31 julho 2009

oração pagã

se é obra tua,
que assim seja.
publica-a onde o vento a leve.
não sejas lenta nem rápida,
não sejas longa nem breve.
deixa-te fielmente acontecer.
despede-te, depois, de ti,
renasce outra vez,
com palavras fortes e cheias
feitas de marés e luas mansas.
e de tudo o mais que em ti falta,
e de tudo o mais que de ti sobeja.

volta atrás,
despe-te agora do artifício,
reiventa o deserto em cores impossíveis,
e simples.
faz o milagre acontecer em tua casa.
sê árvore, ave, gota, filamento.
levanta de ti mesmo vôo.
faz deste lugar a hora suprema,
agarra com limpidez, ternura e febre
este outro tu - puro e sedento -
escuta o tempo e o que ele te diz:
é este, para sempre, rapariga,
o teu único e verdadeiro momento.

gi

30 julho 2009

Quem és tu, ó Morte ?


Falar da morte não é fácil, por várias razões. É um tema ainda tabu, na nossa sociedade e levianamente associado a bruxarias, espiritismos e afins. É uma realidade que todos sabem existir, mas ninguém conhece de facto, uma realidade da qual ninguém pode falar com conhecimento de causa. É um tema triste, inquietante, profundo, sobre o qual se fazem inúmeras conjecturas. É um tema que desperta raivas e revoltas, quando a morte surge inesperadamente, extemporânea. Paradoxalmente, a mesma morte pode trazer alívio e libertação.

É algo para o qual o ser humano, simplesmente, nunca estará preparado. A nossa essência é viver, é dar e receber vida, é mantermo-nos agarrados ao sopro da vida, mesmo quando esse sopro balança, trémulo, como uma fina teia de aranha.

Dizemos, repetidamente, tenho medo de morrer, não quero morrer.

Esvaziamo-nos com a noticia de uma morte próxima. Rezamos, choramos, imploramos para que a morte de um ente querido não chegue e, quando chega, todo o nosso mundo desaba, como se tudo o que houvesse estivesse dependente dessa vida que agora parte.

Revoltamo-nos contra Deus, contra os políticos, contra os médicos e contra a natureza sempre que a morte nos aparece de forma injusta, imposta, sofrida ou violenta. Revoltamo-nos contra nós próprios porque não previmos a sua chegada. Revoltamo-nos contra a própria morte, pelo simples facto de existir. Sempre este sentimento de revolta, de não aceitação, de espanto, de knock-out, Será que, alguma vez, o ser humano conseguirá olhar para a morte e aceitá-la sem qualquer revolta ?

Quem és tu ó Morte, que tanto poder trazes em ti ? Nos atormentas, nos desinstalas, nos intoxicas, nos violentas, nos atravessas as entranhas, sem dó, sem piedade. Vens cheia de ti própria, convicta da tua autoridade, destrois sonhos, divides famílias, espezinhas esperanças ... e afinal, quando te queremos ver, quando te queremos palpar, quando te queremos cheirar... que encontramos? Um grande NADA. Um buraco negro. Um vazio. Algo que realmente não existe. A morte, por si só, não existe. Se a morte é o oposto da vida e a vida é para nós tudo, então, aquela é nada.

Enquanto que a vida, por si só, existe e é real - podemos ver, palpar, cheirar uma criança que acaba de nascer - a morte não tem cor, não tem rosto, não tem cheiro; em última instância, podemos afirmar que o poder da morte revela-se na medida da importância que lhe dermos. Podemos olhá-la e deixá-la apoderar-se de nós, das nossas emoções, da nossa sanidade, da nossa espiritualidade ou podemos enfrentá-la, numa atitude sobranceira e distante, e dizer-lhe: reduz-te à tua insignificância, o teu poder vem de mim, só és forte se eu te der importância.

Ao longo da minha vida, vivi a partida de cinco ou 6 familiares, três dos quais muito chegados a mim. A forma como vivenciei essas mortes, desde os meus 17 anos aos actuais 50, ilustra bem aquilo que acabo de escrever e quem, nos dias de hoje, me conhece, sabe bem que consigo dizer à morte “reduz-te à tua insignificância”, porque, afinal, aquilo que eu julgava ser um Adeus é, antes, um Até Breve.

maf

29 julho 2009

Et maintenant

Há algumas semanas falava com o meu querido e estimado amigo ATM sobre a existência do blogue durante o período de Verão, em que o País vai a banhos. No decurso da conversa, contou-me que tinha ouvido uma entrevista na telefonia (já não é assim que se diz, pois não?) durante a qual se tinha falado nesta música. Alguém, a quem a vida tinha corrida ao contrário do que desejaria, revia-se fortemente na letra.

Aqui fica, por isso, o grande Gilbert Bécaud. Para os nostálgicos da boa música francesa, mas também para os nostálgicos da vida, que se olham ao espelho onde vêem uma interrogação: e agora...?



Et maintenant que vais-je faire /De tout ce temps que sera ma vie / De tous ces gens qui m'indiffèrent / Maintenant que tu es partie

Toutes ces nuits, pourquoi pour qui / Et ce matin qui revient pour rien / Ce cœur qui bat, pour qui, pourquoi / Qui bat trop fort, trop fort

Et maintenant que vais-je faire / Vers quel néant glissera ma vie / Tu m'as laissé la terre entière / Mais la terre sans toi c'est petit

Vous, mes amis, soyez gentils / Vous savez bien que l'on n'y peut rien / Même Paris crève d'ennui / Toutes ses rues me tuent

Et maintenant que vais-je faire / Je vais en rire pour ne plus pleurer / Je vais brûler des nuits entières / Au matin je te haïrai

Et puis un soir dans mon miroir / Je verrai bien la fin du chemin / Pas une fleur et pas de pleurs / Au moment de l'adieu

Je n'ai vraiment plus rien à faire / Je n'ai vraiment plus rien ...

28 julho 2009

História para pintar – V

O vê dos patos acaba a tarde num silêncio leve.
As árvores quietas
espalmam sobre o rio o lado errado
e o sol pôs-se, mais uma vez, a divagar
entre o laranja, o violeta e o encarnado.

JCN

27 julho 2009

Músicas dos dias que correm

Adeus: alerta, anúncio, aviso

Durante as próximas semanas - seguramente até ao início de Setembro - o Adeus, até ao meu regresso... mantém-se aberto, mas algumas das suas rúbricas poderão surgir irregularmente. O Largo da Boa-Hora, por exemplo, encerrou para gozo merecido de férias.
Vão aparecendo, porque haverá sempre qualquer coisa para animar as hostes.
O editor e dono deste estabelecimento agradece a preferência dos seus leitores.

JdB

26 julho 2009

XVII Domingo do Tempo Comum

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.
Ao preparar mentalmente as poucas linhas - e certamente pouco inspiradas, também - que escreveria para este post, ocorreram-me dois pensamentos que não terão, provavelmente, muito a ver com o Evangelho de hoje. Mas fui assaltado por uma onda de alguma simplicidade, porque a vida é feita, muitas vezes, de trivialidades.
Vou olhando para a minha existência e para a dos que circulam em meu redor, e gosto de relembrar algumas palavras que, bem conjugadas, farão uma boa redacção do que deveria ser a nossa caminhada: amor, perdão, tolerância, solidariedade, caridade, atenção, compreensão, fidelidade, princípios, humildade, despojamento. Eu sei, eu sei... Só a dactilografia destas virtudes é que é um exercício simples. A sua aplicação prática é mais complicada - ainda que não impossível. É um exercício diário, porque a procura da santidade não obedece a sazonalidades nem ao conceito de semana inglesa.
Numa dada altura da minha vida falava a noivos que estavam prestes a casar. Tenho pouco a ensinar aos outros, porque em muitos casos nem para mim sei, mas gostava de olhar para eles e imaginar-lhes licenciaturas, profissões liberais, cargos de chefia, carreiras promissoras. E durante a minha intervenção referia - entre outros - dois pontos, que a minha experiência sabia serem certos:
- não detemos nada; tudo o que temos e somos nos foi cedido para o pormos ao serviço do bem comum, do nosso próximo, dos mais necessitados;
- o mundo está cheio de advogados, engenheiros, médicos, professores competentes; o que os distingue dos outros é a forma como exercem o seu mister, como se relacionam com colegas, chefes, subordinados, fornecedores ou clientes. O mérito não está só na competência, mas no modo como a aplicamos.

EVANGELHO – Jo 6,1-5
Naquele tempo,
Jesus partiu para o outro lado do mar da Galileia,
ou de Tiberíades.
Seguia-O numerosa multidão,
por ver os milagres que Ele realizava nos doentes.
Jesus subiu a um monte
e sentou-Se aí com os seus discípulos.
Estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus.
Erguendo os olhos
e vendo que uma grande multidão vinha ao seu encontro,
Jesus disse a Filipe:
«Onde havemos de comprar pão para lhes dar de comer?»
Dizia isto para o experimentar,
pois Ele bem sabia o que ia fazer.
Respondeu-Lhe Filipe:
«Duzentos denários de pão não chegam
para dar um bocadinho a cada um».
Disse-Lhe um dos discípulos, André, irmão de Simão Pedro:
«Está aqui um rapazito
que tem cinco pães de cevada e dois peixes.
Mas que é isso para tanta gente?»
Jesus respondeu: «Mandai sentar essa gente».
Havia muita erva naquele lugar
e os homens sentaram-se em número de uns cinco mil.
Então, Jesus tomou os pães, deu graças
e distribuiu-os aos que estavam sentados,
fazendo o mesmo com os peixes;
E comeram quanto quiseram.
Quando ficaram saciados,
Jesus disse aos discípulos:
«Recolhei os bocados que sobraram,
para que nada se perca».
Recolheram-nos e encheram doze cestos
com os bocados dos cinco pães de cevada
que sobraram aos que tinham comido.
Quando viram o milagre que Jesus fizera,
aqueles homens começaram a dizer:
«Este é, na verdade, o Profeta que estava para vir ao mundo».
Mas Jesus, sabendo que viriam buscá-l’O para O fazerem rei,
retirou-Se novamente, sozinho, para o monte.


