24 março 2025

Da desracionalização *


Fotografia de Alfred Eisenstaedt

Pressupostos:

(i) A ideia de suspensão da incredulidade tem 200 anos: em havendo um interesse humano e uma semelhança com a verdade num conto fantástico, o leitor ignoraria a implausibilidade da narrativa. 

(ii) Numa conversa que aborda temas da igreja católica, e perante a crítica continuada de um dos participantes, o conferencista diz-lhe: sabe o que me parece que lhe falta? Paixão!

(iii) Afirma Pseudo-Longino (século I): o Sublime não conduz os seus ouvintes à persuasão, mas à exaltação, porque a eliminação imprevisível por ele provocada prevalece sempre sobre tudo o que convence ou agrada.

***

Destes três pressupostos se poderia dizer, numa abordagem repentista, que o seu conjunto intersecção é vazio. De facto parecem ser desconexos e, no entanto, não o são, pois abordam o mesmo tema: a necessidade de desracionalização (sim, sim, a palavra não deve existir) de parte da nossa vida. Schiller, o filósofo alemão que escreveu abundantemente sobre o Belo e o Agradável, achava que as pessoas demasiadamente racionais ou lógicas perdiam a capacidade de ver o Sublime. 

Visto por um certo ângulo, há uma total similitude entre pertencer à Igreja Católica e ler um romance. O que é esse ângulo, esse menor múltiplo comum que liga dois aspectos tão diferentes da história do mundo ou de cada um de nós? A resposta está na suspensão da incredulidade que, é por seu lado, o princípio da desracionalização. Assim sendo,  os pressupostos (i), (ii) e (iii), não só não são disjuntos como se intersectam fortemente.

Suspender a incredulidade é, repito, ignorar a implausibilidade da narrativa; é acreditar que aquilo é verdade, mesmo sabendo que não poderia ter acontecido (ou nós não concebemos possível com o nosso mindset); é deixar-se arrebatar pelo inverosímil, pelo encanto de uma história ou pela forma como ela é contada; é querer ser o herói, ansiar pelo castigo justo do vilão, rir como a criança que ri naquela história, sofrer com os que sofrem, sentir no corpo ou no espírito as dores que são de outrem. Mas suspender a incredulidade é também deixar-se invadir pela sensação de uma descoberta, pela visão do que era até então desconhecido.

O olhar excessivamente racional ou lógico tem tradução num gesto físico concreto, observável a olhos nus: é o olhar que, por demasiado próximo do objecto, detecta facilmente a imperfeição do contorno de uma letra impressa, uma mancha dissonante nos olhos de uma criança pintada a óleo, a implausibilidade de uma paixão que nasce numa franja negligente da violinista. É o olhar que, por demasiado próximo do objecto, vê a inutilidade do incenso que se queima numa cerimónia religiosa, a soturnidade de um coro de Bach a cantar a paixão de Cristo, a incoerência imperdoável e demolidora daqueles que pregam o que não fazem ou o fazem num léxico despropositado. Um olhar excessivamente próximo detecta a pequena falha que desfeia, o pequeno defeito que corrompe, o pequeno desvio que elimina. Não vê o conjunto, o global, a floresta onde tudo acontece. Fixa a árvore, talvez o arbusto, seguramente a erva daninha.

Suspender a incredulidade na leitura de um romance, ou suspender a incredulidade na nossa história com a Igreja Católica é pormo-nos à distância certa, acreditar na plausibilidade do implausível, aceitar o rito como agregador de uma multidão heterogénea, não descurar a importância dos pormenores, acreditar na busca de uma perfeição humanamente incerta. Suspender a incredulidade é deixarmo-nos arrebatar pela paixão ou pela exaltação, abrindo espaço para a entrada do Sublime.
   
