28 outubro 2016

Dos lugares-comuns

Talvez haja um filósofo, da actualidade ou já apenas junto de nós em forma de livro, ensaios, ou professores prestimosos, que tenha escrito sobre ver e compreender.  Ou talvez, se eu quisesse ser absurdamente desinteressante ou recta pronúncia, sobre ver e / ou compreender. 

Um dia, numa apresentação, ouvi uma frase / conceito que mudou parte substantiva da minha vida. Citava-se Karen Blixen, a dinamarquesa que conheceu África e o desgosto como poucos. Cito de cor: todo o sofrimento é suportável se fizermos dele uma história. Repito a frase no estabelecimento, como repito a intervenção de Viktor Frankl na minha vida ao lê-lo a discorrer, sentado num campo de concentração com vista para o morte, sobre o sentido da vida. Para efeitos da minha argumentação inédita, Blixen (que se chamava Dinesen) e Frankl (que se chamava Frankl) são a mesma pessoa pelo facto de dizerem a mesma coisa, ainda que separados (muito) na geografia e (menos) no tempo. Para o austríaco Viktor o sentido da vida encontrava-se (também) num grande sofrimento; para a nórdica Isak para o sofrimento podia encontrar-se um sentido. Este raciocínio, posto desta forma, parece a voz activa e a voz passiva da salvação das almas.

Olho para a minha vida - o passado recente, o passado mais ou menos longínquo, talvez o olhar que, no presente muito presente derramo sobre todos os passados. Para tudo olhei, porque tenho essa capacidade física. Mas nem sempre vi, nem sempre compreendi, nem sempre construí uma história que é o mesmo que dizer que nem sempre encontrei um sentido para aquilo que me aconteceu. No entanto, a minha vida não é feita apenas de hecatombes ou grandes sucessos (que são sempre os inesperados). Por vezes, na mais das vezes, é feita de coisas que são migalhas, algumas inseguranças, desejos ou hábitos. Fiquei sempre contente quando encontrei uma explicação para o que sou. Por vezes é uma genética, por vezes é perceber em que circunstâncias cresci que me levou a fazer esta opção, a ser assim, a não querer aquilo. 

Entre ver e compreender, o sentido da vida e a história que se faz dos sofrimentos não há qualquer diferença, a não ser na sintaxe ou nas palavras escolhidas. É tudo o mesmo, porque tudo se resume a perceber o que somos e o que fazemos com o que nos acontece.  No fundo, como se descobrir a causa das nossas estranhezas fosse iluminar um caminho que outros percorrem connosco - ou que nós próprios corremos connosco próprios. No fundo, como se fazer histórias ou olhar em frente não fosse mais que ver mais, ver mais além, ver mais nítido. Mesmo que nem sempre gostemos do que vemos.

JdB  

1 comentário:

ACC disse...

Texto muito bem escrito, privilegiando e repetindo com sucesso a arte invulgarmente feliz de associação de ideias aparentemente distantes.
O passado, o passado compreendido ou o passado desalumiado só servem para nos sossegar. Para nos dar pistas, para nos ajudar a recriar e viver o presente e a construir o futuro. Enquanto o passado nos controlar a respiração, as decisões e a alegria de viver, estamos cristalizados no dejá vue. Sentados opiparamente no que pensamos ter sido e feito, a remoer as falsidades da nossa construção do mundo, consolidamos o que fomos, mas nunca poderemos ter fé no que seremos no futuro.
O que temos dentro de nós está e estará sempre disponível. O que se passa é que como registamos e cristalizamos o passado, as suas formas de permanecer, os seus códigos e emoções, não conseguimos inovar, crescer ou ser cada vez mais aquilo que gostaríamos de ser.

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