JdB

25 julho 2009

Até à morte, Dr. Joaquim Teixeira de Vasconcelos?

Teria sido um erro. A inaptidão para os números, o tédio das ciências exactas, o horror às fórmulas. Trabalhar na terra, cumprir a lavoura, olhar os campos cultivados, esperar as colheitas. Catar cães e gatos, vigiar o gado, ir aos ovos, acarinhar uma ninhada, tirar o leite, rachar lenha. Adubar, sulfatar, sachar, regar. Era a minha vida, mas teria sido um erro. A agricultura precipitou-se, afinal, no abismo e morreu. O canudo de nada serviria. Foi duro apartar-me das pulgas e das ervas, e apanhar o comboio. Na cidade, novas colheitas e outros trabalhos, nunca desataram o nó. E o tempo trouxe-me um sonho, mais e mais persistentemente sonhado. Gostava que os homens do meu País me dessem o braço, erguessem os canudos, e voltassem a lavrar os campos, a ver crescer o pão, a comer o que é seu, a amar a terra abandonada.

Jamais esquecerei o momento em que um novo personagem quer substituir-se à nossa pessoa verdadeira. É o momento em que nos separamos da Natureza e nos adaptamos à sociedade. Essa transição do natural para o artificial é uma tragédia em certos temperamentos enraizados no âmago da terra. É uma tragédia que vai até à morte.

Teixeira de Pascoaes, in LIVRO DE MEMÓRIAS

DaLheGas

24 julho 2009

as manhãs de lisboa

eram oito e cinquenta e nove desta manhã
quando o polícia de giro descruzou a perna
para melhor simular a sumptuosa autoridade
de quem faz rimar ao acaso pistola e taberna.

esta manhã, pelas oito e cinquenta e nove,
de perna já descruzada e sorriso engatilhado,
o polícia de que falávamos faz alto a um táxi
e apruma a autoridade, por si mesmo deslumbrado.

juro que eram oito e cinquenta e nove, juro,
quando o polícia surpreende - e logo surpresa xxl.
ajuda uma velhinha a entrar no táxi lá de trás
- onde se lia pistola, leia-se agora favo de mel.

oito e cinquenta e nove minutos - já vos disse?
era vê-lo, todo garboso e finamente aprumado,
despedindo-se da velhinha com uma continência
e dando ordem de 'siga', ao taxista embasbacado.

pela última vez: oito e cinquenta e nove da manhã,
vi com estes olhos que tão mal sabem por vezes ver:
ainda há esperança para a tão pitoresca polícia,
pelo menos enquanto em lisboa não amanhecer.

percebem agora as oito e cinquenta e mesmo nove?
(one minute to nine, yes it could be said that way)
afinal um minuto depois eram já umas exactas nove,
do polícia, taxista e velhinha não mais se soube,

mas deixaram-nos uma coisa que só eu sei..

gi

23 julho 2009

Carta ao presidente Obama

Já sabemos que a internet dá a volta ao mundo. Mas eis o próximo desafio: ir à Lua!
Siga a pista aqui, no site do i.

Mónica Bello

Natureza

O dono deste estabelecimento pediu-me que escrevesse um texto sobre aspectos menos turísticos da Suécia, país que visitei recentemente em férias. A título de enquadramento, por definição generalista, começaria por dizer aquilo que toda a gente já sabe ou imagina: que é um país lindíssimo, cheio de gente bonita, loira e esguia, bebés de revista, água por todo o lado e verde a perder de vista. Barcos à vela, design e mais design, casinhas de madeira todas iguais, em tons de vermelho escuro, branco ou amarelo pintaínho, supermercados recheados de bons produtos orgânicos e salmão fumado, muita ordem, ruas imaculadas, céu cinzento ou azul suave e fotografias dos Bernardotte por todo o lado…

Não posso dizer que tenha delirado com o país. O sol faz-me falta. Mais pessoas, o barulho e uma certa desordem também …. Mas lembro-me de estar sentada num banco de madeira em Visby (capital da ilha de Gotland), a olhar o mar muito azul nesse dia, um azul já quebrado por um fim-de-tarde de nearly mid-Summer, e sentir intensamente, mesmo intensamente, que a Paz não é uma abstracção ou um sonho irrealista, mas sim uma pura e total realidade. A corroborar os meus pensamentos mais íntimos diz-me uma amiga minha, sentada ao meu lado: aqui se vê a obra do Criador.

É nestas alturas em que estamos sós, perante a beleza e a tranquilidade da Natureza, em paz connosco e com o mundo (talvez porque o deixámos para trás!..), que sentimos que a guerra não faz sentido e que não viemos a este mundo para estragar o que nos foi oferecido para usufruirmos em conjunto. É nestes minutos de absoluta quietude, em que a beleza nos entra pelos sentidos e por todos os poros, que realizamos o quão estúpidos, comezinhos e inúteis tantos dos confrontos e atritos do nosso dia-a-dia são. Nestes momentos sentimos que a Vida é um dom, que a Paz é uma realidade que está dentro de nós, e que precisamos de muito pouco para sermos felizes. É nestas alturas de contemplação e beleza que o sentir se sobrepõe ao pensar.

Sentir engloba, pensar separa. É pois assim, através deste sentir que tudo agrega, une e amplia, que “vemos” mais longe e que conseguimos chegar a “paragens” que nos estão vedadas habitualmente, porque, pura e simplesmente, nos deixamos enrolar nos afazeres do dia-a-dia e não deixamos que este Vazio salvífico aconteça.

Um amigo meu diz-me, já há muitos anos, que fica “curado” ao fazer a Marginal todas as manhãs. E que a Natureza é fundamental para o seu equilíbrio. Tenho vindo a aperceber-me disto nos últimos anos (será da idade?...). A Natureza cura. Da mesma maneira que há amores que curam mágoas e feridas profundas, também a Natureza, talvez porque espelhe o Amor do Criador, tem esta capacidade de suavizar o nosso choro.

Adoraria ser poeta. Mas como não tenho essa habilidade de transformar o meu sentir em palavras comoventes e universais, prefiro socorrer-me de três apaixonados pela Natureza que, melhor que eu, pensaram e reproduziram o seu sentir para nosso deleite.

No dia em que o homem compreender ser filho da Natureza, irmão dos bichos da Terra, dos pássaros do Céu e dos peixes do Mar, nesse dia ele compreenderá sua própria insignificância e, realista, será mais humano, mais simples e mais solidário. – Oscar Niemeyer

O Inverno ia terminar. Os ventos eram ainda frios, por vezes; a brisa quente da nova estação soprava bruscamente do sul e o céu tornava-se azulado; depois de um longo silêncio ouvia-se novamente o som das flautas e a música da aldeia. Os barqueiros deixavam ir os barcos ao sabor da corrente, paravam de remar e entoavam cânticos a Krishna. Era a Primavera. – R. Tagore.

Sou um guardador de rebanhos / o rebanho é os meus pensamentos / e os meus pensamentos são todos sensações / penso com os olhos e com os ouvidos / e com as mãos e os pés / e com o nariz e a boca. / Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / e comer um fruto é saber-lhe o sentido. / Por isso quando num dia de calor / me sinto triste de gozá-lo tanto / e me deito ao comprido na erva / e fecho os olhos quentes / sinto todo o meu corpo deitado na realidade / sei a verdade e sou feliz. – F. Pessoa.

PCP

22 julho 2009

Hier encore, no Largo da Boa-Hora

Há momentos na vida de cada um de nós que são um frágil equilíbrio entre o estar e o não estar, entre o sossego e a inquietude, entre a serenidade e o espanto. Tudo apontava para que o Largo da Boa-Hora abrisse hoje ao público antes de rumar a férias. Uma sucessão estatisticamente improvável de eventos impede essa abertura. Como editor e dono deste estabelecimento cabe-me satisfazer, com o maior gosto, o pedido do bloguista das 4ªs feiras. E por isso vos apresento Monsieur Charles Aznavour cantando Hier Encore.
Aos dois minutos e nove segundos o arménio que quis ser francês canta assim:

Hier encore
J'avais vingt ans
Je caressais le temps
Et jouais de la vie
Comme on joue de l'amour
Et je vivais la nuit
Sans compter sur mes jours
Qui fuyaient dans le temps

Fica aqui o abraço com que envolvo o Largo da Boa-Hora.

JdB

21 julho 2009

História com restos de vida – V

Ficou no espelho vazio
um nome estranho.

Redimo numa consolação
o desencontro:
ás vezes a verdade
trai a falta de jeito
para os tempos tristes.

JCN

20 julho 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia mundial da previsão meteorológica,

A menina do boletim meteorológico já tinha alertado, apontando, com um ar sabedor, as isóbaras e os anti-ciclones que se deslocavam no ecrã a uma velocidade perturbadora, enrolando-se sobre si próprios como um bichinho de conta; os jornais enchiam primeiras páginas com títulos a negrito e corpo de letra grande e ameaçador, entrevistando especialistas na matéria e reproduzindo artigos científicos publicados nas maiores universidades; os ministros da tutela afadigavam-se em conferências de imprensa a horas certas, revelando, com orgulho, a acção atempada do governo. O tom era grave, a voz séria, o semblante carregado.

