23 dezembro 2024

Do Natal

 

Mão amiga enviou-me fotografia do artigo acima, publicado no jornal Público. Um texto bonito, bem escrito, que tocará muitos de nós, em particular os que se confrontaram com perdas. 

A vantagem de se ter alguma idade é a memória. Lembro-me dos últimos (quase) 60 natais: lembro-me dos meus natais de criança ou de jovem, em casa dos meus Pais ou noutras casas de família. Lembro-me dos natais solteiro, casado, separado, com filhos, sem filhos, com netos, com famílias reorganizadas, com os filhos ou netos dos outros, pessoas a quem chamamos família, ou não. Lembro-me das tradições gastronómicas das várias casas, dos ambientes, das tensões. Conheci casas para quem o Natal era uma festa mais resguardada de família, conheci casas para quem o Natal era um open house day, ou uma espécie de albergue espanhol - são todos bem-vindos desde que tragam farnel. Curiosa - ou tristemente - cada vez conheço mais pessoas que anseiam fervorosamente pelo dia 26 de Dezembro, porque a quadra suscita exageros vários e de natureza diferente.

A partir de uma dada altura, e partindo da minha própria experiência de vida, comecei a perceber o óbvio: o Natal é uma lente que amplia tudo - as tristezas, as alegrias, o desejo de mostrar que está tudo bem, os lugares vazios à mesa, a memória daqueles que desaparecerem de forma irreversível ou daqueles a quem de certa forma matámos no coração, o gozo de uma família que se aperta à mesa para receber um marido, uma mulher, um filho ou um neto. 


A fotografia acima, de um texto atribuído a Quentin Tarantino, e postado no Linkedin pelo meu querido amigo João Silva, fala disto mesmo: enquanto [o Natal] pode ser o tempo mais feliz do ano para algumas pessoas, é o tempo mais triste, mais solitário, mais tenso, mais doloroso, para tantos outros. O texto da enfermeira Carmen Garcia fala dos mortos que ainda se sentam à volta da mesa da sua consoada, mas podia falar dos vivos que, por vicissitudes da vida, já não se sentam à mesa da sua consoada, mas que ocupam um lugar forte na memória. 

O Natal é tudo o que se quiser: um tempo de generosidade, um tempo de família ou de amigos, de presentes trocados e loiça aprimorada, de refeições enfeitadas pelas receitas da tradição ou da família, um tempo de foco no presépio e no que tudo aquilo representa. Talvez devesse ser, acima de tudo, um tempo de atenção - ou, pelo menos, de uma compreensão activa - ao próximo: aos que fazem o luto por quem morreu ou se afastou, aos que fazem o luto por um tempo que acabou ou foi suspenso, aos que vivem momentos desafiantes e que geram tristeza. A todos os outros cabe, sem enfeites nem ruídos artificiais, oferecer a esta comunidade do desalento um abraço, uma frase ou um silêncio reconfortantes.  

Na minha mesa de Natal senta-se tudo e sentam-se todos, de forma desordenada e confusa, numa mistura sensorial onde pode haver música ou cacofonia. Sentam-se os que morreram ou se afastaram, os que chegaram de novo, os que permanecem, aqueles a quem, pela sua proximidade, adivinho tempos menos bons. Estou em crer que a minha mesa não é original - chegamos a uma certa idade e carregamos connosco um lastro natural e humano de alegrias e tristezas. E talvez vivamos menos bem com um Natal moderno, enfeitado de excessos, susceptível de um cansaço interior que mata o espírito do tempo. Mas até isso nos ensina esta lente magnificadora: não há fórmula certa para celebrar o Natal. Ou talvez haja, mas teríamos de ser radicais, isto é, ir à raiz das coisas

Apesar deste texto menos natalício por ausência de frases fortes onde conste o amor, a solidariedade, a alegria e as crianças, fica o desejo de um Santo Natal para todos os que passam por este estabelecimento. E que o Menino Jesus seja, de facto, a luz que nos ilumina e nos guia.

