19 fevereiro 2025

Poemas dos dias que correm

As Empregadas Fabris

Arregaçam a manhã (as empregadas fabris)
pernas como tesouras
recortando a calçada
ferem o lenho da mesa com
sortes
de boletim. Uma sirene as trouxe aqui
(às
empregadas febris)
ancas de esboço perfeito sob
vestes de operária
tocam umas nas outras como
inda fossem meninas mas a
delas que vai noivar já
traz o primeiro a caminho. E
quando o cigarro se apaga
(ou a
cerveja se escoa) o
que resta é a dor da tarde
que nem esta chuva afaga
o
gasóleo dos rapazes que
lhes cantam a cantiga e
as tomam pela cintura. Um
foguete fecha a festa
(pelo lado de dentro da coxa)
há nelas a incerteza de
não saberem se são
incompletamente infelizes.

João Luís Barreto Guimarães, in 'Rés-do-Chão'

17 fevereiro 2025

Das dúvidas *

 

Fotografia de JMAC, o homem de Azeitão 

As minhas dúvidas formam um sistema.

No seu livro Atlas do Corpo Humano e da Imaginação (Caminho, 2013), Gonçalo M Tavares cita Wittgenstein na frase que encima este texto. O assunto interessa-me. Vivemos, metaforicamente, numa época de pontos de exclamação, não de pontos de interrogação. Nas reuniões, nos encontros sociais, nas conversas, parece não haver lugar para a pergunta ou para a dúvida. Não parecemos interessar-nos muito, nem pela vida dos outros, nem pelas grandes questões que nos poderiam interpelar interiormente. Optamos por afirmar, como se perguntar encerrasse uma dimensão de fragilidade intelectual que nos envergonha exibir. Ou uma coscuvilhice pelas vidas alheias que fingimos não ter, sei lá eu...

Escreve Steiner, ainda referido por Gonçalo M Tavares: não há, na verdade, muito a ganhar por perguntar, mais uma vez, qual a quilometragem até à lua ou qual é a fórmula para fazer ácido clorídrico. Nós sabemos as respostas. (…) Não há respostas terminais, resolubilidades últimas e formais para a questão do sentido da existência humana ou do significado de uma sonata de Mozart ou do conflito entre consciência individual e condicionamentos sociais.

O que pode ainda descobrir aquele que sabe sempre as respostas? Não falo de informação, mas de conhecimento. Não interessa tanto o nosso produto interno bruto ou que propostas se fazem para baixar o iva da restauração, por mais importantes que sejam estes temas. Saber isso é saber o que sabem todos os outros, é saber o que está disponível nas enciclopédias ou nos jornais da especialidade. O essencial, afirma ainda GMT, é o que nunca termina de ser respondido. Por isso temos de continuar a perguntar, como uma actividade que tende para o infinito.

Noutro plano da nossa existência, estou ingenuamente certo do que digo: a grande partilha entre as pessoas faz-se por via da pergunta, da dúvida, da inquirição, da reflexão em voz alta. Perguntar e ouvir são actividades emocionais, mais do que cerebrais porque, em vez de indicarem um caminho, convidam o outro para uma caminhada conjunta. Mais do que saber todas as respostas, é importante fazer todas as perguntas. E só o sábio (ou aquele que a isso aspira) pergunta, porque só o sábio reconhece a sua ignorância.

Hesitar é um sinal de fraqueza nos dias que correm. Precisamos de afirmar à saciedade (e também à sociedade) que sabemos o que queremos e para onde vamos. Não pedimos ajuda, não queremos uma opinião, não desejamos uma parcela ínfima do coração ou da inteligência alheia para nos indicar uma luz. Afirmar é, talvez, uma das palavras do ano. Ou da década. Ou, quem sabe, da geração. Porque não há quem não o faça, sem saber que afirmar por sistema é não sair do mesmo sítio, é não circular em redor do que não tem resposta, do que não está ainda decidido, do que ainda nos confronta (…).

GMT cita Steiner que explica uma ideia fundamental de Heidegger: a errância, a peregrinação em direcção ao que é digno de ser questionado, não é aventura e sim voltar-a-casa.

JdB

PS: alertam-me que a profusão de citações (quatro…) pode conferir ao texto uma presunção bacoca. Em minha defesa alego que estou a ler o livro do GMT e que, no espaço de duas ou três páginas, ele cita estes filósofos. Optei por inclui-los porque as frases compunham o meu texto. Em bom rigor, nunca li Heidegger ou Wittgenstein.