Por todo o país – das grandes empresas à pequena indústria, dos impérios financeiros às lojas de bairro – a preocupação era una e inequívoca. Pela primeira vez desde o Euro de Scolari, a nação irmanava-se num desígnio colectivo, como se entre o Minho e o Algarve (considerando que Timor já pertencia a outro campeonato) se juntasse o povo todo no cais das colunas a soprar na direcção das velas que se enfunam.

De norte a sul, das Câmaras Municipais às paróquias, passando por seitas religiosas, ONG’s, instituições de solidariedade social, clubes desportivos, a linguagem era uma só, com uma gravidade inequívoca, abordando o tema que abria telejornais e provocava o encerramento tardio dos matutinos.

Por aqui e por ali, empreendedores perspicazes reuniam-se para explorar nichos de mercado, oportunidades de negócio, novos canais de distribuição. O país andava e repousava ao ritmo de uma informação forte, pesada, preocupante, tórrida:

Espera-se, nos próximos dias, uma vaga de calor invulgar, que obrigará a cuidados especiais em grupos de maior risco, nomeadamente a camada da população mais sensível e fragilizada, os velhos e as crianças.

Aqui, nesta fábrica da ilusão, o prenúncio de temperaturas raras e profundamente incomodativas também se fez sentir, porque o calor não só dilata os corpos, como preocupa as mentes. As meninas, estas operárias do prazer, deitaram-se mais amiúde aos banhos, como se a transpiração fosse consequência, também, daquilo que se imagina. Reforçou-se o stock de águas e de gelo, escreveram-se normas de execução permanente relativamente à higiene de uma actividade deste género, fizeram-se recomendações várias e precisas. De dentro do seu gabinete, numa labuta avaliadora dos potenciais efeitos da vaga de calor no negócio da Casa, a Dr.ª Clara gritou, num exercício de autoridade e previdência que não deixava margem para dúvidas:

- Amália! Chame-me a empresa do ar condicionado para uma revisão urgente da instalação.

O dia seguinte amanheceu quente, não augurando frescura pela tarde. Talvez já fosse a tal vaga a invadir o país, secando fontes e enchendo praias. A revisão dos aparelhos começou de manhã cedo, desalojando as meninas que se agitavam num frenesim enervado. A Dr.ª Clara distribuía ordens para a esquerda e para a direita, retirando-me do sossego da recepção e obrigando-me a coxear numa maratona dolorosa.

Quando cheguei ao fim do dia, exausta da cabeça e do corpo, olhei para a rua onde estava a carrinha da empresa de manutenção. Não consegui deixar de sorrir perante o anúncio que enfeitava a lateral da viatura. Numa associação mental excepcionalmente rápida para o cansaço em que me encontrava, fui à procura do técnico. Vi então um homem novo, invulgarmente bonito, com um corpo que faria inveja a qualquer atleta, e um cabelo impecavelmente penteado para o lado. Sorriu-me e despediu-se, estendendo-me uma mão forte, mas bem tratada. Olhei para o corredor que dava acesso aos quartos e tenho a certeza de ter visto algumas raparigas com um ar particularmente bem-disposto. Riam, cochichavam, empurravam-se umas às outras. Talvez fosse do calor, não sei.

Lá fora, a carrinha desaparecia numa curva, revelando, ainda, uma frase no mínimo curiosa – ou elucidativa.

Na ar condicionado Baptista, cada técnico é um artista

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

19 julho 2009

XIV Domingo do Tempo Comum

Hoje é Domingo e eu não esqueço a minha condição de Católico.
Vão perdor-me os meus fieis leitores, mas, em dia de desinspiração, nada como dar a voz a quem sabe. Comentários retirados daqui.

A comoção de Jesus diante das “ovelhas sem pastor” é sinal da sua preocupação e do seu amor. Revela a sua sensibilidade e manifesta a sua solidariedade para com todos os sofredores. A comoção de Jesus convida-nos a sermos sensíveis às dores e necessidades dos nossos irmãos. Todo o homem é nosso irmão e tem direito a esperar de nós um gesto de bondade e de acolhimento. Não podemos ficar no nosso canto, comodamente instalados, com a consciência em paz (porque até já fomos à missa e rezámos as orações que a Igreja manda), a ver o nosso irmão a sofrer. O nosso coração tem de doer, a nossa consciência tem de questionar-nos, quando vimos um homem ou uma mulher (nem que seja um desconhecido, nem que seja um estrangeiro) ser magoado, explorado, ofendido, marginalizado, privado dos seus direitos e da sua dignidade. Um cristão é alguém que tem de sentir como seus os sofrimentos do irmão.

EVANGELHO – Mc 6,30-34
Naquele tempo,
os Apóstolos voltaram para junto de Jesus
e contaram-Lhe tudo o que tinham feito e ensinado.
Então Jesus disse-lhes:
«Vinde comigo para um lugar isolado
e descansai um pouco».
De facto, havia sempre tanta gente a chegar e a partir
que eles nem tinham tempo de comer.
Partiram, então, de barco
para um lugar isolado, sem mais ninguém.
Vendo-os afastar-se, muitos perceberam para onde iam;
e, de todas as cidades, acorreram a pé para aquele lugar
e chegaram lá primeiro que eles.
Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão
e compadeceu-Se de toda aquela gente,
que eram como ovelhas sem pastor.
E começou a ensinar-lhes muitas coisas.

18 julho 2009

Um dia um homem também chora

A tua guerra, essa luta que travas contra mim, contra todos a quem chamas oponentes, é só tua. Começou, eras menino. Houve uns olhos que te olharam e a denunciaram, um coração em desespero que a partilhou contigo, uma boca que não conseguiu calar a voz amargurada da angústia. Há muitos homens em combate como tu. Que arremessam pedras, disparam tiros e põem bombas durante uma vida inteira. Cegos de raiva. Em toda a esquina topam o inimigo, em cada alma auguram o traidor. Carregam desde meninos a dor de alguém que amaram e que os amou, devolvem-na ao mundo, espalham-na à sua volta, sem nunca duvidarem do que sentem. Erguem o indicador sobre quem estiver à mão, em pequena ou grande falha, ignorando que nesse gesto outros quatro dedos apontam, na sua própria direcção. Não reparam, ocupados que estão na sua douta opinião. “Estarei equivocado?”, é questão que não reclama naquelas mentes. As guerras vêem de longe, sim. Destroem o teu mais intenso amor, a tua paz, a fraternidade que tantas vezes apregoas. Há muito, muito tempo, eras tu tão pequenino, e foi profundamente injusto, insano, inconsequente.

Homens, procurem a origem do vosso inferno. Persigam a razão da vossa guerra. Revejam, tim-tim por tim-tim, o que assistísteis quando meninos. De que misérias fostes vós testemunhas caladas entre os jogos de bola, o caminho da escola, os fins de tarde, as manhãs de sábado, os passeios de domingo, a ida à missa? No vosso quarto, à mesa de jantar, no silêncio aterrador da madrugada? Do que sentistéis, talvez não tereis lembrança. Ou surgirão vagas recordações de uma criança simplesmente amedrontada. Mas ficai certos: dentro de vós, como num papiro milenar, se guardam tais vivências descritas ao milímetro. Têm a forma de terríveis consequências e poder sobre a vossa condição. Desabrocham como ervas daninhas entre as vossas opiniões, acções, reflexões. Toldam o timbre das vozes e manipulam os gestos mais naturais. Homens, não se detenham. Procurai a origem do vosso inferno, a razão de toda a guerra, e voai, sem medo.

DaLheGas

17 julho 2009

os poetas dos 30 anos

dizem aqui ao lado, que digo?, zombam,
que a poesia é matéria ilusória,
não sacia a fome, não mata a sede e,
se porventura formos metafóricos,
mesmo o espírito é discutível, menina.

dizem aqui ao lado, que digo?, rosnam,
que a poesia é altamente perigosa,
ilusão alienante que faz lembrar
aquela matéria que nas bds da infância
se chamava o ouro dos tolos, menina.

dizem aqui ao lado, que digo?, cospem,
que a poesia e os seus promitentes poetas
são uma cambada de vencidos da vida
frequentadores de modernos pardieiros estéticos
à falta de trabalho e melhor ocupação, menina.

dizem aqui ao lado, que digo?, hesitam,
que o problema é afinal outro:
- poesia? nada contra, menina.
o problema é já 'não se ser menina',
o problema é chegarmos aqui,
trinta anos, umas assoalhadas algures,
trinta e um anos, um carro vistoso,
trinta e dois anos, um emprego bafiento,
trinta e três anos, a idade de Cristo..

a partir daqui, menina,
já estamos a mais.
a partir daqui, menina,já somos a menos.
finam-se as possibilidades surreais,
enterram-se os sonhos de grandeza,
louvam-se as minúsculas alegrias,
cultivam-se as rimas que não riem
e os risos que não rimam.

o problema da poesia é simples:
não serve para nada, é dandismo puro,
devaneio de quem pode pensar em algo mais
que a bucha e os trocos do dia.
neo-realismo pós-moderno,
manuel de freitas, sem profundidade,
josé miguel silva, sem latitude,
dizem aqui ao lado, que digo?, acusam.

tristes patetas,
e, o pior de tudo, impotentes
estes poetas dos trinta anos.

ontem, liguei a televisão,
espreitei a selecção da albânia,
pensei no que seria se tivesse nascido em tirana.
vi o nosso treinador perdido,
impotente,
sem saber o que fazer.
(aposto que é rapaz para mais de trinta anos).

desligar a televisão,
desligar dos jornais,
desligar a rádio,
desligar o mundo.ir treinando, em vida, em jogo,
eles e nós,
a não qualificação.

o problema da poesia, vendo bem,
não é ser nada.
o problema da poesia
é dizer o nada,
na esperança louca e fugidia,
de que o extremo exercício da beleza*
seja, afinal,
uma janela.

passado, presente e futuro,
guarda de honra e exército,
puros-sangues,
galgos por inventar,
cores impossíveis,
uma saída.

mas há uma saída, menina?**


* verso adaptado de Herberto Helder, com profunda admiração.
**verso adaptado de Rui Pires Cabral, com profundo respeito.

gi

16 julho 2009

Encantamento

Mais que o sorriso de uma criança a brincar,
Ou o olhar enternecido da Mulher que se fez Mãe;
Mais do que o choro de um bebé, ao nascer,
Ou o abraço apertado daquele que vai partir ...
Tu me encantas, meu Amor

Mais do que a aurora resplandecente no horizonte
Do que o fogo vivo do pôr do sol.
O verde dos prados que de orvalho se cobrem
Ou a suave frescura da chuva a cair ...
Tu me encantas, meu Amor

Tu me encantas meu Amor, com os teus gestos delicados
Teu sorriso de menino, teus olhos enamorados;
Braços teus que me enlaçam num abraço profundo e terno
E este corpo que era meu ...
Já não me pertence; para sempre fundiu-se no teu.