JdB        

22 dezembro 2024

IV Domingo do Tempo do Advento

 EVANGELHO – Lucas 1,39-45

Naqueles dias,
Maria pôs-se a caminho
e dirigiu-se apressadamente para a montanha,
em direção a uma cidade de Judá.
Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel.
Quando Isabel ouviu a saudação de Maria,
o menino exultou-lhe no seio.
Isabel ficou cheia do Espírito Santo
e exclamou em alta voz:
«Bendita és tu entre as mulheres
e bendito é o fruto do teu ventre.
Donde me é dado
que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?
Na verdade, logo que chegou aos meus ouvidos
a voz da tua saudação,
o menino exultou de alegria no meu seio.
Bem-aventurada aquela que acreditou
no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito
da parte do Senhor».

20 dezembro 2024

Em memória de Alexandre O'Neill (que ontem faria 100 anos)

 Portugal

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,

a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato! 

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O'Neill, in 'Feira Cabisbaixa'

18 dezembro 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

Compreensivelmente é italiana a Natividade mais antiga que se conhece. O conjunto foi esculpido em madeira de tília e de olmo, no século XIII, pouco tempo depois de S. Francisco de Assis ter inaugurado a primeira representação do nascimento de Jesus, na noite de Natal de 1223. A originalidade e a força daquele gesto alastraram-se rapidamente por toda a cristandade, assim instituindo a tradição dos presépios, até aos dias de hoje.

As imagens pertencem à Basílica de Santo Estêvão, em Bolonha e podem ser vistas na pequena capela no interior de uma das sete Igrejas que formam o complexo conhecido por Basílica de Santo Estêvão: a da Santíssima Trindade ou Martyrium.

A Basílica de Santo Estêvão corresponde a um complexo arquitectónico, também designado por "Sete Igrejas" ou “Santo Sepulcro” 
(a mais famosa do grupo) ou "Sancta Jerusalem Bononiensis", cumprindo a intenção do Bispo e patrono da cidade
 – S. Petrónio –  de recriar em Itália os lugares sagrados de Jerusalém.

A Natividade de Bolonha foi concebida por um autor desconhecido, à escala real, sendo por isso o maior presépio monumental de Itália. A policromia que hoje reveste as imagens foi introduzida um século mais tarde (após 1370), pelo pintor bolonhês Simone dei Crocifissi, nos tons característicos da pintura sacra medieval: em ouro, índigo, magenta e verde. Graças a um restauro meticuloso (2006), a ancestral Adoração dos Magos preserva a beleza do estilo gótico original. 

Para se perceber a escala: as figuras mais altas, dos dois Reis em pé, medem 1,60m,
enquanto o que está ajoelhado, a homenagear o Menino, mede 1,10m.

É tocante o olhar protector do pai, pousado sobre o Pequenino revelado pela Mãe, com simplicidade e confiança, aos misteriosos visitantes ricos, que reconhecem n’Ele o Deus encarnado. Por isso, mal o avistam, adoram-No e oferecem-lhe os melhores presentes, protagonizando a primeira epifania da vida do Messias na terra. 

Perpassa uma enorme paz entre todos, cada um cumprindo uma missão simbólica: S. José, o guardião meigo; Maria, mãe atenta e generosa com os desconhecidos, antecipando a maternidade universal que lhe iria ser pedida como co-redentora da humanidade; o primeiro Mago ajoelhado e sem coroa para venerar o maior dos Reis; o segundo Mago a apontar para a Estrela que os conduzira àquela gruta distante; o terceiro Mago reluzindo uma oferta valiosa, talvez um incensário para abençoar naquele Bebé todos os seres humanos salvos pelo Filho do Homem.  