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* publicado originalmente a 13 de Dezembro de 2013

Em memória de Carlos Paredes

Carlos Paredes teria feito ontem 100 anos e era considerado por muitos (por todos?) o maior guitarrista português. Admito que sim, não tenho competência para tanto. Na minha ignorância musical sempre achei que ele era o Astor Piazzolla do fado: se eu quiser ouvir fado (e não apenas a guitarra portuguesa) não é ao Paredes que recorro; e se eu quiser ouvir tango (e não apenas o bandonéon) não é ao Piazzolla que recorro.  

Verdes Anos, talvez uma das suas obras mais conhecidas, foi composta em 1963 para o filme com o mesmo nome. O poema de Pedro Tamen, também com o mesmo nome, casa bem com a música. Infelizmente, não encontrei nenhuma versão cantada que fosse suficientemente do meu agrado, pelo que deixo apenas o texto.

JdB

***

Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…
Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos...

Teus olhos não eram paz,
não eram consolação.
O amor que o tempo traz
o tempo o leva na mão.

Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!

No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…

O que em nós mal começava
não teve nome de vida:
era um beijo que se dava
numa boca já perdida. 

Pedro Tamen, in Retábulo das Matérias (1956-2001)

16 fevereiro 2025

VI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 6,17.20-26

Naquele tempo,
Jesus desceu do monte, na companhia dos Apóstolos,
e deteve-Se num sítio plano,
com numerosos discípulos e uma grande multidão
de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e Sidónia.
Erguendo então os olhos para os discípulos, disse:
Bem-aventurados vós, os pobres,
porque é vosso o reino de Deus.
Bem-aventurados vós, que agora tendes fome,
porque sereis saciados.
Bem-aventurados vós, que agora chorais,
porque haveis de rir.
Bem-aventurados sereis, quando os homens vos odiarem,
quando vos rejeitarem e insultarem
e prescreverem o vosso nome como infame,
por causa do Filho do homem.
Alegrai-vos e exultai nesse dia,
porque é grande no Céu a vossa recompensa.
Era assim que os seus antepassados tratavam os profetas.
Mas ai de vós, os ricos,
porque já recebestes a vossa consolação.
Ai de vós, que agora estais saciados,
porque haveis de ter fome.
Ai de vós, que rides agora,
porque haveis de entristecer-vos e chorar.
Ai de vós, quando todos os homens vos elogiarem.
Era assim que os seus antepassados
tratavam os falsos profetas.

14 fevereiro 2025

Da tristeza do mundo

Começara a nevar outra vez. Olhou ensonado para os flocos prateados e escuros que caíam obliquamente no campo luz do lampião. Era chegada a hora de empreender a sua viagem para ocidente. Sim, os jornais tinham razão: nevava em toda a Irlanda. A neve caía em toda a parte da escura planície central, nas colinas despidas de árvores, caía suavemente sobre Bog of Allen e, mais para o ocidente, caía levemente sobre as ondas escuras e tumultuosas do Shannon. Caía, também, em todos os pontos do cemitério solitário na colina, onde Michael Furey estava Sul sepultado. Amontoava-se, espessa, nas cruzes e lápides tortuosas, nos espiões do pequeno portão, nos estéreis pinheiros. A sua alma desfalecia languidamente enquanto ele ouvia a neve cair suavemente em todo universo e cair suavemente, como a descida do seu fim verdadeiro, sobre todos os vivos e os mortos.

James Joyce in Os Mortos

***

Recebo informações provenientes de pessoas que me são próximas, ainda que recentemente, relativamente ao estado crítico de uma criança que, parece-me, terá 3 anos. Nenhuma pergunta que se faça tem, em bom rigor, o menor interesse. Saber porquê, como e quando aconteceu, tem a dimensão das coisas irrelevantes. Falamos de uma criança de três anos que morrerá de uma condição súbita e estranha que a atirou para esta situação. Não foi um acidente estúpido, a incúria de um automobilista, a queda de uma árvore no decurso de uma brincadeira. 