Mais do que a semente que brota da terra
E em flor germina, viçosa, colorida.
Mais do que o toque suave das suas pétalas
Ou o perfume inebriante que lhe dá vida ...
Tu me encantas, meu Amor

Mais do que a força impiedosa dos oceanos
Ou a tranquila ondulação da maresia;
O reflexo da lua num mar que se faz prata
Ou o grito longínquo da baleia e sua cria ...
Tu me encantas, meu Amor

Tu me encantas meu Amor, com palavras de doçura
Invades o meu coração nesta paixão que é loucura;
Braços teus que me envolvem, me elevam aos Céus
Neste voo sufocante que me aperta, me asfixia
E num esforço derradeiro de um último sopro meu
Descubro que o ar que respiro era, afinal, o teu.

Mais do que o espectro de luzes que dá vida ao arco-íris
Do que o esplendor de um raio que, do Céu, se vê rasgar.
Mais do que o brilho alvo e puro, translúcido, do diamante
Ou mil feixes de luz à deriva no mar ...
Tu me encantas, meu Amor

Tu me encantas meu Amor, com o teu beijo sensual
O teu toque delicado, o teu jeito sedutor;
Braços teus que me amparam como se fosse uma flor
E nesta sede de paixão, nesta ânsia de prazer
Os nossos corpos se unem, numa entrega inadiável
Marcando p'ra todo o sempre este amor inevitável.

maf

15 julho 2009

Outro olhar

Prendo o meu olhar no passado. É verdade, este não é extenso e, logo, a minha experiência de vida não é longa. No entanto, não considero esta desvantagem como algo que invalide a essência dos meus sentimentos.

Invocando o exemplo de uma criança, deparo-me com uma realidade assustadora: os seus sentimentos são tão mais simples, tão mais inocentes, mas tão mais puros do que os dos adultos. E desenganem-se: esta realidade não está associada à falta de experiência de vida ou à ingenuidade características. Apenas acontece porque as crianças olham o mundo de uma forma simples e fácil.

É tempo de voltar a pousar o olhar no passado. Já fomos todos crianças, já vivemos todos o maravilhoso tempo que é a infância, e já olhámos todos o mundo de outra forma, com um olhar tão diferente.

No entanto, a vida encarrega-se de afogar toda esta pureza, colocando-nos obstáculos no caminho que nos obrigam a fechar os olhos. Mas, quando os abrimos, tudo está diferente, com tons acinzentados e escuros. A nossa visão é mais negra.

Ou porque conhecemos a maldade, o desgosto, a traição, a desconfiança ou a mentira, os nossos olhos já não mais encontram a verdadeira essência de cada coisa que nos rodeia. É como um manto escuro, que sufoca qualquer visão relativa à verdadeira beleza, à beleza simples, à beleza primária. Assim, tal como os olhos se habituam à claridade, reagem rapidamente com naturalidade às visões maldosas e julgadoras com que se deparam.

E é aqui que a nossa intervenção, enquanto seres humanos, é fundamental e imprescindível. Um marinheiro não pode ficar imóvel perante um possível naufrágio do seu barco e, assim, também nós não podemos assistir à nossa mudança de uma forma impávida e serena. Temos que fazer mais do que isso, ir mais além. Aqui, apelo a uma recordação do passado como forma de ganharmos força e coragem para esta luta contra nós próprios.

O chilrear de um pássaro, a beleza de fazer um amigo na praia, as pétalas de uma flor, o murmurar das ondas ou um “amo-te” proclamado pelas nossas mães não eram coisas pequenas que nos faziam sentir enormes? Mas, com o tal manto preto a encobri-las, já não conseguimos ver a sua beleza, apenas maldizê-las e desconfiar.

Então, não era tudo mais bonito e puro com a nossa visão de crianças? Era, mas não quero conjugar este verbo no passado. É. Cabe-nos a nós decidir como queremos olhar o mundo. Basta rasgar o manto negro, e conseguimos apreciar a verdadeira beleza das coisas, a essência das suas origens e a pureza de cada ser.

Assim, garanto-vos, seremos felizes.

MTM

Explicação

Quem, como eu, é crente, acredita que há uma eternidade à nossa espera, uma espécie de infinito do lado de lá da curva do caminho. Mas não precisamos de fazer esse caminho para nos perpetuarmos. Basta, tantas vezes, olhar para quem nos sucede na continuação de uma família, de um nome, de um gene. Quando pegamos um filho nos braços pela primeira vez, os nossos olhos alcançam o invisível, vêem para lá de uma cortina de desfocado onde se queda o que é imediato e comezinho. De alguma forma não existimos por nós próprios - recebemos de quem nos antecedeu, entregamos a quem vem a seguir a nós. É nesta dádiva que se cumpre, tantas e tantas vezes, um destino, porque o resto é efémero, transitório, consumível. Há dias em que pegamos na caneta com que escrevemos as primeiras histórias e a colocamos numa mão mais frágil, menos calejada, mas em cujas veias percorrem fluidos que dominamos, porque são também os nossos. Há dias em que nos ocorre uma frase para justificar uma ausência:

- Vai. Hoje é o teu dia.

JdB (editor e dono deste estabelecimento) que sabe do que escreve.

14 julho 2009

História com restos de vida – IV

No fundo
há sempre uma parte de nós que
surdamente
guarda o som
do talher vazio à mesa.

Lá no fundo,
há no fundo de nós
uma esperança
à espera de esquecer.

JCN

13 julho 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, data irrelevante,

Meu querido Fábio,

Embora tenhas acesso ao meu diário, estou certo de que não lerás esta carta, porque o respeito que me tens to impede. Gostas de mais de mim para ocupares a tua mente com perguntas do género: o que faz ela num estabelecimento chamado Lanterna Vermelha e que oferece ilusão a troco de dinheiro?

Começo esta página do meu diário sob o signo da interrogação. Escreverei sobre o quê? Quem será, das raparigas ou dos clientes, que me reterá a atenção neste dia. Que pormenor mais sórdido, que passado mais misterioso ou que presente mais triste me iluminará a inspiração, me atirará com furor criativo para uma página de um caderno? De facto, meu querido Fábio, companheiro de alegrias e tristezas, nada me inspira neste momento.

Perguntarás se tenho falta de assunto. De todo! Tenho muito por onde escrever, mas pouca paciência para o fazer. Sabes, ele há dias assim, em que o nosso horizonte visual é o que é, mas também poderia ser outra coisa. Tanto faz ser um deserto ou um mar encapelado; poderia ser uma vista de África ou do Árctico. Tudo é indiferente, porque não há, aparentemente, ligação estabelecida entre mente e braço. À parte do corpo humano que é responsável pela escrita - na sua forma física - não chega estímulo. Quando isso acontece, faz-se o quê? Nada. Deita-se a caneta na secretária e volta-se a vontade para outras coisas.

Graças a Deus não tenho ninguém que me leia regularmente. Felizmente não tenho leitores que me perguntam religiosamente à 2ªfeira: então, não se escreveu nada hoje? Se os tivesse sentiria que os defraudo. Mas escrevo para mim, principalmente, e para ti, querido Fábio, que me lês sempre, mesmo quando não há nada para ler.

Não estou demasiadamente triste nem excessivamente alegre. Sinto apenas um vazio criativo, como se o estabelecimento onde trabalho tivesse encerrado para férias, para descanso do pessoal, para mudança de um ramo qualquer, para auditorias ou inspecções. Como se as operárias que aqui trabalham estivessem todas fora, a banhos.

Olha, Fábio, não sei o que te diga. Fica o meu beijo, na certeza de que gostarás de mim na mesma.

Amália

Lanterna Vermelha

O que seria a Lanterna Vermelha em versão chinesa?

MTS

Alerta

Motivos importantes levam a que o Lanterna Vermelha de hoje - ou o que se publicar em sua vez - saia um pouco mais tarde. Talvez fim da manhã, em não havendo imprevistos adicionais.

JdB (editor e dono do estabelecimento) e MTS (cronista de serviço)

12 julho 2009

Chamamento e missão

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.
Leio o Evangelho de hoje e assaltam-me duas ideias. É verdade que há o carácter universal das coisas (os doze apóstolos a representarem as doze tribos de Israel), ou o sentido de comunidade (o facto dos apóstolos partirem dois a dois); há ainda as instruções sobre como se devem comportar os apóstolos perante a hospitalidade que lhes é proporcionada (a demora para a formação da comunidade). Pese embora a importância de tudo isto, a mente e o coração atiram-me para duas ideias chave: chamamento e missão.
Nem todos somos chamados ao sacerdócio ou a qualquer outra forma de vida consagrada, mas, estou certo, somos todos desafiados ao exercício da santidade: nas nossas vidas comezinhas ou influentes, na forma como nos relacionamos com colegas, empregados, amigos, família. Acima da competência que pomos nas coisas que fazemos está a diferença que marcamos relativamente a um mundo egoísta, demasiado competitivo, esmagador, privilegiador do ter em vez do ser, onde a compreensão, a tolerância e o sentido de justiça se arriscam a ocupar lugares raros.
Somos, de facto, chamados a ser santos. A nossa missão também é essa.