JdB       

* publicado originalmente a 6 de Abril de 2016

23 março 2025

III Domingo da Quaresma

 EVANGELHO – Lucas 13,1-9

Naquele tempo,
vieram contar a Jesus
que Pilatos mandara derramar o sangue de certos galileus,
juntamente com o das vítimas que imolavam.
Jesus respondeu-lhes:
«Julgais que, por terem sofrido tal castigo,
esses galileus eram mais pecadores
do que todos os outros galileus?
Eu digo-vos que não.
E se não vos arrependerdes,
morrereis todos do mesmo modo.
E aqueles dezoito homens,
que a torre de Siloé, ao cair, atingiu e matou?
Julgais que eram mais culpados
do que todos os outros habitantes de Jerusalém?
Eu digo-vos que não.
E se não vos arrependerdes,
morrereis todos de modo semelhante.
Jesus disse então a seguinte parábola:
«Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha.
Foi procurar os frutos que nela houvesse,
mas não os encontrou.
Disse então ao vinhateiro:
‘Há três anos que venho procurar frutos nesta figueira
e não os encontro.
Deves cortá-la.
Porque há de estar ela a ocupar inutilmente a terra?’
Mas o vinhateiro respondeu-lhe:
‘Senhor, deixa-a ficar ainda este ano,
que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo.
Talvez venha a dar frutos.
Se não der, mandá-la-ás cortar no próximo ano».

21 março 2025

Música e poema para os dias de ontem e de anteontem

 

Vendaval

Meu coração quebrou.
Era um cedro perfeito;
Mas o vento da vida levantou,
E aquele prumo do céu caiu direito.

Nos bons tempos felizes
Em que ele batia, erguido,
Desde a rama às raízes
Era seiva e sentido.

Agora jaz no chão.
Palpita ainda, e tem
Vida de coração...
Mas não ama ninguém.

Miguel Torga, in 'Diário (1942)'

20 março 2025

Ainda das corridas de touros

 

Mão amiga enviou-me um link para uma notícia que poderão ler aqui: as corridas de touros, tal como as conhecíamos, acabaram na Cidade do México. Estamos mais perto do que um primo, agricultor e ganadero, vaticinava há uns largos anos: as touradas acabarão no espaço de uma geração

Tenho uma relação estranha com as corridas de touros - espectáculo que aprecio muito. Naturalmente avesso à violência sobre animais - até sobre aqueles de que não gosto, como os gatos - não me faz confusão ver um touro a morrer numa praça. Apesar de ser incapaz de dar um pontapé num gato - para me manter nestes felinos - vejo, sem um enorme incómodo, um touro que demora a morrer porque a estocada não foi eficaz. E vejo ainda, sem um sobressalto assinalável, o que se faz ao touro para terminar o processo (com a puntilla) ou para corrigir a ineficácia da estocada (com o descabello).

Dentro de mim há um bárbaro, estou certo. Não me orgulho disso, não me envergonho disso. É o que é, e tudo me sai naturalmente, isto é, não viro a cara ao sangue na arena, não me comprazo com o sangue na arena. Faz parte de um espectáculo que aprecio, que tem raízes antigas, que representa parte de um modo de vida do campo que está a desaparecer da vista e da prática, que opõe homem e animal num combate forçosamente desigual, onde se digladiam bravura e coragem, arte e tragédia.   

As corridas de touros acabarão? Talvez sim, talvez não. No meu tempo haverá sinais pequenos e irreversíveis de que o sim está mais perto. Até lá é apreciar e não entrar em discussões sobre o tema.

JdB 

18 março 2025

Textos dos dias que correm

Viver sem Sofrimento

Os prazeres ardentes são momentâneos, e custam graves inconvenientes. O que devemos cobiçar é viver sem sofrer muito. Aquele que sofre foge-lhe uma parte da existência. O mal é nocivo à plenitude da vida por que é sempre causa do aniquilamento. Quando o sofrimento nos ameaça, e receamos que as forças defensivas nos faleçam, suspendem-se os outros movimentos do nosso coração, e então pouco há que esperar de nós, por que se torna incerto o nosso destino. O bem-estar de grande numero de individuos, que vivem retirados das agitações, depende mais da sua disposição habitual de pensamento que da influência de causas exteriores. A crise moral pode surpreendê-los e magoá-los momentaneamente; mas a força dos acontecimentos é meramente relativa. Os sofrimentos são mais ou menos intensos, conforme a época em que nos oprimem. O que ontem poderia aniquilar-me, levemente me incomoda hoje. Cinco minutos de reflexão me bastam. A maior parte dos objectos encerram e presentam, indirectamente pelo menos, as propriedades oportunas. Pô-las em acção é no que assenta a industria da felicidade. Há aí que farte instrumentos fecundos de prazeres úteis; ponto é saber meneá-los. Quem não sabe trabalhar com eles, fere-se. Discernir, isto é, reflectir é o que mais importa... 