Na véspera destas terríveis notícias eu entrevistara Pais que perderam filhos para o cancro, no âmbito do meu doutoramento. Numa das últimas conversas com estes Pais enlutados, ao perguntar-lhes a motivação para falarem de um tema doloroso durante 2 horas, uma mãe disse-me: queria estar presente para olhar para si e perceber como se sobrevive quase 24 anos à morte de uma filha pequena. Eu achei que não se conseguia

Não consigo deixar de relacionar tudo isto: o meu próprio caso, o caso do Pai (de quem eu gosto muito) desta criança, dos Pais que entrevistei e que lutaram durante dois, três, cinco anos contra uma doença traiçoeira para depois verem os filhos morrer, alguns em sofrimento. O que se diz a estes Pais? Quais as palavras ideias para os confortar naqueles momentos tão difíceis, que permanecem difíceis ao fim de anos? Para os que são crentes, como não repetir a frase do Papa Bento XVI em Auschwitz: onde estava Deus naqueles dias? Um dia destes, quando for mais oportuno, escreverei a este Pai que perderá a filha em breve. Com que palavras se dá um abraço, sabendo que nada reduz este desgosto?

Há um movimento internacional que pretende acabar - e parcialmente muito justamente - com as metáforas associadas ao cancro infantil: heróis, luta, guerreiros, vencer, armas. Quer-se que a linguagem seja mais neutra e que, ao referir-se aos que vencem a doença como heróis, não ponha uma carga tão negativa sobre os que não venceram (outra metáfora) a doença. Mas ontem, ao falar com alguém sobre este tema, só consegui dizer: até ao final da semana a criança terá partido. Como é que se associa morte e criança de três anos se não recorrermos a uma metáfora?

Quando esta criança partir, o mundo ficará seguramente mais triste. 

JdB    

 

13 fevereiro 2025

Poemas dos dias que correm

 a nossa geração 

às vezes,
é como se conduzisse um carro,
mantendo um olho na estrada que leva ao futuro
e o outro no retrovisor. 

emparedado, entre uma coisa e outra,
fácil é ficar estrábico (que me desculpem os estrábicos),
até porque não podemos deixar de continuar
a olhar também para o painel de instrumentos, 

seus manómetros, indicadores, luzinhas vermelhas a piscar,
toda uma panóplia de tempos presentes
reclamando atenção
e urgência. 

inspiro-me na beat generation,
para brincar aos poemas,
na vã esperança de que não me saia ao caminho
uma outra geração (a nossa, temo bem): 

the beaten generation.
outra forma de dizer que também nós (nos) perdemos. 

gi. 

12 fevereiro 2025

Vai um gin do Peter’s ?

 AUSCHWITZ (II)  E BRUCKNER

Daqui a semana e meia, na Sexta-feira 28 de fevereiro, às 19h00, a Gulbenkian passará em sinal aberto, nas suas plataformas digitais, o concerto com a Sinfonia n.º 7 de Anton Bruckner (1824-1896) e o «Prelúdio e Morte de Isolda» de Richard Wagner – o compositor alemão preferido do Führer.  

Nascido numa aldeia austríaca, Bruckner também foi instrumentalizado pelo nacional-socialismo, para servir de prova à propalada superioridade artística (entre outras) da raça ariana e do mundo germânico, que costumava apresentar a Áustria como uma extensão natural da Alemanha. É bom lembrar que Hitler era austríaco e que a maioria dos seus compatriotas acolheu com entusiasmo a integração do seu país no III Reich. O Capitão von Trapp, da «Música no Coração», é uma excepção.  

Anton Bruckner retratado pelo pintor A. Miksch, em 1893.
Exposto na Gemäldegalerie © Stift St. Florian. Copyright © Stift St. Florian.

Diferentemente de Wagner, que era antissemita professo e militante da supremacia germânica, a instrumentalização política de Bruckner foi totalmente abusiva e injusta, com descaradas deturpações da sua biografia, para caber no ideário nazi. Ao contrário de Wagner, o austríaco sempre foi um artista cordato e respeitador de todos. Mas o seu sucesso e o notável contributo para o desenvolvimento da música moderna – inspirador de uma geração de ouro, que abrangeu Mahler, Schoenberg, Karajan, Paul Hindemith, etc. – tornaram-no num alvo apetecível da maquiavélica máquina de propaganda de Goebbels. Pesou também o gosto de Hitler pelo compositor. Segundo os diários de Goebbels, o Führer identificava-se com o seu conterrâneo músico, elogiando o facto de representar «o camponês que conquistara o mundo com a sua música». Convém lembrar que Hitler fora um aguarelista fracassado, que chumbou na candidatura à Academia de Belas Artes de Viena. 