O esplendor do colorido medievo foi recuperado no restauro concluído em 2006.
Actualmente, o conjunto está exposto numa vitrina transparente,
com os níveis de humidade e de temperatura controlados electronicamente.

Em vez dos tradicionais traços étnicos representativos das diferentes raças do planeta, estes Sábios do Oriente simbolizam as três idades da fase adulta, desde a juventude até à senioridade, cabendo ao mais velho o lugar de honra no cortejo, junto ao Salvador do mundo. 

Um dos visitantes mais ilustres do valioso presépio de Bolonha foi Dante Alighieri, que estudou direito naquela cidade da Emilia-Romana e frequentou assiduamente o complexo de sete igrejas da Basílica de Santo Estêvão. De facto, algumas das cenas narradas no purgatório do autor da Divina Comédia são reconhecíveis em figuras esculpidas nos capitéis da galeria superior do claustro medieval: como o nu semi-esmagado por um pedregulho ou a cara violentamente torcida em 180º.  

Claustro que replica o pátio de Pôncio Pilatos, onde Jesus foi condenado à morte.
O itinerário dos monumentos constitutivos da Basílica costuma começar na Igreja do Crucifixo,
cuja cripta, designada «do Sepulcro», contém uma cruz nas dimensões da original,
segundo reza a lenda, assim revelando a altura de Jesus. 

No seu pensamento do dia 17 de Dezembro, o P. Vasco Pinto Magalhães, sj focou-se num dos segredos do Deus que extravasa os pensamentos humanos, começando logo no nascimento pária: «Estes dias que vão correndo, todos sentimos o desejo de viver num mundo mais justo e mais pacífico. Para fazer a paz é preciso ser forte por dentro, isto é, paciente e manso para aguentar as dificuldades sem desistir do bem. Fortaleza nada tem a ver com violência: esta é ingénua, impulsiva e nada constrói. A violência é sinal de fraqueza moral e espiritual.» (in ‘Não há soluções, há caminhos - 365 vezes por ano não perguntes porquê, mas para quê’). A mansidão lúcida, livre e transbordante de amor daquele Recém-nascido explica porque volta a querer renascer no nosso coração, ano após ano, desejoso de ficar connosco para sempre. O maior presente! Festas Felizes e santas a todos. 

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

17 dezembro 2024

Das orquestras e das perguntas sobre orquestras

Vamos elevar este estabelecimento ao nível da ligeireza - e vamos falar de orquestras numa vertente tão lúdica e ridícula quanto possível.

Declaração de interesses: sou um canhoto estranho, isto é, pouco consistente. Eu explico: escrevo com a mão esquerda, o meu olho director é o esquerdo, seguro uma raquete ou um taco de bilhar na mão esquerda, se quiser dar um murro ou um estalo é com a mão esquerda que o faço e é com essa mão que atirarei uma pedra. Por outro lado, jogo futebol com o pé direito, tal como sou destro a jogar às cartas, a manusear o rato do computador ou a usar a faca de carne ou de peixe à mesa. A tocar uma viola sou também destro mas, se me imaginasse a tocar violoncelo ou violino ou contrabaixo, é a mão esquerda que segura o arco.

Há muito tempo que tenho este olhar curioso para uma orquestra e que formulo esta pergunta que não me é respondida: porque não há canhotos numa orquestra? Eu percebo que não seja possível - por motivos que me parecem de ordem prática - haver um canhoto como eu a tocar violino. Mais do que uma certa inestética, como se fosse um soldado numa parada a marchar em desacerto com os camaradas, há um lógica de ordem prática: o meu arco e o do meu vizinho embateriam forçosamente um no outro. 

