06 março 2020

Moleskine *

Dos vários modelos de coabitação do Homem não podemos descurar o que se refere ao dele consigo próprio. Não me atenho na capacidade que cada um de nós tem para viver sozinho, mas na aptidão que revelamos para nos desdobrarmos num ‘eu’ que se observa e num ‘eu’ que se deixa observar. No fundo, como se a individualidade fossem dois – personagem e crítico – de um mesmo solilóquio. Acredito que temos um espaço confinado por onde deambular interiormente, uma espécie de terreno virtual limitado onde podemos exercer este mister. Ora, assim sendo, a dimensão dos ‘eus’ – observado e observador – é fundamental. Se o primeiro ‘eu’ – que será sempre o dominante – se estender nesta virtualidade do espaço, pouco lugar há para o segundo ‘eu’. É o Princípio de Exclusão de Pauli aplicado à não-matéria. É este exercício desejável - ou mesmo possível?

[Gregory Tapescu, in Há espaço para dois 'eus'? (Edição do Autor, Bucareste, 2010, traduzido por A. L. Andrade)]

***

Alberto lia, com vagar e cansaço, este artigo que lhe tinham mandado. Meditava sobre a verdadeira dimensão deste texto, como se adequaria às meditações que vinha fazendo e onde as expressões pequeno e pequenez assumiam foros de protagonismo. Leu e releu, e reforçou as suas convicções.

Sempre tivera a desadaptada e inútil mania de se fixar nas inutilidades da vida, pelo que não estranhou ter olhado mecanicamente para o relógio quando tocaram à campainha. Eram 15.51h, e percebeu que tão cedo não haveria outra capicua horária. Não que isso fizesse diferença para a rotina das marés ou para a constância das luas, mas mesmo assim era uma coincidência. Talvez não significativa, como referia Jung, mas seguramente curiosa. Um minuto de diferença e o relógio revelaria umas desinteressantes 15.50h ou 15.52h sobre as quais não poderia discorrer-se, muito menos filosofar.

Sou a nova vizinha do rés do chão. Arranja-me um pé de salsa?

Alberto já a conhecia – mas do capacho. Nesta tendência permanente, quiçá de uma limitação patológica, de pregar a sua atenção nas menoridades do quotidiano, deu em tecer considerações íntimas sobre tapetes de esparto e tipos de pessoas. O que motiva o simples mortal a comprar este ou aquele modelo? Há algum sinal exterior de onde possa inferir-se uma formação académica, um nível social ou financeiro, uma opção de vida? De facto, percebera que a vizinha usava um modelo que fazia publicidade a uma bebida energética, algo que ele nunca experimentara por temor dos efeitos. O que revelava aquele capacho por comparação com o seu, trivial e esfiampado nas orlas? 

A frase

Sou a nova vizinha do rés do chão. Arranja-me um pé de salsa?

fora proferida por uma mulher bonita, elegante, com umas calças justas, botas até ao joelho e decote sensual.  Imaginou-a, face a uma camisa caprichosa, a hesitar entre apertar o botão, e revelar pudor, ou não apertar, e mostrar volúpia. A vizinha estava de frente para ele, o que era vagamente perturbador, porque Alberto gostava agora de apreciar as mulheres ligeiramente por trás, para lhes descortinar os contornos - a ondulação elegante de umas costas, o desenho de um pescoço ou de um pedaço da maçã do rosto, um braço em ângulo que esconde o perfil de uns seios discretos. Apesar disso fixou a frase que lhe abriu uma possibilidade com tendências para certeza. Ele, Alberto, tinha sido observado nas suas entradas e saídas de casa e o pedido da vizinha, mais do que a necessidade de um raminho de Petroselinum crispum (outra inutilidade cultural) era uma porta que se abria, um convite, um desafio, uma hipótese, uma sugestão.

Imaginou-se a dizer-lhe que sim, a convidá-la a entrar, a levá-la à cozinha, a abrir a porta do frigorífico e ela a dizer deixe, beije-me, abrace-me e a querer fazer amor em cima da ilha de fórmica revestida a silestone, a desejar viver a loucura dos amores proibidos, dos corpos enroscados, das mãos peregrinas e exploradoras, das bocas ávidas, dos peitos desnudos e ofegantes, dos lábios frementes, da vizinhança solidária levada ao esplendor do desejo e da oferta, e ele a dizer sim, sim, era por si que eu esperava,  e a cobri-la de beijos e de luxúria, de frases tórridas, de mãos que se abrem além da possibilidade humana, de cinco dedos que são escassos para a voragem erótica que altera o eixo da terra num meio de tarde outonal.

Se calhar não tem... Deixe. Olhe, não leve a mal, mas tem um fio de caldo verde na barba...

Alberto olhou para o relógio. Eram 15.52 e tão cedo não haveria outra capicua.

JdB 

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* publicado originalmente em 25.10.12 

1 comentário:

Anónimo disse...

Apesar de barbudo, mais um bom conto.
ao

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