EVANGELHO – Mc 6,7-13
Naquele tempo,
Jesus chamou os doze Apóstolos
e começou a enviá-los dois a dois.
Deu-lhes poder sobre os espíritos impuros
e ordenou-lhes que nada levassem para o caminho,
a não ser o bastão:
nem pão, nem alforge, nem dinheiro;
que fossem calçados com sandálias,
e não levassem duas túnicas.
Disse-lhes também:
«Quando entrardes em alguma casa,
ficai nela até partirdes dali.
E se não fordes recebidos em alguma localidade,
se os habitantes não vos ouvirem,
ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés
como testemunho contra eles».
Os Apóstolos partiram e pregaram o arrependimento,
expulsaram muitos demónios,
ungiram com óleo muitos doentes e curaram-nos.

11 julho 2009

Eterno Jackson em uma piada negra


A esta hora a tua voz suspirada e doce enche a sala e danças num monitor de computador. Ao lado, um miúdo roda as músicas e constrói as tuas coreografias. Não podes supor o lume que tens atiçado por este mundo fora. Há um bando de crianças a gritar o teu nome, a perguntar por ti, a ouvir-te pela primeira vez, a imitar-te os passos escandalosamente bem. Michael Jackson, tantos anos sem te ver e agora levas os dias em minha casa. Ainda choro com “Heal the World", danço com “Billy Jeane” excedo-me em “Beat It” e não posso, que atraso o expediente. Sabes que me incomoda toda a forma de gozar o fraco, mas esta aposto que vais adorar. Michael Jackson fez nova plástica na semana passada. Esticou o pernil! Não é de morte baby-boy? Oh-Oh-Oh
Já tinhas ouvido? We love you more.

DaLheGas

10 julho 2009

ao amanhecer

ao amanhecer
dirás de volta aos braços que te esmagam:
nenhum tirano me seduzirá,
nenhum ouro me atropelará,
nenhum homem será meu senhor.

ao amanhecer
as nuvens, à distância de um céu, falam:
nenhum erro te matará,
nenhuma falha te desviará,
nenhuma mulher calará esse teu amor.

ao amanhecer
conhecerás a matéria do poema:
a virtude que te é exacta,
a dor que tem que acontecer,
a mais sublime inclinação.

ao amanhecer
conhecerás a tua última essência,
a que escondes nos fundos
dos teus tortuosos mundos
em todos os segundos:

- seguir o coração, joão.


gi

09 julho 2009

Coisas que não sabemos que não sabemos


Esta frase demorou-se mais de um quarto de hora à janela da biblioteca do ISCTE, a mais agradável para se estar neste dias ladrões da razão. O espaço da quinta-feira estava à disposição de umas linhas sobre a Universidade, ou outra coisa qualquer, se a vontade para aí estivesse virada. Universal, se me é permitida a ousadia de falar por toda a gente, é a vontade de fazer destes dias amolecidos ao sol aquilo para que eles são perfeitos, abrandar a vida e dedicar umas horas ao cultivo da boa disposição, com quem de direito.

Sou estudante, é o meu ofício e a minha idade na vida, estou sentado na carruagem certa para descarrilar sobre tudo o que, por afinidade ou por sangue, diz respeito à Universidade, coisas tantas que me demorariam, além dos quinze minutos da primeira frase, umas quantas tardes pachorrentas, se sobre elas me pusesse a conversar, na diagonal. Uma contextualização rápida e relativamente precisa diria que eu não estou, nem no curso certo, nem na faculdade adequada mas, com rapidez e com relativa precisão, não se contextualiza convenientemente nada de semelhante complexidade. De qualquer forma, assim fica justificada a escola da minha Universidade, aquilo que eu escolho como peça central do texto ao desafio, as pessoas.

Estes últimos e privilegiados anos têm sido um despertar para toda a riqueza que são os outros, os que já conheço, os que vou conhecendo e os que não sei quem são.

Todos os dias são, invariavelmente, uma escola, numa infinidade de momentos distintos dos quais se tira sempre a mesma lição, saber viver. A minha Universidade ensinou-me que viver é, sobretudo, não estar só e, mais importante que isso, ensinou-me a não esquecer o que aprendi ao primeiro desatino, à primeira curva do caminho. A minha Universidade ajudou-me a descobrir pormenores essenciais, que não sabia que não sabia.

Zé-do-Telhado

Sons (geniais) dos tempos que correm

Pode haver quem queira passar ao lado deste movimento composto por um génio. Fica o meu pedido: a resistência humanamente possível - e desejável - até ao instante 2'14", momento no qual tudo cresce no domínio do não explicável. Apenas no domínio do audível.

JdB

2/7


Os oboés dão o tom. Lá maior. O maestro volta-se para a direita e, lentamente, com um golpe de pulso, acena aos violoncelos. Estes expõem o tema. Apenas as linhas gerais, o fio condutor.

O resto da orquestra está suspensa, muda. Os violinos, impacientes, preparam o arco. Encostam-no às cordas. Com o apontar da batuta, estas vibram em coro.

O céu começa a fechar-se. As nuvens juntam-se em cores de tempestade.

A primeira secção de violinos recomeça o tema inicial sobre os graves dos violoncelos. O tempo é mais rápido e o instrumento apresenta os capriccios próprios.

Entra agora a segunda secção. Complementa a primeira. Enche, a contraponto, os espaços que esta vai deixando vazios. Sobem os arcos de uma, descem os da outra.

O ar começa a escurecer, o vento sente-se. As nuvens, cada vez mais escuras, enrolam-se sobre elas próprias.

O primeiro violino toma o seu lugar. Eleva-se, sozinho, acima do resto. O vibrato agudo, cristalino, sobrepõe-se a qualquer outro som da orquestra. O maestro, com movimentos curtos e precisos, dirige os instrumentos. Com a batuta ordena que os violoncelos subam de intensidade.

Os graves são o suporte para todos os outros sons, são o chão onde caem.

A segunda secção de violinos, regida pelo maestro com gestos secos da mão esquerda, acompanha os violoncelos nesta escalada, num diálogo que, pouco a pouco, vai subindo de volume.

Um a um, os violinos que seguiam o tema acompanham o primeiro na escalada sobre o resto da orquestra. Camada sobre camada, agudo sobre grave, o quadro acabou de ser pintado.

A tempestade desdobra-se impaciente para trás e para a frente.

O céu abre-se em dois com o estrondo dos tímbales. O chão estremece a cada vibração da corda dos contra-baixos. Foge debaixo dos pés.

Um, um dois três, um.

As madeiras rangem, os metais brilham, os arcos retesam-se.

Os violinos, em voo rasante, numa ventania fria, puxam os cabelos de trás do pescoço. Elevam-se no ar, em rodopio, e caem no chão, em estilhaços.

A chuva dos violoncelos cai, numa dança furiosa com o vento. É atirada contra as paredes, contra o tecto, contra o chão.

Os metais polvilham o quadro com reflexos de ouro. Relâmpagos rasgam o ar, iluminando à sua passagem.

Os contra-baixos trovejam, graves, assustadores, a fazer tremer por dentro. As cordas grossas soltam, em estrondos, trovões curtos. Em simultâneo com os relâmpagos. A tempestade atinge o seu pico.

Dois minutos e cinquenta e dois segundos depois já se pode respirar outra vez.

SdB (III)

08 julho 2009

Largo da Boa-Hora

“Eu e Tu”, “Tu e Eu”.

