos; em cima do banco da frente a sua manta, o seu par de luvas, a caixa de plástico onde guardava os torrões de açúcar com que mimava os cavalos.

Independentemente da minha condição de monárquico ou de anglófilo, ou de pessoa que encontra grandes virtudes no protocolo (mesmo que com uma dimensão caseira) sou um homem muito dado aos símbolos. Ver centenas de soldados de cabeça tombada para baixo, ver os estandartes apontados para o chão, ouvir as músicas escolhidas é, do ponto de vista estético (e emocional, que a estética é uma emoção) perceber uma lógica, um fio condutor que une tudo. Sábado fiquei com a convicção pequenina e vaidosa de que o meu apego ao simbolismo das coisas é uma qualidade. A minha vaidade será perdoada, espero eu.

JdB

 

18 abril 2021

III Domingo da Páscoa

EVANGELHO - Lc 24,35-48


Naquele tempo,
os discípulos de Emaús
contaram o que tinha acontecido no caminho
e como tinham reconhecido Jesus ao partir do pão. Enquanto diziam isto,
Jesus apresentou-Se no meio deles e disse-lhes: «A paz esteja convosco».
Espantados e cheios de medo, julgavam ver um espírito. Disse-lhes Jesus:
«Porque estais perturbados
e porque se levantam esses pensamentos nos vossos corações? Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo;
tocai-Me e vede: um espírito não tem carne nem ossos,
Como vedes que Eu tenho».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e os pés. E como eles, na sua alegria e admiração,
não queriam ainda acreditar, perguntou-lhes:
«Tendes aí alguma coisa para comer?» Deram-Lhe uma posta de peixe assado,
que Ele tomou e começou a comer diante deles. Depois disse-lhes:
«Foram estas as palavras que vos dirigi, quando ainda estava convosco:
'Tem de se cumprir tudo o que está escrito a meu respeito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos'».
Abriu-lhes então o entendimento
para compreenderem as Escrituras
e disse-lhes:
«Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia,
e que havia de ser pregado em seu nome
o arrependimento e o perdão dos pecados
a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sois as testemunhas de todas estas coisas».

16 abril 2021

15 abril 2021

Das rimas pobres

Frank Gelett Burgess (1866 – 1951)  natural de Boston, EUA, foi um artista, crítico de arte, poeta, autor e humorista, conhecido pelos seus versos non-sense, dos quais incluo dois abaixo

The Purple Cow 

I never saw a Purple Cow,
I never hope to see one;
But I can tell you, anyhow,
I'd rather see than be one.


Cinq Ans Apres 

Ah, yes! I wrote the "Purple Cow"-- 
I'm Sorry, now, I Wrote it!
But I can Tell you, Anyhow,
I'll Kill you if you Quote it

Imaginemo-nos incultos, sem qualquer conhecimento da língua inglesa, e que, de olhos fechados, atentássemos apenas na rima. O que ressalta destas quadras singelas? A repetição da última palavra dos segundo e terceiros versos: one / one e it / it. Dir-se-ia uma rima pobre. 

Imaginemo-nos agora sem qualquer conhecimento da língua portuguesa e que, de olhos fechados, atentássemos apenas na rima. No poema Fonte, de Pedro Homem de Mello, acontece o mesmo nas quatro quadras seguidas: a última palavra do primeiro e terceiro verso repetem-se. Já não se diria uma rima pobre.

Fonte

Meu amor diz-me o teu nome
— Nome que desaprendi...
Diz-me apenas o teu nome.
Nada mais quero de ti.
Diz-me apenas se em teus olhos
Minhas lágrimas não vi,
Se era noite nos teus olhos,
Só por que passei por ti!
Depois, calaram-se os versos
— Versos que desaprendi...
E nasceram outros versos
Que me afastaram de ti.
Meu amor, diz-me o teu nome.
Alumia o meu ouvido.
Diz-me apenas o teu nome,
Antes que eu rasgue estes versos,
Como quem rasga um vestido!


Atentemos, por último, no poema de Amália Rodrigues: quatro quintilhas, em que o primeiro e o quinto verso se repetem sempre. Não se dirá uma rima pobre.