Deste modo, ao sabor dos gostos de Hitler, Bruckner converteu-se numa das figuras de proa do universo pangermânico e, alegadamente, também uma vítima do bullying infligido pela burguesia judaica vienense, que não deixaria medrar o talento austríaco genuíno. Precisamente, a Sinfonia n.º 7 de Bruckner seria o expoente da marca germanófila omnipresente na cultura austríaca. Hitler declarara, depois de a ouvir: «Como pode alguém [continuar a] afirmar que a Áustria não é alemã? Há algo mais alemão do que esta nossa antiga tradição austríaca?»

Finda a Segunda Guerra Mundial, um neto do primeiro dirigente do Campo de Concentração Auschwitz-Birkenau descobriu na escola o papel sinistro desempenhado pelo avô Rudolf Höss (que já não conhecera) no extermínio de perto de um milhão de pessoas, muitas das quais apenas por motivos étnicos. Para acelerar aquela indústria de morte, Höss autorizara a introdução do Zyklon B nas câmaras de gás. 

Como a educação escolar alemã incluía visitas de estudo a algum Campo de Concentração, o pequeno Kai Höss pôde ter uma ideia do horror original, a partir da reconstrução feita pelos Aliados, no pós-guerra. Porém, só aos 17 anos o adolescente Kai conheceu em pleno as responsabilidades homicidas do avô, quando leu a sua autobiografia «Comandante de Auschwitz», escrita a pedido das autoridades polacas, em vésperas de ser executado. Nas palavras do neto ao jornalista Jonathon van Maren sobre o impacto daquele escrito: «É o próprio quem testemunha, com enorme detalhe, tudo o que fez. E é horrível a maneira tão fria, clínica e calculada como descreve o seu trabalho.»

Fotogr. de 1944: à esq. Richard Baer, à data Comandante de Auschwitz;
ao centro Josef Mengele, também conhecido (pelas piores razões) por “Anjo da Morte”;
à dta. Rudolf Höss, que dirigira Auschwitz de 1940 a 1943 [Universal History Archive].

Passado aquele embate difícil com um avô de passado criminoso, Kai seguiu o seu caminho, basicamente ateísta e hedonista, segundo o próprio. A grande reviravolta começou aos 28 anos, após uma cirurgia que correu mal, provocando-lhe uma hemorragia quase fatídica. Durante a convalescença, questionou-se sobre o rumo da sua vida e o sentido da procura desenfreada de prazeres materiais. Descobriu também uma Bíblia, onde leu um trecho marcante: o Salmo 51, sobre o arrependimento do rei David após ter mandado para a morte o general Uriah, para lhe roubar a mulher. Tudo isto lhe relembrou o avô, fazendo-o interrogar-se sobre a sua opção, se tivesse vivido naquele tempo e naquelas circunstâncias. Como teria reagido ao imenso poder que Hitler delegara em Rudolf Höss? 

Logo que teve alta do hospital, acabou por voltar à vida de sempre. Passados bons anos, conheceu numa festa um amigo cristão, com quem teve vontade de se abrir sobre as suas inquietações. Levado pelo amigo, Kai foi-se aproximando da Igreja e na Páscoa de 1989 converteu-se. Hoje, é Pastor da Igreja Evangélica de Estugarda, onde aproveita os sermões para partilhar a sua mudança de rumo, que ilustra a força do caminho pessoal e das infinitas oportunidades que a vida nos oferece.

Kai Höss num sermão na Igreja Evangélica de Estugarda. 

Mais recentemente, Kai Höss tem alertado contra algum antissemitismo, também exacerbado pela terrível sequência inaugurada pelo ataque bárbaro do Hamas contra Israel (7 OUT.2023), a que se seguiu a réplica militar continuada de Israel contra a Faixa de Gaza, o Sul do Líbano, regiões da Síria, sem se saber como irá terminar este conflito devastador.  

O que Kai não costuma partilhar é a reviravolta do avô, nos últimos anos (contada no “gin” de 14.Agosto.2024), tocado pela bondade dos guardas prisionais da Polónia, onde cometeu e foi cúmplice dos piores crimes de guerra. Esse tempo passado no cárcere polaco, antes de ser extraditado para ser julgado e condenado na Alemanha, mudou-o por completo.  Avô e neto comprovam quanto a vida é generosa em oportunidades, quando se procura com autenticidade.   