O ser e acontecer de cada um é, do ponto de vista da relação com o outro, confrontado com distintas atitudes e posturas desse outro, cuja natureza e consequências julgo merecerem alguma reflexão.
Nas acções ou omissões do outro temos vários graus de intersecção e / ou comparticipação que formam um largo espectro que me proponho evidenciar. (Aplicável, como todo o texto que segue, desde a relação amorosa à familiar, incluindo a de amizade e as de mero conhecimento ou de índole profissional).
Percorramos, pois, um breve itinerário das atitudes distintas perante o “ser e acontecer “ do outro.
Instrumentalmente, ficciono esse itinerário como uma escada cujos degraus ascendem da indiferença à cumplicidade, que são os extremos do espectro considerado.
No primeiro degrau da ligação ao ser e acontecer do outro, temos a ignorância, a indiferença, o alheamento. É ser-se cego, surdo e mudo.
No segundo degrau, assume-se a postura de mirone. Espreitamos o que acontece, de relance, com um ânimo de olhar sem registar, sem querer recordar, recusando outro efeito em nós que não distrair, apenas como paisagem banal e irrelevante que vai desfilando na estrada que vamos percorrendo, e que se apaga pela sucessão da próxima curiosidade.
No terceiro degrau, consideramo-nos testemunhas. Presenciamos o desenrolar do outro, com observação, com atenção, com interesse em ver e registar. Não somos neutros perante o acontecimento, queremos percepcioná-lo e aplicamos as nossas faculdades cognitivas a essa aquisição de conhecimento. No final, sentimo-nos habilitados e autorizados a discorrer e contraditar sobre os factos sucedidos, legitimados pelo “trunfo” de termos fotografado o evento.
No quarto degrau, entramos no ser e acontecer de outrem como conhecedores. Neste patamar interagimos com o outro, porque acresce, à qualidade de testemunha, a disponibilidade, interesse, vivência do acesso e conhecimento concreto das motivações, causas, efeitos, circunstâncias que são inerentes ao sucedido. Aceitamos a partilha de todo o mundo subjacente ao evento material. Passamos aos bastidores da obra apresentada, acedendo a todas as vicissitudes ocultadas do público em geral. Quando falarmos, poderemos narrar, tanto o “quê”, como o “porquê” do evento.
No quinto degrau, a atitude passa a ser de comparticipação. Deixa, pois, de ser acrítica, como nos degraus anteriores. Neste patamar assumimo-nos como tolerantes. Acresce, relativamente ao quarto degrau, uma reacção nossa de aceitação, de admissão, de conformismo, com o ser e acontecer do outro. Passamos de um "non facere" para um “facere”, que importa uma reacção nossa perante a acção do outro, ou seja, além de conhecer o acto, facto ou omissão, conferimos-lhe a nossa bênção, o nosso acolhimento.
No sexto degrau, a nossa intervenção sobre o outro cresce de importância, passamos a apoiantes. Neste estádio, afirmamos a nossa adesão, concordância, beneplácito ao ser e acontecer do outro. Sustentamos o seu devir com toda a disponibilidade para ajudar, auxiliar, viabilizar, concorrer para o evento. “Fazemos figas” para o sucesso, lançamos os foguetes, e, muito importante, estamos igualmente irmanados para a eventualidade do fracasso, da derrota, do infortúnio que ocorra no final. Estamos, para o bem e para o mal, companheiros de caminho, solidários e indefectíveis.
No sétimo degrau somos mais interventivos. Agimos a nível prévio da acção do outro, somos instigadores. Incitamos, estimulamos, induzimos o outro a ser e acontecer de certa e específica forma, premeditada também por nós. Queremos que as coisas sejam assim, e intervimos para a resolução do outro que seja necessária. A decisão é também nossa e, consequentemente, a acção, porque intencionalmente o determinámos ou concorremos para essa determinação. O evento que aconteça neste quadro de instigação é da autoria dele, mas tem a marca indelével da nossa força motriz que o animou.
Por fim, no oitavo degrau somos cúmplices do outro. A cumplicidade é ser-se co-autor do sucedido, é ter-se tomada como própria a acção do outro, é a fusão de vontades e de execuções que tornam o evento numa amálgama em que é impossível distinguir, entre ambos, quem fez, porque fez e como fez.
Trata-se da unicidade de vontades e agires que anulam a distinção das individualidades que antes se destrinçavam. O que está feito não foi feito por ambos, mas feito por um ente que é a soma, melhor, a fusão dos dois.
A cumplicidade é a hábil transformação dos “laços” em “nós górdios
A cumplicidade transforma egoísmos compatíveis em altruísmos abnegados.
A cumplicidade é, pois, a linha no horizonte que sucede no crepúsculo, e em que é impossível saber que parte da claridade vem do sol que nasce, e que parte vem da lua que adormece, ou vice-versa. É, pois, o abraço dos astros, que nem as estrelas deslindam, quanto mais os homens.
Temos assim identificados, pelo menos, oito degraus de acção e reacção, perante o ser e o acontecer do outro, todos eles enunciados pelo respectivo verso, quando podiam (deviam) também ter sido feitos pela referência ao respectivo inverso, o que só tornaria este texto inaceitavelmente longo, já que o contrário de cada degrau enunciado também é, evidentemente, uma opção e, pelo que a seguir direi, crítica e fundamental.
Conhecidos os degraus, reputo de fundamental para uma relação consciente, séria, construtiva, verdadeira, e com futuro, que cada um, em todas as ocasiões, em que o outro “é” e “acontece” lhe comunique, o faça interiorizar, consciencializar, sem dúvidas ou incertezas, qual é a acção / reacção com que conta e que lhe dá.
Sem erros nem equívocos, no nosso ser e agir todos temos o direito de saber com o que contamos do outro, se com o degrau um se com o dois o três… ou o oito.
É um dever de quem nos partilha e, na iminência do suceder a nossa opção e vivência, ou até nesse sucedimento, sabermos qual o papel (degrau) que o outro quer desempenhar nesse tempo, espaço e acontecimento, sem reservas, nem cautelas, com verdade, lealdade e coragem.
A tripulação de cada viagem conta-se à largada do navio.
É pois egoísmo, cobardia, má-fé, desamor e desinteresse por pessoas e projectos, não intimar o outro com a afirmação do degrau em que nos posicionamos à largada do navio: somos adeus no cais, visita de desembarque antes da partida, privilegiados com barco de apoio para fuga, passageiros de bilhete comprado e salvação assegurada, tripulantes, ou companheiros de campanha até ao fim, se for o caso.
Entenda-se aqui o direito / dever à oposição, que deve ser exercido no tempo e modo convenientes, com franqueza, firmeza, e fiabilidade. Dizer não, se é não. Quantos Alcácer -Quibir colectivos e pessoais teriam sido evitados…
Mas, e como corolário, se ousámos, livre e conscientemente, firmar-nos nos degraus mais elevados da comparticipação (quinto, sexto, sétimo, oitavo) então, em caso de borrasca e até de naufrágio, é pura indignidade abandonar o navio, como os ratos o fazem na iminência da desdita.
Tudo visto, numa relação temos o direito e o dever de nos posicionarmos no degrau que entendermos mais adequado, justo, possível, desejado, conveniente, e tudo o mais, numa perspectiva do interesse próprio, do interesse do outro e do interesse comum.
Mas, concluído esse posicionamento é de honra transmiti-lo.
E, de dever sagrado cumpri-lo.
O mais é desdenho e traição.

ATM

06 julho 2009

Carta a um anjo

Foi hoje, mas há 15 anos.

Nasceste num dia de Verão e tinhas a completa aparência de um bebé igual a tantos outros. Olhámos-te com os olhos da cara e não do coração, ainda que esse olhar fosse ampliado pelo amor que sempre devotamos a um filho que nos cai nos braços pela primeira vez. Cedo desconfiámos de que não nos pertencias totalmente, porque algo em ti, e na forma como te encarávamos, revelava ao mundo uma dimensão misteriosa para uma existência que só aparentemente parecia vulgar.

Hoje, porque te vimos nascer, crescer e partir, temos a certeza de que és um anjo, porque é isso que aprendemos em crianças, ao colo dos nossos Pais, deitados numa cama a ouvir histórias de encantar ou de mãos postas, rogando por alguém que nos guarde a alma de noite e de dia. Estamos todos errados, minha querida, porque quando vieste a este mundo já vinhas vestida de anjo, com uma missão importante de que só tu conhecias os pormenores.

Por teres esse mistério que só nós acabámos por ver é que escrevemos muito sobre o que tinhas vindo cá fazer, o verdadeiro propósito da tua chegada – sobretudo a razão da tua partida. Por ti inventámos o sopro do anjo, o pó do amor, um anjo chamado Éz, uma terra chamada Litores. Criámos personagens, gente que se chamava Quatro Letras, Estrela da Sabedoria, Madame Pena. Estamos certo de que lá em Cima onde moras agora, rodeada de uma felicidade cuja dimensão nos transcende, te rirás connosco da simplicidade das nossas histórias, ou estenderás uma mão pequena para agarrar uma lágrima teimosa de um fim mais comovente.

Todos os dias nos lembramos de ti, te pedimos para nos ajudares, nos iluminares, nos mostrares o caminho certo. Sabes, nem sempre a vida nos correu como queríamos. Não somos perfeitos, cometemos erros, falta-nos o amor e o perdão em doses suficientes para agarrarmos a felicidade mais elevada, aquela que se aproxima do Céu. Aí, nesse lugar de uma beleza sem par, vives uma dimensão diferente. Os teus dias não têm a duração dos nossos e, mesmo na inocência da tua idade, já sabes, de certeza, que Deus não é senão amor. Não conheces o orgulho, a raiva, o rancor ou a desilusão. Aí, onde percorres um tempo que não sabemos medir, nada é senão amor.

Temos saudades tuas, sabes? Umas saudades que o tempo vai suavizando, vai transformando numa coisa mansa que vive em permanência dentro de nós, a respirar ao compasso do nosso coração. Sabemos que estás bem, que nos olhas com uma ternura de tal modo infinita que afasta todas as decepções. Talvez, por mais estranho que pareça, derrames sobre nós um olhar de mãe, quando já tiveste um olhar de filha. E uma mãe verdadeira compreende os seus filhos a quem ama incondicionalmente. E uma mãe verdadeira vela por eles até ao fim, estendendo-lhes uma mão que eles nem sempre conseguem vislumbrar.

Como escrevemos uma vez, mais importante do que questionar porque partiste é indagar o que vieste cá fazer, o que nos quiseste ensinar. Apesar de todas as curvas no caminho, todos os desvios que parecem errados, todas as lombas que vão surgindo, continuamos a perseguir o trilho da felicidade. Apesar de todas as lágrimas e de todos os soluços e de todos os risos, continuamos a olhar para um ponto no infinito que pensamos ser o autêntico. É lá que tu estás, temos a certeza. Sabemos para onde queremos ir, só nos falta descobrir o caminho.

Hoje, como há 15 anos, continuamos a cantar para dentro as seis linhas que te oferecemos. O fado é teu, como a nossa vida é tua:

Na sua bondade sem fim
Quis Deus olhar para mim
Dar-me um pouco do que é seu
Deu-me uma estrela pequena
A quem chamou Madalena
Que é uma das santas do Céu

Foi hoje, mas há 15 anos.