Estranha Forma de Vida

Foi por vontade de Deus
Que eu vivo nesta ansiedade
Que todos os ais são meus
Que é toda minha a saudade
Foi por vontade de Deus

Que estranha forma de vida
Tem este meu coração
Vives de forma perdida
Quem lhe daria o condão?
Que estranha forma de vida

Coração independente
Coração que não comando
Vives perdido entre a gente
Teimosamente sangrando
Coração independente

Eu não te acompanho mais
Para deixa de bater
Se não sabes onde vais
Porque teimas em correr
Eu não te acompanho mais

Se não sabes onde vais
Para deixa de bater
Eu não te acompanho mais

Do ponto de vista puramente acústico, o que separa as quadras de Burgess, de Pedro Homem de Mello ou as quintilhas de Amália Rodrigues? Talvez uma coisa muito simples: a quantidade de quadras / quintilhas. Se Burgess se alongasse a falar na Purple Cow, repetindo sempre a última palavra dos segundo e quarto versos, talvez criasse um estilo. Assim, limitou-se a uma coisa sem sentido. Se o meu argumento estiver certo, ainda bem que Amália e Pedro Homem de Mello se atiraram a mais. E ainda bem que tudo isto é um disparate.

JdB   

14 abril 2021

Vai um gin do Peter’s ?

 NOVO DESIGN DE JÓIAS – A CORAGEM DE RESISTIR

Com o comércio local especialmente penalizado pelos sucessivos confinamentos, que tentam reduzir os contágios do coronavírus e assim reduzir a pressão sobre o nosso frágil sistema de saúde, muitas pequenas empresas foram forçadas a reinventar-se para não falir! As vendas online foram o primeiro passo e com ele vieram mais serviços, maior variedade de produtos e de designs, um novo marketing, etc. Talvez o maior salto tenha sido dado pelos sectores tradicionais mais dependentes dos clientes de boa idade, em geral, menos digitais. É, por exemplo, o caso da história feliz de inúmeras ourivesarias & joalheiros, que souberam reemergir, com galhardia, através de montras virtuais. Alguns viram-se recompensados com públicos mais novos e alargado a outras geografias, experimentando a facilidade de o digital galgar fronteiras. 

Em Dezembro de 2020, a bi-centenária Leitão & Irmãos acrescentou a uma loja online já em velocidade de cruzeiro, uma decoração mais jovial na sua loja do Chiado. Mantiveram os veludos e as vitrinas de iluminação indirecta, mas arriscaram no tom ao escolher um amarelo forte e festivo, que quadra bem com um chão agora revestido a calçada portuguesa. Assim tentam o ponto de equilíbrio entre um legado histórico como joalheiros da Casa Real e o aggionarmento necessário para a longevidade da marca. A primeira loja foi inaugurada no Porto, em pleno séc. XIX. Passados poucos anos, já no terceiro quartel de oitocentos, instalaram-se em Lisboa, perto da sua oficina do Bairro Alto, para ficarem mais próximos da corte. Com versatilidade e bom senso, já chegaram à sexta geração. 

Largo do Chiado, 16 (Chiado), entre a Vista Alegre e a Igreja do Loreto. TELEFONE 213257870

Algumas peças tradicionais persistem, como a colher de café ou a medalha de Nossa Senhora de Fátima do tempo da Guerra (a partir de 1942) ou os faqueiros e os castiçais clássicos. Mas, por exemplo, nos últimos anos, o design de taças e potes passou a misturar prata com porcelana de cores garridas, num efeito refrescante.



As colecções temáticas começaram a pulular como cogumelos e os padrões decorativos de outros sectores transitaram para a joalharia com naturalidade, evocando a azulejaria, a cerâmica, a escultura, a profusão de texturas dos materiais de construção, os têxteis, etc. A própria natureza também tem sido uma fonte de inspiração inesgotável para peças funcionais ou apenas decorativas. 

Caixas em prata – a fila de cima da série “frutos do mar” e a de baixo de “frutos do bosque”

Já tinha chegado a vez de as joias se transfigurarem e inclusive se estenderem a peças sem metais nobres, apostando em designs modernos, embora de linhas clássicas mais intemporais. Umas vezes adoptam leit-motiv temáticos, outras simplesmente estilizam a traça antiga, tendo por fio condutor a portugalidade.

Colecção Azulejo português

Da filigrana tradicional com os corações de Viana às linhas geométricas.