Camilo Castelo Branco (cujo duplo centenário de nascimento se lembrou no passado dia 16), in 'Cenas Inocentes da Comédia Humana (1863)'

17 março 2025

A Porta do Cerco *

Porta do Cerco, Macau

O estabelecimento de ensino universitário era reconhecido a nível mundial: o rigor e competência da classe docente, a taxa de empregabilidade, o rácio oferta / procura, a ausência de escândalos, a sobriedade das instalações não obstante a sua dimensão, os princípios de ética subjacentes às matérias ministradas e às conversas regulares entre professores e alunos. 

A escola, malgrado ser teoricamente mista, tinha regras muito próprias, nunca violadas: apesar do internato, dentro das instalações (porque fora delas cada pessoa seguia códigos próprios) rapazes e raparigas nunca se cruzavam, nunca se viam, estavam impossibilitados de qualquer contacto físico ou verbal. E no entanto frequentavam a mesma escola. Se era um professor a ministrar uma certa cadeira, na sala de aula só havia rapazes, sendo que as raparigas acompanhavam a matéria dada por meio de um sistema que as impossibilitava de ver os colegas e o docente; a inversa também se aplicava.

A propina dos rapazes era elevada. A das raparigas era muito baixa, sendo compensada com actividades de carácter doméstico - confeccionar a comida, lavar e engomar a roupa, pôr e levantar a mesa, fazer as camas. Nunca, mas nunca, vendo os destinatários das camisas que tratavam, dos lençóis que esticavam, dos rissois que fritavam. Um sistema de câmaras comunicantes, de portas de sentido único, de vigilância permanente garantiam a segregação absoluta. Uma espécie de apartheid ultra-rigoroso englobando todos os sentidos. Se o regime de internato lhes fosse imposto desde o dia em que nascessem, poucos saberiam que existia algo chamado sexo oposto

Maria frequentava esta escola há dois anos. Raramente ia a casa, pois calcorrear 500 km, qualquer que fosse o meio de transporte, não era coisa fácil - menos ainda barata - pelo que ficava por Lisboa, frequentando alguns bares ou discotecas mais decentes com colegas da escola. Num dia de Inverno rigoroso, a poucos dias do início do Advento, cruzou-se com o Manuel num bar da moda. Ficou estarrecida com o impacto. Não percebeu se era do cabelo grisalho num rapaz jovem, da boca carnuda, das pernas esguias, do tronco bem delineado numa roupa corriqueira, dos olhos peregrinos. Ou talvez fosse, apenas, a visão de um homem no final de um período de estudos e exames onde só se cruzava com mulheres. Talvez fosse tudo isso, ou ainda de um cocktail que a haviam obrigado a provar.

Nessa mesma noite Maria deitou-se a chorar. Na manhã seguinte levantou-se a chorar. Não era a primeira experiência sexual dela. Mas num carro? Com um desconhecido que lhe dizia que ia para Macau de férias, onde os pais trabalhavam? Não era possível! E no entanto tinha acontecido. Pior que tudo, divertira-se, gostara, apetecera-lhe repetir embora a probabilidade fosse baixa, já que o bar ficava fora do seu circuito. Voltou a chorar e agarrou um cesto de roupa suja para por na máquina de lavar. Foi então que se confrontou com um par de boxers de onde sobressaía uma fotografia: a Porta do Cerco e a frase de Camões: "a Pátria honrai, que a Pátria vos contempla...". Percebeu tudo ao identificar um cheiro que também era dela...

JdB           

* publicado originalmente a 10 de Setembro de 2015

16 março 2025

II Domingo da Quaresma

 EVANGELHO – Lucas 9,28b-36

Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago
e subiu ao monte, para orar.
Enquanto orava,
alterou-se o aspeto do seu rosto
e as suas vestes ficaram de uma brancura refulgente.
Dois homens falavam com Ele:
eram Moisés e Elias,
que, tendo aparecido em glória,
falavam da morte de Jesus,
que ia consumar-se em Jerusalém.
Pedro e os companheiros estavam a cair de sono;
mas, despertando, viram a glória de Jesus
e os dois homens que estavam com Ele.
Quando estes se iam afastando,
Pedro disse a Jesus:
«Mestre, como é bom estarmos aqui!
Façamos três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias».
Não sabia o que estava a dizer.
Enquanto assim falava,
veio uma nuvem que os cobriu com a sua sombra;
e eles ficaram cheios de medo, ao entrarem na nuvem.
Da nuvem saiu uma voz, que dizia:
«Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O».
Quando a voz se fez ouvir, Jesus ficou sozinho.
Os discípulos guardaram silêncio
e, naqueles dias, a ninguém contaram nada do que tinham visto.