JdB

05 julho 2009

A imposição das mãos

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.
Olho para a semana que passou com a mesma intensidade com que olho para a que agora entra. Nem tudo me é indiferente, mas a vida forçou-me a relativizar as coisas, os dramas, os problemas. Deus queira que seja diferente com as alegrias, e eu consiga manter o olhar de contentamento espantado para o que de bom me acontece, como se fosse uma criança a quem oferecem um gelado surpreendente no calor do Verão.
Nunca me conseguirei habituar à modernidade do viver o dia a dia, como se a eternidade se resumisse às próximas vinte e quatro horas. Preciso de objectivos, projectos, lutas, pensamentos que se lançam para lá do comezinho (digo eu...) do dia de hoje. É este, também, o reverso de uma medalha que me oferece tempo, um dos bens mais escassos da nossa modernidade.
Em muitos aspectos da minha vida atento no que está por diante e vejo uma parede que se ergue intransponível. Há assuntos que nos esmagam, futuros que se adensam, luzes que se apagam. Tenho dificuldade em encontrar sentido para muitas coisas, não vislumbro o sossego de quem acredita que tudo tem um motivo para acontecer. Cada um tem a sua cegueira, esta será a minha.
Ontem, pessoa a quem me liga uma amizade militante falava-me de equilíbrio e aceitação perante os temporais que nos assolam. Olho-me ao espelho e sou tentado pelo pecado da vaidade: independentemente de tudo o que me aconteceu (fosse ou não responsabilidade minha) há uma paz que me invade, impedindo a entrada de raivas, azedumes, rancores. Há um sentimento de libertação e despojamento que pode ser difícil de explicar. Estou certo de que a Fé e a espiritualidade me têm ajudado fortemente, mais ainda do que posso descrever em palavras.
Leio o Evangelho de hoje e retenho, como sempre, um ou dois pormenores que me tocam particularmente. Escolho a imposição das mãos. Talvez não seja o mais importante, mas traz-me lembranças fortes e marcantes.

EVANGELHO – Mc 6,1-6
Naquele tempo,
Jesus dirigiu-Se à sua terra
e os discípulos acompanharam-n’O.
Quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga.
Os numerosos ouvintes estavam admirados e diziam:
«De onde Lhe vem tudo isto?
Que sabedoria é esta que Lhe foi dada
e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos?
Não é ele o carpinteiro, Filho de Maria,
e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão?
E não estão as suas irmãs aqui entre nós?»
E ficavam perplexos a seu respeito.
Jesus disse-lhes:
«Um profeta só é desprezado na sua terra,
entre os seus parentes e em sua casa».
E não podia ali fazer qualquer milagre;
apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos.
Estava admirado com a falta de fé daquela gente.
E percorria as aldeias dos arredores, ensinando.


JdB

04 julho 2009

Outra Vez Eu?

O Adeus sem pressas, um rádio entre os escolhos de obras, o cheiro a tinta, um disco de palma que alguém gravou há dias. Jorge Palma. Sucumbo todas as vezes a esta música. Que boas letras para o seu piano, para as nossas vidas. Que genial, ser escritor-compositor. Até se podem escrever balelas. Não gosto de escrever balelas, embora haja umas bem boas. E já me cansa esta forma escrita que nunca passa da primeira pessoa. Eu, eu, eu, tanto eu. Logo o meu. O que hão-de pensar. E esta preguiça que predomina. Continua eivado dela, militante. Não tem emenda. Quando há que pensar pasma no escuro, sem um esforço para derrubar o muro. É que é escusado. Fia-se que cai do céu. Teima e não quer falar dos outros. Pergunta quem é para tecer a cousa alheia. Diz que ninguém. E das cousas, poucas lhe interessam. Foi almoçar aqui há dias com uma gente que era agradável juntar. Sabem o que disse? Que merda é esta? Literalmente. Estás-te a passar? Trazes-me aqui sem fim específico ou assunto que se aprofunde, sem uma léria que se apresente ao mundo. Tudo a falar ao mesmo tempo, em prosa ó calha, numa corrida. Vimo-nos. Ah, viram-se. Tem sim senhor, a sua graça. Vá lá! Desta respeita, sem a preguiça à espreita. Deve entender de imediato que entre balelas ainda há a carne e o osso. Mas isto vai ter que acabar. Quem? A preguiça? Não. Esta escrita sempre na tua pessoa.

DaLheGas

Músicas dos dias que correm

Porque buscar a terra é ter falhado o céu...

03 julho 2009

todos os dias a mesma meticulosa rotina: levantar às 6.30, esticar as pernas, ainda sentado na cama de corpo e meio, abrir o olhar. de chinelos e ainda em pijama, tratar da higiene matinal com garbo e mão firme. barba finamente escanhoada, a água de colónia importada do oriente - hábito que ficou de outra vida -, o cabelo impecavelmente alinhado. o rosto de clark gable sem o sorriso, poderia quase dizer-se (e diziam-lhe, não raro, nos botecos que frequentava e, ainda mais recorrentemente, nos corredores das bibliotecas). o café e a meia-torrada, preto aquele, quase loura esta. a pouca manteiga e sempre e só manteiga. a colher de açúcar medida com olho clínico, os comprimidos para manter calado o médico amigo. escolher o fato, sempre o fato, entre os 12 naipes escuros possíveis - o preto em todas as suas gloriosas cambiantes, melhor dizendo. as camisas brancas, entre o algodão mais comum, a fina mistura de fibras naturais comprada em londres, o linho solar e setentrional, resquício das antigas índias. gravata escura. sapatos finos e engraxados, polidos, daquela forma que já só as estrelas de cinema usam. um passeio a pé, esticar outra vez as pernas, aquela meia-hora das 7h30 às 8h00, em que a noite passa o testemunho ao dia. voltar a casa, à pequena garagem, resplandecente nos detalhes de limpeza maníaca. sentar, ajustar espelhos e bancos, pela trigésima vez no mês de 30 de dias. dar à chave, acelerar suavemente, confirmar que a mecânica ainda cumpre as leis que a sustentam nos livros técnicos. dar vida ao velho ford galaxy, reluzente como se acabasse de sair de um museu onde fosse estrela maior, e assim merecesse todos os cuidados. navegar pela cidade, o tempo suspendido, o 'suspension of belief' activo (aquele mecanismo que no cinema nos permite acreditar e, assim, sentir o que estamos a ver, sem estarmos sempre a pensar nos inescapáveis mecanismos de simulacro). conduzir com souplesse. imaginar sair da mulholand drive directamente para os altos e baixos de são francisco, daí passar para as curvas do mónaco, para o ruído geométrico de nova iorque - e algures cruzar o rio de janeiro, ali mesmo, do outro lado do rio tejo. a geografia também suspensa. navegar, o acelerador impassível, a caixa de velocidades por usar, o trânsito desviando-se a cada cruzamento, as auto-estradas libertas. olhar pela janela a meia-haste, o rádio obsoletamente belo, sempre na estação certa. a música a meia-voz, a constante adequação da banda sonora ao estado de espírito de cada lugar já lá atrás.. rasto de luz e som, nitidez contra fundo difuso, graciosidade cinematográfica, poetry in motion, como naquela canção antiga do cliff richard ainda jovem e ainda não sir (sim, mais vale ser-se um senhor intenso que mais um sir por extenso - sorrir com o naif humor interior). pelo caminho, reparar nos que choram. e são tantos, tantos. dar novos usos à álgebra, querer ser o senhor da subtracção ou, pelo menos, da mais justa e talvez possível divisão. oferecer o perfil, no fato lustroso e elegantemente escuro, a quem olha de fora aquele carro como nenhum outro. aquele carro - sussurra-se - que navega as ruas, as estradas, sem uma oscilação, uma hesitação, um gesto mecânico brusco. todo ele é continuidade, serenidade, um flow ininterrupto. abrandar nos semáforos, soprar e pegar-lhes as cores do arco-íris, fazer deles uma coisa outra. voltar aos que choram e estender a mão, ainda dentro do carro, curando-os de si próprios. fazer da rotina uma missão, transformar a banalidade na excepcionalidade, fazer, dia após dia, florir os milagres em cada esquina - fazer disso normalidade. conduzir de volta a casa, àquela garagem exacta, à casa frugal. passar na biblioteca ou na universidade ou no boteco - declinações de uma única e mesma coisa. cumprimentar os amigos, os companheiros de rotinas materiais e afagos existenciais. de volta a casa, despedir-se do fiel ford galaxy dos anos sessenta, acariciar o seu corpo encerado, dizer obrigado por nunca me falhares, nem nos dias feriados e nas cinzentas tardes de domingo. entrar em casa, fazer a lida necessária, preparar o jantar, por entre bach e miles davies. na mesa de mistura - discreta marca de modernidade num tempo há muito sem calendário operativo -, criar uma música nova, talvez a voz de Deus. olhar os livros em volta, a segurança dos livros em volta. fechar os olhos, fumar um cigarro aromático como já só no sri lanka se encontra. imaginar mundos. e pensar: se isto não fosse possível, como seria feia a vida. nesse mundo alternativo, haveria talvez um ford galaxy moderno, de novíssima geração. e fatos coloridos, de fibra sintética. haveria música? haveria café forte e preto? haveria aquele tabaco chegado de outros impérios? haveria a frugalidade como verbo? haveria milagres, como os que, dia após dia, acontecem? seria possível curar os outros de si próprios? a resposta, as respostas, nunca as conheceria - sabia isso muito bem. afinal, esse mundo que dentro da sua mente congeminava, era mera especulação. nunca o saberia. mas não se importava, viveria sem nada, em qualquer sítio e em qualquer tempo. aos demiurgos improváveis apenas uma coisa pediria: que não lhe tirassem o velhinho ford galaxy, companheiro de todas as horas. sem ele, como poderia fazer os meus milagres? até sem milagres ele viveria. mas.. e os outros.. mas.. e os outros?adormeceu em paz.