Botões de punho das colecções “Knot me” e da “Boa Esperança”.

Nos ateliers nascidos já neste século, a transição para o negócio online foi directa, pelo que a pandemia apenas intensificou a tendência. A novidade foi terem optado por estabelecer uma parceria alargada com a concorrência, num gesto pouco comum em Portugal. Em conjunto, lançaram uma série de estéticas bastante diversificadas. Chamaram-lhe «shaped by nature» para forjar brincos, anéis, colares e outros acessórios, que vão do estilo neo-barroco até às linhas mais depuradas:



Duas amigas de sectores diferentes – uma de ourivesaria e outra do sector alimentar – resolveram tornar-se complementares e lançar um pacote com uma jóia e doçaria inspiradas nos lenços que eram bordados para os namorados. Designaram-na de “Com Amor”:  

Há 7 peças diferentes e na caixa de chocolates, os corações têm cobertura de pistácio ou framboesa ou rosa. 

Merece um enorme aplauso a quantidade imensa de gente empreendedora e corajosa, que continua a lutar e a resistir às dificuldades incríveis que se lhe atravessaram no caminho, em vez de ‘atirar a toalha ao chão’. Eles têm-se esmerado a fazer a sua parte, pelo que o mínimo – de quem está do lado de cá da barricada – é noticiá-los, lembrá-los e, quem sabe, abrir-lhes mais públicos?...


Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

12 abril 2021

“Para quê poetas” *

Eis o título de um dos textos de Caminhos da floresta de Heidegger: “Para quê poetas”. Seriam necessários poetas mesmo se tudo ficasse reduzido ao que a ciência nos dá a conhecer, não perdera o mundo o seu encanto sempre que se apagasse a magia de nos maravilharmos com o que existe e acontece. Começamos a habitar um mundo desencantado sempre que compreendemos tudo através do conhecimento científico. Quando já não há lugar para o mistério, passamos a ser Senhores de todo o processo que crie realidade. Talvez até queiramos controlar tudo, ou quase tudo. Talvez até há quem deseje ser um Senhor Criador do real, como se pudesse tudo prever e construir por meio da tecnologia. Mas é aí que precisamos de poetas, para nos ajudarem a dar ao mundo que habitamos um novo encanto e sabor.

Foi a Carta Apostólica Candor lucis aeternae do Papa Francisco que me fez lembrar do texto de Heidegger. Para não deixar passar despercebido o 7.º centenário da morte de Dante Alighieri, o Santo Padre leva-nos a revisitar a figura deste poeta e o que ela significa para a Igreja, em particular, e para a humanidade, em geral. Citando o seu predecessor Paulo VI, Francisco afirma: “em Dante, todos os valores humanos (intelectuais, morais, afetivos, culturais, civis) são reconhecidos, exaltados; e é muito importante notar que este apreço e honra se verificam enquanto ele mergulha no divino, quando a contemplação teria podido anular os elementos terrenos”.

A celebração da efeméride não procura apenas homenagear a obra de Dante, mas sobretudo o Homem que ele foi. Pois o poeta não nos fala apenas nos enredos que escreveu. A sua vida é ela mesma um texto cuja trama narrativa não desencanta o mundo, nem fecha os seus protagonistas na contingência do sofrimento e do desencanto. “Dante descobre [diz o Papa] a vocação e a missão que lhe foram confiadas, de modo que, paradoxalmente, de homem aparentemente falido e desiludido, pecador e desanimado, transforma-se em profeta de esperança”.

Não se trata apenas de afirmar a Ressurreição no final do caminho, mas de a saborear no presente. Não se trata apenas de acreditar num futuro que poderá remotamente vir a acontecer. Trata-se, pois, de confiar que não é vão o “desejo humano de felicidade”; um desejo presente, atual. Por mais dura que seja a vida e por mais desencantado que o mundo possa parecer, o poeta deixa-se maravilhar no seu presente ansiando por uma “plenitude de vida” que nunca deixa de o habitar.