Vejamos o exemplo do trompete, um instrumento musical de sopro, da família dos metais, constituído por corpo, chave de água, bomba de afinação, pistões, cotovelos e bocal. Os pistões são o componente onde o trompetista carrega (com os dedos da mão direita) para fazer um derivado de sons. Ora, uma vez que o trompete se projecta para a frente do músico, não há nenhum impedimento prático deste carregar nos pistões com os dedos da mão esquerda. Acontece que eu nunca vi um trompetista canhoto, como nunca vi um clarinetista, ou fagotista canhoto. Será que, em toda a história da música e das orquestras nunca ouve um cavalheiro a dizer ao mestre artífice: oh, Josué, faça-me aí um trompete com os pistões do outro lado, que eu nasci canhoto... Temos aqui um problema de inclusão?  

***

No dia 8 de Dezembro fui representar a Acreditar num concerto solidário com as bandas dos três ramos das Forças Armadas. Voltei a ter um olhar perscrutante: há por aí um grumete canhoto? Não, não havia. E deparei com outra estranheza: nenhuma das bandas tem violino, ausência para a qual, estou certo, haverá uma razão lógica. O meu primeiro pensamento foi lógico: numa banda das Forças Armadas só faz sentido haver instrumentos que se possam tocar em movimento, como numa marcha, por exemplo. Mas depois percebi que havia contrabaixos e violoncelos, pelo que o meu raciocínio caiu pela base. 

***

Aqui ficam estas notas de superior importância, vertidas em duas perguntas: (1) porque não há canhotos numa orquestra? e (2) porque não há violinos numa banda das Forças Armadas?     

JdB

16 dezembro 2024

Poemas dos dias que correm

Uma arte

A arte de perder não é difícil de se dominar;
tantas coisas parecem cheias de intenção
de se perderem que a sua perda não é uma calamidade.

Perder qualquer coisa todos os dias. Aceitar a agitação
de chaves perdidas, a hora mal passada.
A arte de perder não é difícil de se dominar.

Então procura perder mais, perder mais depressa:
lugares e nomes e para onde se tencionava
viajar. Nenhuma destas coisas trará uma calamidade.

Perdi o relógio da minha mãe. E olha! a última, ou
a penúltima, de três casas amadas desapareceu.
A arte de perder não é difícil de se dominar.

Perdi duas cidades encantadoras. E, mais vastos ainda,
reinos que possuía, dois rios, um continente.
Sinto a falta deles, mas não foi uma calamidade.

 – Mesmo o perder-te (a voz trocista, um gesto
que amo) não foi diferente disso. É evidente
que a arte de perder não é muito difícil de se dominar
mesmo que nos pareça (Toma nota!) uma calamidade. 

elizabeth bishop
geografia III
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
2006

15 dezembro 2024

III Domingo do Advento

 EVANGELHO – Lucas 3,10-18

Naquele tempo,
as multidões perguntavam a João Baptista:
«Que devemos fazer?»
Ele respondia-lhes:
«Quem tiver duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma;
e quem tiver mantimentos faça o mesmo».
Vieram também alguns publicanos para serem batizados
e disseram:
«Mestre, que devemos fazer?»
João respondeu-lhes:
«Não exijais nada além do que vos foi prescrito».
Perguntavam-lhe também os soldados:
«E nós, que devemos fazer?»
Ele respondeu-lhes:
«Não pratiqueis violência com ninguém
nem denuncieis injustamente;
e contentai-vos com o vosso soldo».
Como o povo estava na expectativa
e todos pensavam em seus corações
se João não seria o Messias,
ele tomou a palavra e disse a todos:
«Eu batizo-vos com água,
mas está a chegar quem é mais forte do que eu,
e eu não sou digno de desatar as correias das suas sandálias.
Ele batizar-vos-á com o Espírito Santo e com o fogo.
Tem na mão a pá para limpar a sua eira
e recolherá o trigo no seu celeiro;
a palha, porém, queimá-la-á num fogo que não se apaga».
Assim, com estas e muitas outras exortações,
João anunciava ao povo a Boa Nova».