13 março 2025

Textos dos dias que correm

Foram tempos magníficos, foram tempos tenebrosos, fui era da sabedoria, fui era da estultícia, foi a época das convicções, foi a época da incredulidade, foi a idade da luz, foi a idade das trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, nada tínhamos diante de nós, íamos todos os direitos para o Céu, íamos todos direitos em sentido contrário - em suma, aquela época assemelhava-se tanto à presente que algumas das suas eminências mais exuberantes insistiam que apenas a poderíamos adjetivar, para o bem ou para o mal, lançando mão do grau superlativo.

Charles Dickens, in História em Duas Cidades

12 março 2025

Vai um gin do Peter’s?

 FILME «AINDA ESTOU AQUI»(1)

Grande proeza, o filme brasileiro de Walter Salles ter ganho o Óscar do Melhor Filme Estrangeiro, além de Baftas, Globos de Ouro e outros galardões significativos da Sétima Arte! 

O filme é tão denso, que vai muito além da forte dimensão política que também tem, como denúncia viva da crueldade da ditadura militar (de 1964 a 1985). O golpe militar de Abril de 1964 pôs o Brasil a ferro-e-fogo, sobretudo durante a primeira década do regime e, mais ainda, sob os impiedosos «Anos de Chumbo» da presidência do militar Emílio Garrastazu Médicim, de 1969 a 1974. Precisamente, o encarceramento oficioso e não-assumido de um ex-Senador da oposição – o Eng. Rubens Paiva (1939 até 21.Jan.1971, nas masmorras da ditadura) – ocorreu durante o mandato de Médici e dá o mote ao filme de Salles, que acompanha a história da família do encarcerado. Foi bem real a reviravolta tremenda no dia-a-dia muito alegre dos Paiva, que viviam numa casa animada de amigos e de festas com jardim e vista para o mar. Dói mais ver pessoas de carne-e-osso, com nome, a sofrer. 



Eunice no auge da sua carreira profissional.

Porém, a história narrada centra-se mais na mãe de família do que naquele marido e pai opositor da iníqua autocracia reinante, levado de casa à frente dos filhos menores, numa pacata tarde de 20 de Janeiro de 1971. Segundo se apurou décadas mais tarde, a sua prisão deveu-se a um erro dos serviços secretos, que pensaram ser ele o guerrilheiro conhecido pelo nome de guerra “Adriano” e muito próximo do líder da luta armada ao regime – o ex-militar Carlos Lamarca. Este erro tremendo foi fatídico para o promissor engenheiro civil. Para a história ficou também o silêncio cobarde e indesculpável dos sucessivos Governos, que demoraram décadas a emitir a certidão de um óbito ocorrido nas suas masmorras, por morte violenta! 

O ponto de vista cinematográfico é dado por um desses filhos, Marcelo, que quis escrever sobre aquele período tão difícil da sua vida, para memória de uma fase crítica do próprio Brasil. Esse livro autobiográfico dá corpo à obra de Salles, adoptando o foco do filho Marcelo, autor e colaborador dos argumentistas: «Quando comecei a escrever o livro, [a minha mãe] estava viva ainda. O que foi importante para mim foi o meu ponto de vista em relação ao que aconteceu, em relação à descoberta de que a minha mãe era uma grande heroína, e não que o meu pai era o grande herói. A minha mãe, que era uma viúva com cinco filhos, que não demonstrava afeto, era uma pessoa sempre presente e que fazia tudo para nos deixar uma vida boa. Inclusive sofria sozinha para que não tivéssemos nenhum tipo de rancor na vida. Ela foi muito generosa com a gente, de sofrer assim para que pudéssemos ter uma vida sem nenhum tipo de trauma. Isso é um gesto corajoso».  

