26 março 2025

Vai um gin do Peter’s ?

A BELA E O MONSTRO DE CARNE-E-OSSO 

Uma história real, passada no século XVI, inspirou o conto de A BELA E O MONSTRO. Os primeiros registos correspondem a desenhos e descrições feitas por investigadores da época. Em 1740, o livro «La Belle et la Bête» de Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve inspira-se naquele casal improvável. No século XX, chega aos ecrãs de cinema pela mão da Disney e aos palcos da Broadway através do musical de Alan Menken (https://www.alanmenken.com/work/beauty-and-the-beast-stage).  


Cada nova versão foi acrescentando nuances, dando novos cunhos às personagens e conotações diferentes à narrativa, segundo as modas da época. Em 1991, o musical e o filme ainda seguiram o velho padrão do castigo infligido ao príncipe egoísta, transformado em monstro para penar pelos erros cometidos, mas resgatáveis se e quando aprendesse a amar uma bela pura, inocente

Em 2017 (e posteriormente), o novo filme já vinha tingido de wokismo, aproveitando as bizarrias menos atractivas para afirmar o direito à diferença e a desestabilizar o status quo comum, na defesa da supremacia do subjetivo e do indivíduo sobre os demais. Nesse filme musical, a principal áriacoloca a tónica e a maior responsabilidade no olhar de quem percepciona algo ou alguém como espontaneamente repugnante, poupando quem ou o que é observado: «Bittersweet and strange /Finding you can change / Learning you were wrong»(1). A ária flui em dueto, aqui interpretada por Celine Dion e Peabo Bryson: 


Curiosamente, esta interpretação favorável aos mais estranhos (igualmente a advogar uma moral, embora diversa da clássica) encontra algum eco na história original, onde não pôde haver passos de mágica com as transfigurações estéticas que superabundam nas obras de ficção e em raríssimos milagres. O bom acolhimento de todos - todos - todos (diferente de tudo - tudo - tudo), começando pelos desfeados por condições adversas, é por si só um valor maior e insubstituível.  Essa é a história real do pobre bebé, nascido em 1537, com hipertricose – a horrenda anomalia mais conhecida por ‘síndrome do lobisomem’, que se manifesta numa camada espessa de pelugem a cobrir o corpo. Pedro Gonzalez, nado em Tenerife e descendente do soberano local, foi raptado e oferecido como presente para animar a corte do rei francês Henrique II, por ocasião do seu enlace com Catarina de Medici. 

Retratado na vida adulta, depois de uma reviravolta fantástica, que lhe permitiram estudar, ser ilustre,
bem enquadrado na sociedade,
como indicia o vestuário e o próprio privilégio de posar para um pintor.

Felizmente para o pobre Pedro, os estudiosos da corte gaulesa perceberam que aquele bobo peludo era uma criança dotada e sensível, como informaram o rei, que deliberou proporcionar-lhe uma boa educação. Em poucos anos, Pedro tornou-se fluente em 3 línguas, incluindo o latim, considerada a marca d’água das elites cultas. Foi rebaptizado de Don Petrus Gonsalvus, segundo o latim e com direito a título honorífico pela sua linhagem na tribo dos Guanches, sendo presença assídua na corte. 

Aos 36 anos, a rainha resolveu arranjar-lhe uma noiva, escolhendo a filha de uns serviçais, diz-se que entre as mais bonitas da sua geração, por curiosidade científica, segundo constou. A escolha recaiu sobre Catherine, que desmaiou quando foi apresentada a Petrus. Porém, conta-se que a bondade, a erudição, a delicadeza e a boa educação do noivo acabaram por conquistar Catherine, ficando para a história como um casal feliz. Dos seus 6 ou 7 filhos, apenas os dois primeiros foram poupados àquela anomalia.  

Retrato do casal Petrus e Catherine Gonsalvus, onde a mão pousada no ombro era considerado,
à época, um sinal afectuoso. 

Em 1582, com o doutoramento em Direito Canónico, Pedro passou a leccionar na prestigiada Sorbonne, até mudar-se para Itália, onde terá morrido aos 81 anos. Permanecem registos e desenhos sobre a família de Petrus Gonsalvus no Gabinete de Artes e Curiosidades do Castelo austríaco de Ambras, bem como em Arquivos em Roma, em Nápoles e no Vaticano.

A família Gonsalvus foi estudada por investigadores clínicos, constando desenhos na obra do naturalista e botânico Ulisse Aldrovandi, intitulada “De Monstris”. À época, o termo “monstro” não tinha a conotação pejorativa da actualidade. Vivia-se o auge da descoberta de novos mundos, dados a conhecer à Velha Europa pelos navegadores portugueses e espanhóis. Por isso, as notícias de seres exóticos e inéditos, pertencentes a universos desconhecidos, maravilhavam as sociedades europeias, ávidas de novidades e de serem surpreendidas com outras formas de vida.  
Sketch de uma das filhas de Petrus – Antoinetta – da autoria do médico botânico bolonhês Ulisses Aldrovandi, 
legendada como ser humano e envergando indumentárias caras, com uma coroa de flores no cabelo.
Crédito: Universidade de Yale.

Mais um retrato às filhas de Petrus. 

Os olhares atentos e humanos, que deram o alerta a Henrique II sobre a riqueza humana de Pedro Gonzalez, resgataram-no da difícil condição a que parecia condenado, vítima de uma ostracização injusta e ignorante, como aconteceu na sua terra natal. A história aventurosa daquele ser humano com aspecto de lobisomem, mas coração grande, confirma quanto as pessoas fazem a diferença, podendo tornar a realidade mais espantosa do que a melhor das ficções.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
____________________
(1)  Letra de  BEAUTY AND THE BEAST: 

«Tale as old as time
  True as it can be 
  Barely even friends 
  Then somebody bends 
  Unexpectedly 
 
 Just a little change 
 Small, to say the least 
 Both a little scared 
 Neither one prepared 
 Beauty and the beast 

[BIS] Ever just the same 
         Ever a surprise 
         Ever as before 
         Ever just as sure 
         As the sun will rise 
 
Tale as old as time 
Tune as old as song 
Bittersweet and strange 
Finding you can change 
Learning you were wrong 

Certain as the sun 
Certain as the sun 
Rising in the east 

[BIS]  Tale as old as time 
          Song as old as rhyme 
          Beauty and the beast 
Beauty and the beast

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