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

10 fevereiro 2025

Da arquitectura do coração *

 

Toronto, Outubro de 2014


Recupero parte de um raciocínio que não é inteiramente meu, mas sobre o qual me apetece discorrer.

Imaginemo-nos, ao nível da nossa vida mais intangível - sensações, sentimentos, afeições, humores - como uma cidade. Façamo-lo sob o ponto de vista da arquitectura e da construção civil, sendo que poderemos não excluir outros. Como se desenvolve uma cidade nos dias de hoje? Destruindo e reconstruindo, edificando ao lado do existente, aproveitando o que existe, para aumentar. Podemos construir um condomínio de luxo nos escombros do que foi um cemitério? Sim, podemos, mas temos custos de emoção. Podemos deitar abaixo um prédio fora de moda, apesar do seu valor histórico, para mostrar à polis uma arquitectura nova? Sim, podemos. Podemos aumentar andares numa edificação existente? Sim, podemos. Podemos construir ao lado do que existe? Sim, podemos.

A nossa vida sentimental, no seu sentido mais amplo, é uma cidade moderna. Nem tudo se substitui, nem tudo se acrescenta. O equilíbrio do coração reside no equilíbrio da construção da cidade, em saber o que deve demolir-se, o que pode conviver, sobre que escombros podemos fazer renascer um palacete ou uma habitação social, porque falamos de riqueza ou de sobrevivência. Por vezes acumulamos, isto é, acrescentamos um andar ao que já existe, e que tem a sua importância relativa. Por vezes é necessário uma visão de retoque, outras vezes de melhoria disruptiva.

Perceber tudo isto é viver melhor, porque o coração também vive de arquitectura paisagística.

***     

O raciocínio acima é fortemente original? Talvez não, porque é um raciocínio intuído. Sabemos que o segredo da nossa vida intangível passa pela acumulação e substituição em doses equilibradas de sentimentos, relações, memórias. Perceber esta realidade, traduzi-la por palavras escritas ou faladas, ajuda em quê? Para que serve, em última análise, ter uma explicação para o que somos ou fazemos? Somos mais felizes se soubermos as motivações por trás disto ou daquilo, se soubermos a importância da sobreposição de camadas afectivas, se soubermos que os nossos equilíbrios se constituem, tantas e tantas vezes, por aquilo que aparenta antagonismo? Dar um nome às coisas faz de nós pessoas melhores / mais felizes / mais equilibradas? Ou como se costuma dizer, a ignorância pode ser uma benção? Se sim, então a terapia deveria ser subsidiada pelo que resta do serviço nacional de saúde.

JdB

* publicado originalmente a 25 de Novembro de 2014

09 fevereiro 2025

V Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 5,1-11

Naquele tempo,
estava a multidão aglomerada em volta de Jesus,
para ouvir a palavra de Deus.
Ele encontrava-Se na margem do lago de Genesaré
e viu dois barcos estacionados no lago.
Os pescadores tinham deixado os barcos
e estavam a lavar as redes.
Jesus subiu para um barco, que era de Simão,
e pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra.
Depois sentou-Se
e do barco pôs-Se a ensinar a multidão.
Quando acabou de falar, disse a Simão:
«Faz-te ao largo
e lançai as redes para a pesca».
Respondeu-Lhe Simão:
«Mestre, andámos na faina toda a noite
e não apanhámos nada.
Mas, já que o dizes, lançarei as redes».
Eles assim fizeram
e apanharam tão grande quantidade de peixes
que as redes começavam a romper-se.
Fizeram sinal aos companheiros que estavam no outro barco
para os virem ajudar;
eles vieram e encheram ambos os barcos
de tal modo que quase se afundavam.
Ao ver o sucedido,
Simão Pedro lançou-se aos pés de Jesus e disse-Lhe:
«Senhor, afasta-Te de mim, que sou um homem pecador».
Na verdade, o temor tinha-se apoderado dele
e de todos os seus companheiros,
por causa da pesca realizada.
Isto mesmo sucedeu a Tiago e a João, filhos de Zebedeu,
que eram companheiros de Simão.
Jesus disse a Simão:
«Não temas.
Daqui em diante serás pescador de homens».
Tendo conduzido os barcos para terra,
eles deixaram tudo e seguiram Jesus.