As primeiras imagens de «AINDA ESTOU AQUI» referem, por alto, o último escândalo político, que endurecera a luta do regime contra as organizações da oposição militarizada, após o rapto do Embaixador da Suíça, a 7 de Dezembro de 1970. Mas não clarificam que o diplomata foi mantido prisioneiro durante 40 dias, menos ainda que esteve à beira de ser assassinado no cativeiro. Numa cena do filme, trocam-se umas piadas entre os amigos dos Paiva, desvalorizando a longa prisão do suíço. E menciona-se, ao de leve, que um dos seguranças da Embaixada foi baleado pelos raptores. Terá sido mais um a deixar pendurada uma viúva e menores sem pai, mas sem tempo de antena para fazer dar voz a essa injustiça… Também não se contextualiza – nem seria a intenção de um filme sobre a vida atribulada de uma ‘mãe coragem’ – que os raptos de diplomatas eram prática corrente na América Latina dos anos 60, para servirem de moeda de troca na libertação de opositores (vários por atentados terroristas homicidas e por danos reputacionais graves para qualquer país) às ditaduras, sobretudo de direita, que proliferavam no Novo Mundo. Só no Brasil houve 4 raptos, com a morte de seguranças dos respetivos diplomatas (vítimas colaterais inocentes, alheias ao Governo): o Embaixador dos EUA (1969), o Cônsul-Geral do Japão (11.Março.1970), o Embaixador da Alemanha (1970) e o Embaixador da Suíça (cativo de 7.Dez.1970 até 16.Jan.1971). Reconhecendo os militares a menor relevância de um representante suíço, pouco cederam à lista de prisioneiros exigida pelos raptores, intencionalmente para pôr cobro à onda de raptos a diplomatas, como veio a suceder.  Por tudo isso, o suíço estava votado a ser morto pelos terroristas, mas valeu-lhe a sua enorme simpatia e boa disposição, acabando protegido pelo chefe dos raptores – o ex-militar Carlos Lamarca. A história deste Embaixador, a quem os carcereiros começaram a chamar de “tio”, também daria um filme. Depois de solto, foi interrogado pelas autoridades para o reconhecimento dos raptores, mas não colaborou, dando a desculpa (falsa) de todos lhe terem aparecido encapuçados. Só mais tarde se soube pelos terroristas, que os animara com o seu humor, ajudando a descomprimir o ambiente tenso nas difíceis negociações com o Governo. Até se converteu no melhor parceiro de canasta do mítico Lamarca. Como último recuerdo dos guerrilheiros, na hora da despedida, um dos chefes (Alfred Sirkis) ofereceu ao Embaixador um disco de Joan Baez com uma dedicatória sua!  

Alfred Sirkis, o guerrilheiro fluente em inglês e considerado gentil.

Imagens após a libertação do diplomata Giavanni Enrico Bucher, a 16.JAN.1971, que quase esquecera os cigarros num dos bancos de trás,
numa das mudanças de carros feita em acelerado, para os sequestradores despistarem as autoridades.
Foi Embaixador em Lisboa, de 1975 a 1978, em pleno PREC!

Já muito se escreveu sobre o filme e igualmente sobre a figura maior que foi Eunice, forçada pelas circunstâncias. Também esteve presa e sofreu a tortura do sono (pelo menos), durante 12 infindáveis dias, além da filha de 15 anos, esta por 24h. 

O momento-chave onde se antevê a sua grandeza invulgar, que não cede a agendas políticas (ainda que muito legítimas), quando podem beliscar a estabilidade dos filhos, aconteceu na fotografia tirada depois do desaparecimento do marido. Quando o fotógrafo pede ao grupo para pararem de rir de modo a transmitirem o desgosto recente, a mãe contradi-lo e explica que a família Paiva festeja a vida e a alegria. Depois, anima os filhos a continuarem a rir-se:  

Mãe e filhos Paiva fotografados para a revista Manchete, em 1971, com o sorriso que o fotógrafo desaconselhava
Também o realizador conheceu Eunice como mãe dos seus amigos: «Eunice era alguém na vida real e no filme, que arquitetou formas de resistência inéditas, e uma delas que é bastante única é que sempre que pediam à família, sabe, para chorar ou serem retratados como uma família triste, ela articulava e oferecia exatamente o oposto, de serem retratados como uma família sorridente. Ou seja, ela nunca permitiu ser retratada como parte de um melodrama. Ela se recusou a isso. (…) Considero a [Fernanda Torres] coautora do filme por inteiro. Ela teve a dádiva e a inteligência emocional necessárias para retratar aquela mulher extremamente contida, mas com uma imensa chama, uma imensa força interior, porque a Eunice é isso: um vulcão que está aceso mas não derrama. E diz-nos tanto com tão pouco.»

