10 dezembro 2018

Das caligrafias

Há um momento no nosso cérebro - e talvez não seja um momento, mas uma série mais ou menos prolongada de momentos - em que várias informações se misturam: conceitos técnicos, teorias populares, devaneios, leituras dispersas, conversas de amigos. No fundo, como se divagássemos sobre a teoria geocêntrica do universo e já não discerníssemos se isso decorria de uma profecia do Bandarra, de uma das aventuras que a Enid Blyton inventou para cinco amigos ou das aulas de geografia. Acontece-me isso amiúde, e por isso achei importante fazer esta espécie de declaração de interesses antes de me atirar ao tema.

Os japoneses escrevem de cima para baixo; os árabes da direita para a esquerda, o mundo ocidental da esquerda para a direita. Talvez para os primeiros o ponto de partida da vida esteja ao nível do céu, do espírito do intangível e tudo então conflua para a terra; talvez para os segundos o mesmo ponto de partida esteja no futuro que não se sabe se existe e se caminhe para o passado, para o profeta, para Alá, para a revelação; talvez para os terceiros - aquele onde nos enquadramos - a vida seja feita de progresso e com vista ao progresso, e por isso caminhemos para a frente, porque a representação do que foi está normalmente ao lado esquerdo.

Fotografia 1: caneta de tinta permanente na mão de um dextro
   
Fotografia 2: caneta de tinta permanente na mão de um canhoto

Ora, se considerarmos que a caligrafia é, também ela, uma forma de representação de um povo ou de uma determinada cultura, temos então de considerar que a forma como essa cultura escreve - uma espécie de sub-grupos dentro de um grupo maior - é igualmente representativo de alguma coisa. Vejamos então: um dextro (fotografia 1) puxa a caneta. Há um exercício de tracção, como se o agente fosse a força motriz da vida e a escrita viesse a reboque de uma sucessão de iniciativas constantes. Ao contrário, um canhoto (fotografia 2) empurra a caneta, como se quisesse que o instrumento e o produto do labor desse instrumento, que é a palavra, assumissem a dianteira, se configurassem como líder da vida. 

Fotografia 3: caneta de tinta permanente na mão de um canhoto (versão 2)

A fotografia 3 é uma variante da fotografia 2. É um caso real, a que assisto frequentemente nas minhas aulas, numas mãos bonitas e elegantemente juvenis. Neste caso quem puxa o quê? A mão estão ao contrário, o aparo está ao contrário, ali tudo se alia para que a mão não passe por cima de uma tinta fresca, sujando de borrões uma folha imaculada e, quiçá, de gramagem generosa. O que faz que escreve assim? Quem assume a dianteira na relação entre a mão, o espírito, o papel e a caneta? Onde está o passado e o futuro?

JdB

2 comentários:

Anónimo disse...

Talvez por ser licenciado em medicina.
Talvez por 'saber' ver e 'querer' aprender.
Talvez por ter um irmão ambi-dextro que não foi contrariado.

Desde o milénio passado (ainda sem esferográficas) nos EUA ensinavam-se os canhotos a rodarem o papel 90 graus em sentido horário e a escreverem de 'cima para baixo' e no fim da folha começarem nova coluna, à esquerda. Nunca passavam com a mão sobre o que tinham escrito e, daí, nada borravam. Nos seus cérebros os caracteres estavam 'deitados'. Como todas as caligrafias, havia umas bonitas e outras 'marrecas'.

Quem escreve da direita para a esquerda são os povos Semitas (Judeus e Árabes, v.g.).

Os antigos Coreanos escreviam uma linha da esquerda para a direita; e a seguinte da direita para a esquerda. A leitura era sequencial.

Meu irmão escreve, com qualquer mão, da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda. Escreve, sem esforço «em espelho».
Biologia e Cultura: quem dirá o que está certo?

Abraços

JdB disse...

Obrigado pela sua visita.

"Eu", como canhoto, sou a fotografia do meio. Aprendi assim pelos piores motivos (embora com bons resultados) e da pior forma: educado no Colégio Alemão, um canhoto deveria ser pouco "ariano", pelo que urgia contrariá-lo - muitas vezes de forma fisicamente violenta. Aquela posição da mão resolveu-me o problema da tinta fresca por baixo de um pulso.

Ao nível da mão sou pouco ambi-dextro, embora escreva melhor da direita para a esquerda do que, provavelmente, muitos dextros. Globalmente sou uma espécie de ambi-dextro, não porque faça tudo igualmente com ambas as mãos ou pés, mas porque numas actividades sou dextro, noutras sou canhoto. E nunca percebi porquê...

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