07 fevereiro 2025

Textos dos dias que correm

Eu decido correr a uma provável desilusão: e uma manhã recebo na alma mais uma vergastada - prova real dessa desilusão. Era o momento de recuar. Mas eu não recuo. Sei já, positivamente sei, que só há ruínas no termo do beco, e continuo a correr para ele até que os braços se me partem de encontro ao muro espesso do beco sem saída. E você não imagina, meu querido Fernando, aonde me tem conduzido esta maneira de ser!... Há na minha vida um bem lamentável episódio que só se explica assim. Aqueles que o conhecem, no momento em que o vivi, chamaram-lhe loucura e disparate inexplicável. Mas não era, não era. É que eu, se começo a beber um copo de fel, hei-de forçosamente bebê-lo até ao fim. Porque - coisa estranha! - sofro menos esgotando-o até à última gota, do que lançando-o apenas encetado. Eu sou daqueles que vão até ao fim. Esta impossibilidade de renúncia, eu acho-a bela artisticamente, hei-de mesmo tratá-la num dos meus contos, mas na vida é uma triste coisa. Os actos da minha existência íntima, um deles quase trágico, são resultantes directos desse triste fardo. E, coisas que parecem inexplicáveis, explicam-se assim. Mas ninguém as compreende. Ou tão raros... 

Mário de Sá-Carneiro, in "Cartas a Fernando Pessoa"

06 fevereiro 2025

Frases mudas *

Enquanto a maioria das pessoas tem sorte se tiver um cliché que as caracterize na perfeição, para o protagonista desta história existem três ou quatro frases-feitas que lhe assentam como uma luva. Onde quer que fosse, entrava mudo e saía calado. Não tugia nem mugia, e tudo o que lhe aconteceu na vida começou e acabou sem ai nem ui. Nunca ninguém lhe ouviu uma queixa, um protesto ou uma frase mais exaltada. Mas também nunca disse um elogio, uma palavra simpática a um amigo ou promessas eternas a um amor de juventude. Na verdade, nunca ninguém o ouviu dizer fosse o que fosse. 

Ao contrário da maioria dos bebés, nasceu sem os choros e gritos habituais, e esse silêncio inicial manteve-o até à morte. Os pais fizeram todos os exames, testes e análises possíveis. Levaram-no a médicos, médiuns e psicólogos. Ninguém descobriu qualquer problema. Só restava uma hipótese: o silêncio crónico era opcional. Não falava porque não queria.

Ninguém sabe se foi o nome que lhe deu o conteúdo ou ele que deu sentido ao seu nome. A única certeza é que Carlos Calado era mudo.

Mas essa sua característica não o impediu de ter uma vida escolar normal. Aprendeu as letras e os números. A escrever e a fazer contas. Tão bem ou melhor, já que era mais calado do que os colegas de turma. O maior problema foi com a leitura. Como não lia alto era difícil perceber se o sabia fazer ou não. Os seus professores não se preocuparam muito com isso. 'Nunca há de ganhar a vida como orador', pensavam eles.

A sua mudez também não o impediu de formar família. Conheceu uma mulher que trabalhava como telefonista numa empresa movimentada, e cujo maior desejo era o de, após o trabalho, voltar para casa e ter à espera alguém que não quisesse conversar. Era o casamento perfeito. E viveram neste arranjo ideal até ao dia em que ela fez uma descoberta inesperada.

Quando a telefonista se preparava para se deitar, já o Carlos estava naquele estado intermédio de vigília, fez uma pergunta alto para si própria. E, em vez de ouvir apenas o seu pensamento como resposta, escuta uma voz entaramelada atrás de si. Faz outra pergunta e acontece o mesmo. Era o Carlos que, no seu sono, respondia inconscientemente às perguntas que ela fazia de si para si. Uma pergunta atirada para o ar dava direito a uma resposta meio adormecida.

A partir dessa descoberta, todas as noites passou a fazer o mesmo. Fingia arrumações e ocupações e, quando Carlos estava no estado sonolento de vigília, começavam as perguntas. Foi com isto que começaram a surgir as curvas num caminho que, até esse ponto, tinha sido feito suavemente em linha recta.

Começou pela voz que nunca ninguém tinha ouvido. Era aguda e esganiçada, incomodativa. E acabou no conteúdo das respostas. Descobriu coisas que não queria, percebeu que muitas ideias que tinha sobre ele estavam erradas. O Carlos mudo, com quem partilhava o silêncio durante o jantar, era diferente do Carlos que falava durante o sono. E este facto foi o suficiente para que ela decidisse pôr um ponto final na relação.