Vão no mesmo sentido as palavras da actriz Fernanda Torres ao comentar a dificuldade em personificar aquela mulher profunda, subtil, maximamente sóbria, nos antípodas da tarefa de exteriorização pedida a um actor: «Eunice tem 5 filhos. Então, ela não pode sentar e chorar, ela não pode… Ela não tem permissão para isso. É como se fosse uma figura grega, uma mãe grega. Ela encara a tragédia e a única maneira para que ela siga em frente, crie aqueles filhos e salve a inocência deles é simplesmente dizer ‘sorriam e sigam em frente’. E eu nunca tinha trabalhado assim, porque normalmente, como atriz, você quer demonstrar emoções, e no caso da Eunice, você tem que contê-las. E o poder disso é que o público fica sentado na beirada da cadeira tipo, ‘Por favor, faça alguma coisa’. Então há algo que o público sente com você, que você não está sentindo e mostrando a eles, eles estão sentindo por você. E acho que isso é muito próximo da tragédia grega. E sobre não contar às crianças: como você pode dizer a uma criança que seu pai foi torturado e morto pelo Estado? É algo insuportável. Por isso essa história é tão poderosa. É uma família normal. (…) Tentei ser fiel a essa grande mulher chamada Eunice Paiva, que foi criada para ser a dona de casa perfeita dos anos 50. Ela era a grande mulher por trás do grande homem e então essa tragédia aconteceu na vida deles, e ela ficou viúva com cinco filhos, e depois voltou para a faculdade de direito. E, então, eu estava tentando ser fiel a ela, não fazendo da vida dela um melodrama. (...) É algo que eu e Walter [Salles] dissemos, que tínhamos de ser fiéis à dignidade dela.» 

É crucial o empenho de Eunice em devolver a normalidade a uma casa de família ensombrada, sempre vigiada por capangas do regime, impondo saídas reduzidas ao essencial e cada passo na rua controlado ao milímetro. Mau demais! Do marido e pai zero notícias, a começar pelo silêncio ignominioso do Governo, que se demarcou daquele desaparecimento grotesco. Assim somaram novo crime à prisão ilegal e brutal. Valeu que alguma imprensa estrangeira noticiou o caso, tendo presente a proeminência do Eng. Rubens Paiva. E esforçou-se por pressionar o regime, mas como este se desresponsabilizou do “incidente”, as denúncias ficaram a pairar no limbo, sem destinatário. Tudo sinistro, com excepção da grandeza de Eunice, que elegeu como prioridade proporcionar aos 5 filhos uma vida plena, saudável, que os ajudasse a crescer (quase) sem o peso da perda de um pai em condições ultrajantes. Não hesitou em vender a casa apetitosa do Rio de Janeiro e mudar-se para S.Paulo, onde tinha alguma família, o que lhe permitiria estudar Direito. Assim fez, tornando-se numa advogada famosa, especializada nos direitos indígenas.     

O título corresponde a uma tirada da ‘mãe coragem’ que, já em idade avançada e semi alheada pelo Alzheimer, reage a uma conversa dos filhos adultos sobre o desaparecimento do seu marido, lembrando-lhes que «ainda estou aqui». Quando se tem por perto familiares com este tipo de demências, reconhece-se muito bem o alcance maior das brechas de lucidez nessas pessoas, sempre seres humanos por inteiro, ainda que desmemoriados, enfraquecidos, dependentes.  De facto, a humanidade é capaz do melhor, por vezes também do pior, o que torna mais luminosos os gestos bondosos e positivos!  Ainda bem que Eunice esteve ali e Salles quis imortalizá-la no cinema.  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

_____________

(1) FICHA TÉCNICA
Título original: AINDA ESTOU AQUI
Título traduzido em inglês: I’m Still Here
Realização: Walter Salles
Argumento: Murilo Hauser e Heitor Lorega, a partir do livro homónimo de Marcelo Rubens Paiva
Co-produção: Arte France Cinéma, Conspiração Filmes, Globoplay
Banda Sonora: Warren Ellis
Duração: 135 min.
Ano: 2024
País: Brasil e França
Elenco:
Fernanda Torres – a mãe Eunice Paiva
Selton Melo – o pai Paiva 
Fernanda Montenegro – a mãe Eunice no final de vida
Valentina Herszage – Vera, a indomável filha mais filha

 


11 março 2025

Dos touros em Olivença

A convite de gente que me é próxima, voltei a Olivença - e não para repor a justiça dos factos e colocá-la de novo sob a alçada de Portugal. Em bom rigor, conversando com vizinhos de bancada na praça local, e falando deste tema, um cavalheiro de Alcochete (gente que aprecia o azul e branco das bandeiras) dizia-me com acerto: deixe lá Olivença ficar em Espanha. Sempre é da maneira que podemos vir cá ver touros de morte. Retomo o fio à meada: voltei a Olivença para ver uma novilhada e uma corrida de touros: uma manhã e um tarde bem passadas, ainda que com ameaça permanente de chuva, que foi caindo aqui e ali. 