13 dezembro 2024

Da ideia própria das perguntas

O sítio dos costume, mais ou menos o mesmo local, mais ou menos a mesma hora

Cresci com uma pessoa que tinha uma ideia muito própria das perguntas; e cresci com uma pessoa que tinha uma irritação muito vincada relativamente a essa ideia muito própria das perguntas. Ou seja, para uma determinada pessoa, as perguntas vais ao centro? Se sim, por onde vais? tinham uma resposta pintada de acrimónia: é relevante por onde vou? Para a pessoa que tinha acrimónia nos bolsos, pronta a sair em resposta a determinadas perguntas, o relevante era vais ao centro?, sendo que o resto era desimportante, parecia-lhe. 

Para esta mesma pessoa também havia uma espécie de informação - que apelidava de informação não solicitada - que justificava um punhado de acrimónia deitado ao diálogo. Se à pergunta vais ao centro? lhe fosse respondido sim, e vou pela rua do lado direito, então sentia-se no direito à irritação; afinal, só perguntara se ia ao centro, não lhe interessando se a pessoa em questão ia pela rua do lado direito ou pela rua do lado esquerdo. A pergunta era vais ao centro? e a resposta seria bastante directa: sim, não, não sabe / não responde, nenhuma das anteriores.

Vergílio Ferreira, no seu livro Para Sempre (Livraria Bertrand, 1983), aborda este tema, não sabendo que aborda este tema, porque menciona aspectos que são de uma conjugalidade mais literária (embora até nisso, na conjugalidade, haja pontos de intersecção...). E diz, referindo-se a Sandra (que é mulher do protagonista do livro que, por acaso, é autobiográfico): 

Sandra rarissimamente me perguntou fosse o que fosse, ah, sei bem porquê. Perguntar, situarmo-nos num plano de dependência onde se recebe a dádiva, o favor de uma resposta. Havia o resto, e esse resto era muito maior que a pequena coisa que eu queria. 

Sandra, que nunca terá pronunciado a palavra amor porque dizia que isso era ridículo, o importante seria o que se vive, responde-lhe mais à frente:

Tudo tem o seu mundo para existir. Ao nível mais alto ou mais profundo as palavras são intrusas.  

Gostava de imaginar que Sandra, ao falar da intrusão das palavras no nível mais alto ou profundo do mundo, estava a dar uma justificação elevada a quem - a tal pessoa com quem cresci - tinha uma ideia muito própria das perguntas. Temo que não seja o caso. Encontrar motivos superiores para as nossas idiossincrasias pode ser um motivo meritório, se bem que porventura inútil. Às vezes só nos resta o eufemismo: tinha um feitio desafiante...

JdB

11 dezembro 2024

Dos planos

Almoço um destes dias com pessoa de quem sou muito amigo. Falamos de tudo: da família, netos, filhos, emprego ou outras actividades, cônjuges, saúde mental e física. Estamos ambos reformados, pelo que já nos poupamos à conversa que sempre achei maçadora da carreira, dos fringe benefits, da incompetência dos chefes, dos pares ou dos subordinados. Conversamos sobre os méritos e deméritos da aposentadoria, de como gerimos os dias, e diz-me ele que vive particularmente feliz: faz muito do que quer e quando quer, tem folga financeira, tem família saudável e próxima - uma alegria total. E diz-me ainda que não sabe (vigiai, porque não sabeis dia nem hora) quanto tempo lhe resta, pelo que se habituou a não fazer grandes planos, vivendo um dia de cada vez.

A conversa, vinda de quem veio, não me surpreendeu, mas não deixei de pensar nessa coisa, não sei se muito moderna, de não fazer planos, de viver o dia a dia e fazer disso uma espécie de filosofia de vida. Há muito que o oiço, não só em pessoas em idade de reforma, mas também em pessoas mais novas: não quero fazer planos, quero viver o presente, gritar o carpe diem como se fosse a única frase que me resta gritar. 