A missão do poeta é profética, não só porque revela toda a falta de autenticidade – criticando até mesmo “os crentes, tanto Pontífices como simples fiéis, que atraiçoam a adesão a Cristo e transformam a Igreja num instrumento em prol dos próprios interesses” –, mas também porque o seu poetar nos faz sentir como pessoas que não são de aqui de baixo. A este respeito, Francisco emprega o termo “transumanar”, no sentido de “ultrapassar o humano”, que São João Paulo II terá referido a propósito de Dante. “«Transumanar». Foi este o esforço supremo de Dante: fazer que o peso do humano não destruísse o divino que existe em nós, nem a grandeza do divino anulasse o valor do humano. Por esta razão, o Poeta leu justamente a própria vicissitude pessoal e a da inteira humanidade em chave teológica”.

O poeta não começa por acreditar em Deus. Nem olha em primeiro lugar para o futuro prometido lá do alto, para uma Ressurreição que há de acontecer num depois longínquo. Nada disso. Ele começa aí mesmo onde está. Acredita no desejo que agora o habita. Acredita no homem, por mais miserável que seja. Quanto mais sombrio for o horizonte que se lhe afigure, tanto mais ele se deixa alimentar pelo seu desejo interior. E é dessa forma que ele se revela capaz de se fascinar por tudo quanto exista, mesmo num mundo dilacerado pela dor e pela angústia. O poeta maravilha-se, simplesmente, no presente que experimenta. No fundo, ele começa por acreditar no homem para acabar por acreditar num Deus que habita o seu coração. Em vez de dirigir o olhar e o entendimento logo para Deus, o poeta começa por usufruir humildemente dos vestígios que o Criador nos deixa. Sente e saboreia assim a presença de Deus no mundo, um pouco como São Francisco de Assis faz no seu célebre Cântico das Criaturas. Em vez de esperar pela consumação final de todas as coisas, antecipa-se à comunhão dos santos, vivendo já em harmonia com tudo e todos.

Talvez por isso o papel das figuras femininas seja tão importante em Dante: Maria, a virgem mãe, “figura da caridade”; Beatriz, qual “símbolo da esperança”; e Santa Luzia, personificando “a fé”. Em todas estas figuras, o feminino é sinónimo de fecundidade e generatividade. Mais uma vez, em vez de nos apresentar o resultado final de uma humanidade acabada, o poeta faz-nos viver um processo que nos transforma por dentro. Pouco a pouco, ele ajuda-nos a ver o mundo doutra forma, não só com mais esperança, mas também com mais sabor. Porque pior do que a “morte de Deus” é deixar morrer o fulgor pela divindade. Sempre que esse fulgor, esse maravilhamento, nos habitar, poderemos saborear a beleza de todas as coisas presentes. E é por isso que precisamos de poetas.

Que eu queira, Senhor, receber-Vos com aquela pureza, humildade e devoção com que Vos recebeu a Vossa Santíssima Mãe; com o espírito e o fervor de todos os santos. Amén.

P. Andreas Lind, sj

Publicado no Ponto sj, site dos jesuítas em Portugal, em 11.04.21

11 abril 2021

II Domingo da Páscoa ou da Divina Misericórdia

 EVANGELHO - Jo 20,19-31

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».
Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo,
não estava com eles quando veio Jesus.
Disseram-lhe os outros discípulos:
«Vimos o Senhor».
Mas ele respondeu-lhes:
«Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos,
se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado,
não acreditarei».
Oito dias depois,
estavam os discípulos outra vez em casa,
e Tomé com eles.
Veio Jesus, estando as portas fechadas,
apresentou-Se no meio deles e disse:
«A paz esteja convosco».
Depois disse a Tomé:
«Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos;
aproxima a tua mão e mete-a no meu lado;
e não sejas incrédulo, mas crente».
Tomé respondeu-Lhe:
«Meu Senhor e meu Deus!»
Disse-lhe Jesus:
«Porque Me viste acreditaste:
felizes os que acreditam sem terem visto».
Muitos outros milagres fez Jesus na presença dos seus discípulos,
que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram escritos
para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus,
e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome.

09 abril 2021

Textos dos dias que correm

Que Preceitos Ministrar com o Nosso Semelhante?