Olga Casado, uma novilheira espanhola de 22 anos. 

Olga Casado, a única rapariga / senhora que vi tourear a pé
Para uma pessoa como eu, cheio de apreço por rituais e tradições (uma coisa não vai totalmente sem a outra) ir aos touros a Espanha é um festim: da entrada supersticiosa dos toureiros em praça ao convívio entre pessoas na bancada, passando pela coreografia dos vários intervenientes na arena ao longo das lides, tudo obedece a uma tradição e / ou a um ritual, seguramente com décadas, se não séculos. É importante, por isso, estar-se atento (quem aprecia, é claro) a mais do que à lide propriamente dita: o agradecimento discreto do bandarilheiro junto ao burladero, a música que deve tocar quando o novilheiro bandarilha, o pasodoble que é uma tradição no último touro de cada uma das partes, etc.  

Sendo uma praça de 3ª, Olivença é generosa nos prémios: quase toda a gente é premiada com uma orelha (por vezes duas) e música abundante. A população gosta e o director da corrida prefere a generosidade ao rigor. 

Sorte de gaiola de Tomás Bastos (Portugal) um dos novilheiros em praça, e que cortou 4 orelhas 
Olivença em dia de corrida de touros provoca um estranho sentimento em mim. Como dizia hoje a quem me convidou, talvez não haja recinto de espectáculos mais desconfortável do que a praça de touros de Olivença: é pequena, acanhada, com um espaço menos que decente para uma pessoa razoável colocar o seu corpo. Requer um encaixe perfeito entre pessoas, e, quem está na fila acima da nossa tem de abrir as pernas para permitir o ajuste. E no entanto, apesar do desconforto, pouco ou nada me importa: a cada 15 ou 20 minutos (tempo médio de uma lide) todos nos levantamos, e esticamos as costas ou os braços, que não há espaço para mais. E o gosto de ir a Olivença - também na companhia de quem vou - tudo compensa. 

Para o ano lá estarei - em Deus dando-me saúde e em não se acabando as corridas... Parafraseando Chico Buarque, foi bonita a festa, pá.

JdB  

09 março 2025

I Domingo da Quaresma

 EVANGELHO – Lucas 4,1-13

Naquele tempo,
Jesus, cheio do Espírito Santo,
retirou-Se das margens do Jordão.
Durante quarenta dias,
esteve no deserto, conduzido pelo Espírito,
e foi tentado pelo diabo.
Nesses dias não comeu nada
e, passado esse tempo, sentiu fome.
O diabo disse-lhe:
«Se és Filho de Deus,
manda a esta pedra que se transforme em pão».
Jesus respondeu-lhe:
«Está escrito:
‘Nem só de pão vive o homem’».
O diabo levou-O a um lugar alto
e mostrou-Lhe num instante todos os reinos da terra
e disse-Lhe:
«Eu Te darei todo este poder e a glória destes reinos,
porque me foram confiados e os dou a quem eu quiser.
Se Te prostrares diante de mim, tudo será teu».
Jesus respondeu-lhe:
«Está escrito:
‘Ao Senhor teu Deus adorarás,
só a Ele prestarás culto’».
Então o demónio levou-O a Jerusalém,
colocou-O sobre o pináculo do Templo
e disse-Lhe:
«Se és Filho de Deus,
atira-te daqui abaixo,
porque está escrito:
‘Ele dará ordens aos seus Anjos a teu respeito,
para que te guardem’;
e ainda: ‘Na palma das mãos te levarão,
para que não tropeces em alguma pedra’».
Jesus respondeu-lhe:
«Está mandado:
‘Não tentarás o Senhor teu Deus’».
Então o diabo, tendo terminado toda a espécie de tentação,
retirou-se da presença de Jesus, até certo tempo.

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