02 julho 2009

A História de um Chapéu (última parte)

No meio de toda esta festa o chapéu passou por todos. Do padre ao barman, não esquecendo as tias velhas e os sobrinhos mais novos. Curiosamente, mesmo antes de se ir embora, o noivo deu com o chapéu do Avô Fausto em cima da sua cabeça. Engraçado as voltas que as coisas dão. Este chapéu, tal como ele, já tinha passado por tanto. Momentos de maior loucura, momentos de grande medo e desespero, momentos em que se sentia perdido, o momento em que decidiu assentar com a sua mulher e finalmente aquele momento. O mais importante de todos. O momento em que finalmente estava em paz consigo mesmo, com o seu destino, com toda a sua vida. O momento em que se casava e partia para uma vida feliz e menos atribulada.

Tinha sido uma longa viagem. Quer para ele quer para o chapéu do Avô. Mas a vida é assim. Nem nunca se sentiria completo se não tivesse passado por tudo o que passou. Mas o que se seguia agora? Para ele, uma vida nova ao lado da sua mulher de quem tanto gostava. Tinha medo de voltar atrás. De sentir falta das noites desvairadas e dos copos com os amigos. Dos namoros de adolescente que pareciam sempre tão reais e importantes. De se descubrir a si próprio. Ia certamente sentir falta dos primeiros anos de namoro... Mas agora entrava numa nova era. Numa fase nova. E quando chegou a esta conclusão olhou para baixo.

Reparou num miúdo novinho. Era um dos seus primos mais novos. Não tinha mais que uns dez ou onze anos. E olhava para ele com uma espectativa enorme. Não. Não era para ele... Era para o chapéu do Avô Fausto. No meio de tanta confusão o pobre míudo ainda não tinha pegado no chapéu. Ele até já era crescido. Já tinha idade para experimentar o chapéu. Aquele chapéu esquisito que o seu Avô tanto gostava. Que o tinha acompanhado por tantas aventuras...

E foi aí que eu recebi das mãos do meu primo o chapéu do meu Avô. O velho chapéu de aba preta do Avô Fausto. Já está muito velhinho. Não o levo para todo o lado como o meu Avô fazia. Mas sempre que quero pensar um bocadinho sobre o que hei-de fazer da vida, ponho o chapéu do meu Avô. Afinal de contas, este chapéu já tinha sido testemunha das coisas mais extraordinárias. Se ele falasse as histórias que contaria... Histórias de coragem, amor e tristeza. Histórias para rir e histórias mais sérias. Histórias boas e histórias menos boas... Mas esta história não é sobre todas essas histórias. Esta história é a história de um chapéu. Um chapéu de aba preta, muito velho e usado. O chapéu do Avô Fausto...

BG

01 julho 2009

Largo da Boa - Hora


Fascinam-me os móveis contadores, com as suas dezenas de pequenas gavetas alinhadas simetricamente na frontaria, adivinhando mistérios e memórias guardados nesses sacrários.
A minha imaginação transporta-me para o interior de cada gaveta, que sei ao alcance de um gesto, cuja memória fechada posso desvendar num suave deslizar da cada uma, bisbilhotá-la, absorvê-la, e voltar a devolvê-la à quietude do silêncio, resguardo e perenidade pelo gesto inverso.
Este poder de abrir, conhecer, e, depois de saciado, devolver ao tempo o que por instantes detive, faz-me sentir amo da História.
A curiosidade em abrir cada uma das gavetas transtorna-me e envolve-me num frenesim compulsivo de percorrer todas e cada uma delas, na busca de encontrar tudo o que quero saber, conhecer ou rever.
Cada gaveta deste meu contador é uma lâmpada de Aladino que me basta afagar para libertar a vida que nela foi encerrada e adormecida até este dia de revisitação.
Este “meu” contador é um desvario no qual ficciono que cada gaveta contém os dados de cada etapa da minha vida, da minha história, dos meus passados e memórias, dos meus sucederes e aconteceres.
Como bom e sólido contador, este móvel que me "guarda" tem tantas gavetas quantos os tempos que a minha vida foi tendo ao longo daquilo que já passou.
Todavia, e ao contrário de um negligente baú, o contador "arquiva" cada tempo acontecido de forma sistemática, ordenada e cronológica, de modo que não se encontra uma amálgama indistinta e desordenada de informação, mas antes, em alinhamento perfeito e por gaveta, tudo quanto releva em cada ciclo vivido.
Abrir cada gaveta é, pois, mergulhar num tempo e num espaço bem delimitado e preenchido com aquilo a que cada fase do vivido corresponde, sem misturas com o antes e o depois dessa vivência.
Esta segregação, por gaveta, de cada fase da vida, não é mais do que um método certo de arquivo do passado, não "se pronuncia" sobre as causas dos eventos guardados e, muito menos, nega a evidente relação de continuidade, de causa efeito, que sempre sucede nos factos que, encadeando-se uns nos outros, são interdependentes, e que no seu conjunto formam a "vida" de cada um, como um único e complexo trajecto percorrido.
O contador e as suas gavetas encerram, de modo ordenado e estanque, ciclos, etapas. São arquivo, e não fonte de explicação dos porquês do que guardam, dos seus circunstancialismos, causas e efeitos. São "museu" e não "História".
Cada passo que damos é marcado pelo passo anterior que demos, e é influenciado por aquele outro que queremos dar. Todos têm de ser vistos em conjunto para avaliar a caminhada, mas cada passo é também, por si só, um instantâneo com vida própria que merece ser destacado, guardado e, sendo caso disso, revisto.
Voltemos, pois, às gavetas.
O primeiro espanto vai para o número de gavetas com que me confronto no "meu" contador. Não tinha ideia de ter vivido tantos ciclos, tantas etapas, tantas épocas susceptíveis de serem compartimentadas para efeitos de arquivo e revisitação.
Estou estupefacto, como seguramente qualquer um ficará quando olhar para o "seu" contador e vir as gavetas que a sua vida gerou.
Amores, amigos, locais, hábitos, pensamentos, convicções, ambições, desejos, interesses, ocupações, hobbies, coisas, casas, viagens, lazeres e actividades profissionais e culturais, entre tantos outros, dão lugar a tantas gavetas no contador, porque nasceram, viveram e desapareceram, formando, por isso, um ciclo específico susceptível de ser guardado numa gaveta própria como passado, vencido por novas vivências substitutivas ou modificativas.
As vidas cumulam variações radicais, a par, naturalmente, de constâncias e perpetuidades.
É espantoso o que ao longo de uma vida vai mudando, como se sucedem os epicentros da nossa existência, os focos da nossa concentração, os espaços e modos do nosso estar, as nossas inspirações e aspirações, as prioridades e urgências, as adaptações e aceitações ao que vai surgindo e o conformar com o que vai desaparecendo.
Em suma, o firmamento de cada um é povoado por muitas estrelas cadentes.
Não existe valoração negativa nesta modificação permanente, de que só nos consciencializamos olhando para o nosso contador e vendo as gavetas alinhadas que guardam cada fase.
A vida é mesmo assim: na aparente continuidade de um repetido quotidiano, vão-se imperceptivelmente tecendo as malhas de um novo destino, de um novo estar e ser, de modificações profundas que só a respectiva consumação e exercício as torna, então, perceptíveis e dominantes.
Mas o espanto não se esgota no número de gavetas; a maior surpresa é, na verdade, o conteúdo de cada gaveta.
De facto, quando de memória, por retrospectiva sensorial, revemos o ciclo contido em cada gaveta, surge-nos uma imagem, uma visão desses tempos e acontecimentos, que é completamente distorcida relativamente à "verdade" que está encerrada e que é libertada quando abrimos o espaço em que foi fechada.
A gaveta guarda o "filme" da realidade, e esse não é coincidente com a imagem recordatória que hoje temos.
As "coisas" não foram assim, não aconteceram do modo que as percepcionamos hoje.
As "coisas" foram como estão guardadas na gaveta que encerra a verdade, porque aí estão fixadas as circunstâncias de tempo, modo, lugar em que ocorreram, as causas e os efeitos, os estados de vida, de alma, os sentimentos e emoções vividos realmente.
Sem a gaveta, ou seja, de memória, distorcemos o passado, porque o observamos com os olhos do hoje, cedendo a parcialidades, conveniências, desejos, interesses, conformando esse passado a uma realidade histórica pretendida – hoje – e não coincidente com aquela que realmente foi e aconteceu.
Idealizamos o passado – convenientemente – exaltando o banal, menosprezando o excepcional, lembrando o acessório, esquecendo o principal, extremando ora o bem ora o mal, protagonizando quando fomos figurantes, secundarizando quando fomos decisivos, absolvendo culpados e condenando inocentes, relativizando o crucial e sublimando o indiferente, imputando à sorte ou má fortuna o que ao mérito ou demérito pertence, vendo direito no que foi dádiva, ou conquista no que foi graça, omitindo e esquecendo culpas e erros próprios, recordando e enfatizando os dos outros (reais ou imaginários), negando ou afirmando o contrário.
Em resumo, reescrevemos para sustentar e credibilizar o hoje que pretendemos, o que não é o mesmo que revisitar o passado como ele sucedeu.
Essa revisitação só é possível abrindo cada gaveta do "contador" de cada um. Por isso, aliás, é que ele se chama "contador".
Aqui chegados, concluo: há muitas vidas na vida de cada um, o passado que esteja e fique na gaveta de cada contador para revisitação objectiva, e não se use a traiçoeira e tendenciosa memória para justificar o presente, ou para limitar a esperança e confiança no futuro.

ATM

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