03 agosto 2022

Vai um gin do Peter’s ?

SHAKESPEARE NO CONVENTO DO CARMO

Até 20 de Agosto, estará em cena no Convento do Carmo a peça divertida e inspirada do bardo inglês «MUITO BARULHO POR NADA» (Much ado about nothing). A tradução para português tem o selo de qualidade de Sophia de Mello Breyner Andresen. A interpretação está a cargo do talentoso grupo Teatro do Bairro. E a beleza do cenário, no interior das ruínas do Convento, com os arcos ogivais góticos bem recortados contra o azul-escuro do céu límpido de Verão, amplia a poética de Shakespeare. Recomendação prática: levar um bom agasalho, porque a brisa das noites lisboetas pode enregelar-nos em minutos. 


A comédia arranca com dois jovens muito promissores e das melhores linhagens italianas a apaixonarem-se. A vida corre-lhes de feição. O próprio regresso a casa dos valorosos cavaleiros, depois de uma batalha onde confirmaram a sua valentia, inaugura um ciclo de paz e de prosperidade. É o merecido troféu dos nobres guerreiros.

À maneira de Shakespeare, a trama complica-se num ápice, quer por um par de personagens maliciosas apostadas em estragar os projectos felizes, quer por uma elevada percentagem de gente conspirativa, que consegue fazer despontar o romance mais improvável, apenas instigado por uma intriga benigna. 

O entrelaçado das teias humanas, que compõe o enredo, dá pretexto a diálogos extraordinários sobre a fragilidade da condição humana, a complexidade única que é cada pessoa e a misteriosa coabitação de bem e de mal a digladiar-se ferozmente para marcar o rumo dos acontecimentos. Por toda a obra de Shakespeare perpassa a observação de um crítico literário aplicada inicialmente à peça ‘HENRIQUE V’: «What we have here is one man’s battle with his inner demons, and also with France».

Sabemos que nem tudo o que parece é e ser ou não ser condensa o grande desafio da existência humana. Mas, na criatividade do dramaturgo inglês, esta subtileza contranatura sobre as aparências é levada ao limite, expondo toda a variedade de surpresas e contradições que comporta, a ponto de poder caber às personagens mais desastradas os actos certeiros, que acabam por reparar os estragos das armadilhas obscuras. 

Em Shakespeare, a luta entre o bem e o mal, entre o amor/a amizade e o ódio surge envolta num rendilhado de lusco-fusco. No curto prazo, singra mais rapidamente o mal e os seus ardis tenebrosos, depois sujeitando-se à longevidade precária da mentira. Como não reconhecer o famoso alerta sobre a maior esperteza dos filhos das trevas?... Igualmente rápidos a atuar são os sábios bondosos (que costumam ter idade provecta e concentrar-se numa figura única), desencantando soluções literalmente extra-ordinárias para reverter toda a malícia. Mas a execução proposta é mais lenta e depende da colaboração heróica dos que se lhe confiam (tipicamente, as jovens apaixonadas). Têm de avançar mais devagar para ajudarem mais gente a chegar mais longe. Nas comédias, o dramaturgo também costuma atirar para a ribalta figuras inaptas, a quem cabe a desmontagem no terreno das ciladas perversas. Há especial frisson em vê-los dar as estocadas certas que irão repor a ordem, apesar da pouca ou nula noção do alcance dos seus actos. A sua óbvia inconsistência soma às vantagens narrativas do suspense e do humor uma forte carga filosófica, porque dá a medida da grandeza imensa (de certo modo, escatológica) da boa intenção dos pobres de espírito, que atraem, com a sua docilidade natural, uma outra vontade capaz de conferir consistência e muita pontaria aos gestos meio acidentais desses incapazes. A sua inabilidade revela o invisível.  

As personagens mais densas e multifacetadas oferecem um caleidoscópio de surpresas, incluindo para o próprio, proporcionando mudanças de comportamento imprevisíveis e consequentes guinadas no argumento, tudo favorável ao bom suspense. 