Decidiu sair de casa e acabar tudo. Quando lhe comunicou a decisão, o Carlos perguntou, com a ajuda de um lápis e de um papel, 'porquê?'. E a telefonista limitou-se a responder-lhe 'pelas coisas que me disseste'.

SdB (III)

* publicado originalmente a 22 de Novembro de 2010

05 fevereiro 2025

O Fado, canção de vencidos

Muito se tem falado da Mouraria - e pelos piores motivos. Mas o bairro popular é mais do que uma questão de segurança ou de imigração desenfreada. É, também, mais do que o destino final de Maria Severa Onofriana. Foi fonte de inspiração para textos ou versos particularmente bonitos, como os que aqui coloco. 

Gabriel de Oliveira assentou praça em 1909 na Marinha de Guerra, tendo concluído o curso de artilheiro. Suzanne Chantal (pseudónimo de Suzanne Yvonne Marie Beaujoin) foi jornalista e romancista, e nasceu em 1909. Não sei se se cruzaram ou não, mas podiam tê-lo feito e ter trocado dois dos mais interessantes textos que se escreveram sobre a Mouraria ou sobre a procissão da Senhora da Saúde. 

Vale a pena ler os versos de Gabriel de Oliveira, a forma como a sextilha a itálico é depois glosada, o primor de algumas expressões, o trocadilho de uma rosa desfolhada que parece que tem virtude. E vale a pena ler o trecho de Suzanne Chantal - 5 linhas sem ponto para que se leia sem parar, porque o ritmo realça a beleza da frase.

JdB

Há festa na Mouraria

Há festa na Mouraria
É dia da procissão
Da Senhora da Saúde
Até a Rosa Maria
Da rua do Capelão
Parece que tem virtude

Naquele bairro fadista
Calaram-se as guitarradas
Não se canta nesse dia
Velha tradição bairrista
Vibram no ar badaladas
    Há festa na Mouraria

Colchas ricas nas janelas
Pétalas soltas no chão
Almas crentes, povo rude
Anda a fé pelas vielas
    É dia da procissão
    Da senhora da saúde

Após um curto rumor
Profundo silêncio pesa
Por sobre o Largo da Guia
Passa a Virgem no andor
Tudo se ajoelha e reza
    Até a Rosa Maria

Como que petrificada
Em fervorosa oração
É tal a sua atitude
Que a rosa já desfolhada
    Da rua do Capelão
    Parece que tem virtude

Versos de Gabriel de Oliveira

***

(...) mesmo as casas fechadas puseram os tapetes nas janelas. Toda a gente se persigna, e a mão do prelado abençoa, no espaço, os bons, os maus, essa multidão de fiéis de Nossa Senhora da Saúde em que se misturam as raparigas, os vadios, os mendigos e o povo da Guia, do Socorro, da Mouraria, que há pouco ainda se reuniam ao crepúsculo para orar em frente duma estátua santa, colocada num nicho, entre uma taberna e um lupanar.

Suzanne Chantal, in A Caravela e os Corvos

03 fevereiro 2025

Pensamentos dos dias que correm

Às vezes penso em emigrar. É uma tendência fatal dos Portugueses que se manifesta desde o primeiro bocejo; só que um é de fome e outro de puro aborrecimento: um sugere-o a contracção do estômago onde se digerem côdeas e couve galega; outro, a mente em que se arrefecem pensamentos e suas consolações. Por isso, por esta inclinação movediça, a nossa cultura é estrangeirada; não se recorre ao sabor pátrio, de tanto que ele se traduz em humilhação e impedimento. Mas vai eu, em tentação de romper com muitas amizades, que em serem inimigas me dariam mais proveito, estabeleço planos tão bem gizados que, a traduzirem estratégia guerreira, já tinha por camaradas Aníbal e Alexandre. Todavia, há sempre um nada que me assombra e imobiliza. Não é o respeito por coisas famosas, a História e os grandes cá da terra. São coisas pequenas, devoradoras da paz se as temos por distantes: um dia de chuva na Primavera, com aqueles campos acima do Ave, crivados de malmequer amarelo, desse de que se faziam colares, com cheiro ácido, de botica.  

Agustina Bessa-Luís in Dicionário Imperfeito
Guimarães Editores
2008

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