Olho para dentro de mim próprio e tenho a sensação de que não há nenhum músculo que se move na direcção do gozar o dia a dia. Tenho muitos planos? Não sei se muitos: quero terminar o doutoramento, e só isso já me leva para o final de 2025. Nesse mesmo ano gostaria de ir, para além de outros destinos mais próximos, ao Chile (onde tenho amigos) e a outro país da América Latina. Em 2026, se um amigo ainda por lá viver, apetece-me ir a Macau e à China. Em 2027, se ainda cá estiver em condições, talvez me atire à Austrália (onde decorrerá o congresso de oncologia pediátrica nesse ano) e Nova Zelândia (onde também tenho amigos).

Concretizarei tudo isto? Não faço ideia. Sei lá eu se não me falece a vontade, a verba ou a força. Mas, à luz do que sei hoje, até 2027 tenho as minha vida muito ocupada, com estudos, voluntariado (um projecto muito específico, que terminará em 2026) e viagens. Nunca fui um fazedor nato, nem nunca tive uma apetência forte para estar sempre em agitação. Temo, porém que, se não tiver planos, a minha vida decorra demasiadamente sob o signo da rotina, o que é complicado para um homem que já gosta muito - ou excessivamente - de rotinas. 

Mais do que precisar de planos, gosto de ter planos, e até de partilhá-los com quem me fôr próximo. Há circunstâncias na vida em que, não os tendo, tudo pode ficar desinteressante - ou triste.

JdB 

10 dezembro 2024

Poemas dos dias que correm

 Um Sonho

Na messe, que enlourece, estremece a quermesse...
O sol, celestial girasol, esmorece...
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluidas, fluindo a fina flor dos fenos...

As estrelas em seus halos
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves
Suaves...

Flor! enquanto na messe estremece a quermesse
E o sol, o celestial girasol, esmorece,
Deixemos estes sons tão serenos e amenos,
Fujamos,Flor!à flor destes floridos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...
Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Como aqui se está bem!Além freme a quermesse...
- Não sentes um gemer dolente que esmorece?
São os amantes delirantes que em amenos
Beijos se beijam,Flor!à flor dos frescos fenos...

As estrelas em seus halos
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Esmaiece na messe o rumor da quermesse...
- Não ouves este ai que esmaiece e esmorece?
É um noivo a quem fugiu a Flor de olhos amenos,
E chora a sua morta, absorto, à flor dos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...
Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Penumbra de veludo . Esmorece a quermesse...
Sob o meu braço lasso o meu Lírio esmorece...
Beijo-lhe os boreais belos lábios amenos,
Beijo que freme e foge à flor dos flóreos fenos...

As estrelas em seus halos
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos ,
Cítolas, cítaras, sistros ,
Soam suaves , sonolentos ,
Sonolentos e suaves ,
Em Suaves ,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Teus lábios de cinábrio, entreabre-os! Da quermesse
O rumor amolece, esmaiece, esmorece...
Dê-me que eu beije os teus morenos e amenos
Peitos!Rolemos,Flor!à flor dos flóreos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...
Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Ah! não resista mais a meus ais!Da quermesse
O atroador clangor, o rumor esmorece...
Rolemos, ó morena! em contactos amenos!
- Vibram três tiros à florida flor dos fenos...

As estrelas em seus halos
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Três da manhã.Desperto incerto...E essa quermesse?
E a Flor que sonho? e o sonho? Ah!tudo isso esmorece!
No meu quarto uma luz,luz com lumes amenos,
Chora o vento lá fora,à flor dos flóreos fenos...

Eugénio de Castro
Arcachon,12 de julho de 1889.

09 dezembro 2024

Do que dizem os olhos de cada um

Num romance, ou filme, de cujo nome não me recordo, alguém termina uma relação com alguém dizendo-lhe: não gosto da minha imagem que vejo reflectida nos teus olhos. Essa imagem não sou eu. 