Passemos a outra questão: o modo de tratarmos com o nosso semelhante. Como devemos agir, que preceitos ministrar? Que não derramemos sangue humano? Ao nosso semelhante devemos fazer o bem: aconselhar a não lhe fazer mal, que ridículo! Até parece que encontrar algum homem que não seja uma fera para os outros já é coisa merecedora de encómios... Vamos aconselhar a que se estenda a mão ao náufrago, se indique o caminho a quem anda perdido, se divida o pão com o esfomeado? Mas para que hei-de eu enumerar todos os actos que devemos ou não devemos praticar quando posso numa só frase resumir todos os nossos deveres para com os outros? Tudo quanto vês, este espaço em que se contém o divino e o humano, é uno, e nós não somos senão os membros de um vasto corpo. A natureza gerou-nos como uma só família, pois nos criou da mesma matéria e nos dará o mesmo destino; a natureza faz-nos sentir amor uns pelos outros, e aponta-nos a vida em sociedade. A natureza determinou tudo quanto é lícito e justo; pela própria lei da natureza, é mais terrível fazer o mal do que sofrê-lo; em obediência à natureza, as nossas mãos devem estar prontas a auxiliar quem delas necessite. Devemos ter gravado na alma, e sempre na ponta da língua, o verso famoso: "sou homem, tudo quanto é humano me concerne!" (Terêncio). Possuamos tudo em comunidade, uma vez que como comunidade fomos gerados. A sociedade humana assemelha-se em tudo a um arco abobadado: as pedras que, sozinhas, cairiam, sustentam-se mutuamente, e assim conseguem manter-se firmes!


Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

07 abril 2021

Do que morre por causa do que nasce

Num discurso proferido em 1901, Frank Lloyd Wright, um dos mais famosos arquitectos norte-americanos, cita Notre-Dame, de Victor Hugo: [t]he prophecy of Frollo, that "the book will kill the edifice," I remember was to me as a boy one of the grandest sad things of the world.

Em 1980, a banda The Buggles lançava uma música chamada Video killed the radio star, com o seguinte (e criativo refrão): Video killed the radio star / Video killed the radio star / Pictures came and broke your heart / Oh-a-a-a oh.

Em The muse learns to write, afirma Eric A. Havelock: (...) Rousseau had failed to perceive the true source of the "catastrophe" - the reduction of language to text. An "interior" consciousness has been forced forward and virtually destroyed   

Em O infinito num junco, Irene Vallejo afirma: [a]ntes da invenção da imprensa, cada livro era único.

***

Estas quatro referências, aparentemente desconexas entre si, têm um fio condutor: o que desaparece com aquilo que nasce: a máquina matou a criatividade, o vídeo matou a estrela da rádio, a escrita matou a uma certa consciência interior, a imprensa matou o acto único (antes desta expressão ter uma conotação fiscal).

Lembrei-me deste devaneio por via do livro, de Gutenberg, do carácter único das coisas, daquilo que desaparece por causa da evolução, do progresso, da melhoria da qualidade de vida, da ideia de dignificação da profissão, ou coisas quejandas. 

Antes da invenção da prensa, antes de Gutenberg ter revolucionado o mundo, cada livro era uma obra única, uma preciosidade não replicável, mas copiada por mãos firmes, olhares argutos, vidas dedicadas a um certo silêncio. Em bom rigor, uma conversa é um livro pré-prensa: não é replicável mas pode ser copiada, vulnerável, como era a actividade do copista, à confusão, à má interpretação, à tresleitura da palavra dita ou escrita.

A prensa melhorou o mundo, a escrita melhorou o mundo; não sei, contudo, se o mundo ficou inquestionavelmente melhor , se é que me faço entender. Talvez Frank Lloyd Wright e os The Buggles tivessem, ironicamente, alguma razão.

JdB 

04 abril 2021

1º Domingo da Páscoa

 EVANGELHO - Jo 20,1-9

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

No primeiro dia da semana,
Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro
e viu a pedra retirada do sepulcro.
Correu então e foi ter com Simão Pedro
e com o discípulo predilecto de Jesus
e disse-lhes:
«Levaram o Senhor do sepulcro
e não sabemos onde O puseram».
Pedro partiu com o outro discípulo
e foram ambos ao sepulcro.
Corriam os dois juntos,
mas o outro discípulo antecipou-se,
correndo mais depressa do que Pedro,
e chegou primeiro ao sepulcro.
Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou.
Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira.
Entrou no sepulcro
e viu as ligaduras no chão
e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus,
não com as ligaduras, mas enrolado à parte.
Entrou também o outro discípulo
que chegara primeiro ao sepulcro:
viu e acreditou.
Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura,
segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.

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