No conto O Príncipe Feliz (citado por Irene Vallejo em O Futuro Recordado, Bertrand Editora, 2024), Oscar Wilde coloca na boca do rio a seguinte frase: porque quando se inclinava, eu conseguia ver a beleza das minhas águas nos seus olhos. 

Num dos seus poemas de que mais gosto - Impressão Digital - e que já citei abundantemente neste estabelecimento, diz António Gedeão:

Os meus olhos são uns olhos,
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns. 

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem lutos e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente. 

Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.

Tanto tem razão o personagem que põe fim à relação como tem razão o rio que vê a beleza das saus águas reflectidas no Príncipe Feliz. Quem tem mais razão ainda é o Gedeão, que alguns conheceram como Rómulo de Carvalho. Afinal, cada um vê o que quer nos olhos do outro. Talvez a pergunta, que tanto tem comovido entrevistados, o que dizem os teus olhos?, não tenha uma resposta verdadeira ou não tenha uma resposta falsa e, por isso, seja uma pergunta que pode devolver-se ao entrevistador: e tu, o que vês nos meus olhos? 

Conhecemo-nos através dos outros, através do que nos dizem, do que nos respondem, da forma como reagem às nossas palavras ou aos nossos actos, como comentam as nossas decisões ou dão opiniões sobre os nossos gestos. Está no domínio do sonho (que se transformará em pesadelo) achar que temos direito ou só queremos ver a luz nos olhos do nosso próximo. Provavelmente vemos tudo - o sol e a sombra, o que temos de melhor ou o que temos de pior, a luz e a escuridão. Por vezes vemos o que somos e não queremos ver, por vezes vemos uma imagem injusta, por vezes vemos o amor mas preferimos ver outra coisa, porque o reflexo nos parece desagradável. E quem disse que o exercício do amor era sempre agradável?

Vemos o que quisermos ver: vemos moinhos? São moinhos. Vemos gigantes? São gigantes. Acima de tudo, precisamos de escolher bem o que vemos nos olhos do outro.

JdB

08 dezembro 2024

Solenidade da Imaculada Conceição

 EVANGELHO – Lucas 1,26-38

Naquele tempo,
o Anjo Gabriel foi enviado por Deus
a uma cidade da Galileia chamada Nazaré,
a uma Virgem desposada com um homem chamado José.
O nome da Virgem era Maria.
Tendo entrado onde ela estava, disse o anjo:
«Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo».
Ela ficou perturbada com estas palavras
e pensava que saudação seria aquela.
Disse-lhe o Anjo:
«Não temas, Maria,
porque encontraste graça diante de Deus.
Conceberás e darás à luz um Filho,
a quem porás o nome de Jesus.
Ele será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo.
O Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai David;
reinará eternamente sobre a casa de Jacob
e o seu reinado não terá fim».
Maria disse ao Anjo:
«Como será isto, se eu não conheço homem?»
O Anjo respondeu-lhe:
«O Espírito Santo virá sobre ti
e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.
Por isso, o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus.
E a tua parenta Isabel concebeu também um filho na sua velhice
e este é o sexto mês daquela a quem chamavam estéril;
porque a Deus nada é impossível».
Maria disse então:
«Eis a escrava do Senhor;
faça-se em mim segundo a tua palavra».

06 dezembro 2024

Poemas dos dias que corem

Paredão do Estoril, mesma hora, dia diferente

A pedra

Não é a pedra.
O que me fascina
é o que a pedra diz.
voz cristalizada,
o segredo da rocha rumo ao pó.
E escutar a multidão
de empedernidos seres
que a meu pé se vão afeiçoando.
A pedra grávida
a pedra solteira,
a que canta, na solidão,
o destino de ser ilha.
O poeta quer escrever
a voz na pedra.
Mas a vida de suas mãos migra
e levanta voo na palavra.
Uns dizem: na pedra nasceu uma figueira.
Eu digo: na figueira nasceu uma pedra.

Mia Couto

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