Mulheres fortes, independentes e assertivas, que poderíamos pensar serem um produto das lutas feministas do século XX, afinal, já existiam (algumas) no século XVI. Beatriz assume uma concepção de amor com as exigências e a liberdade de movimentos que só seriam admissíveis nos homens. E ousa defendê-la com uma frontalidade invulgar no arquétipo feminino que associamos ao Renascimento. Para a indomável Beatriz não se vislumbrava homem à altura, segundo o seu diagnóstico: «He that has a beard is more than a youth, and he that has no beard is less than a man; and he that is more than a youth is not for me, and he that is less than a man, I am not for him». Resposta pronta ao tio duque, que a queria ver casada: «Not till God make men of some other metal than earth.» Mas quando, numa pirueta da vida, calhou apaixonar-se por um cavaleiro improvável, faz uma constatação sobre o amor com o seu típico toque de racionalidade adverso a sentimentalismos, mas também a noção do seu temperamento crítico ad nauseam: «I love you with so much of my heart that none is left to protest».

Significativamente, o nome da apaixonada e maior vítima da tramoia perpetrada pela estranha figura do invejoso-mor e do anti-amor (D.João), é «Hero», cujo nome substantiva um adjetivo com leitura directa na língua inglesa. Nesta tragicomédia, cabe a Hero o papel da mártir, felizmente, com oportunidade de reabilitação ainda em vida, embora tome a aparência de acontecer postumamente. É no silêncio corajoso com que enfrenta as piores calúnias, impotente para se defender, que a amada amaldiçoada corporiza a definição de Bob Dylan para o heroísmo: «I think of a hero as someone who understands the degree of responsibility that comes with his freedom.» Diz muito daquela noiva ter aceitado viver até às últimas consequências as várias decisões que tomou, das atractivas às amargas, apanhando-se a arcar com o preço da liberdade. Face a acusações vis, que lhe ensombram o futuro, Hero preferiu a espera discreta, demonstrando uma tranquilidade invulgar a reagir aos sobressaltos da vida. Quando embarca confiante no expediente que o tio lhe propõe para dar tempo à dissipação das horrendas suspeitas de que é acusada, Hero ilustra a acepção de herói professada por Tom Hanks: «A hero is someone who voluntarily walks into the unknown», quando se intui corresponder a um bom caminho. 

Faz sentido que provenha do dramaturgo que desenhou esta heroína a interpelação positiva que Shakespeare associa aos próprios reveses: «If you find yourself banished from the city of Rome, consider it a challenge» (na peça ‘CORIOLANOS’).

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

SINOPSE: Hero e Cláudio conhecem-se, apaixonam-se e combinam casar, beneficiando do aval do Duque, pai de Hero. Enquanto preparam os festejos da boda, conspiram com D.Pedro para juntarem Benedito, um arrogante solteirão, com Beatriz, sua céptica e cáustica adversária. Enquanto isto, uma iminência parda – o príncipe bastardo D.João – maquina contra o casamento dos dois amantes, acusando Hero de infidelidade. No final, tudo se deslinda e recompõe, resultando em "muito barulho por nada”.

FICHA ARTÍSTICA: 
Texto: WILLIAM SHAKESPEARE de 1598-1599; 
Tradução SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN. 
Encenação ANTÓNIO PIRES;  
Cenografia: ALEXANDRE OLIVEIRA 
Produção AR DE FILMES / TEATRO DO BAIRRO.
ELENCO: ANDRÉ MARQUES, CAROLINA CAMPANELA, CAROLINA SERRÃO, EDUARDO FRAZÃO, GRACIANO DIAS, GONÇALO NORTON, HUGO MESTRE AMARO, JOÃO BARBOSA, JOÃO SÁ NOGUEIRA, JOÃO VELOSO, MARIANA BRANCO e MÁRIO SOUSA. 
LOCAL: Museu Arqueológico do Carmo. 
PREÇOS Plateia (com lugares marcados) - 16€.

2 comentários:

Anónimo disse...

Maria Zarco: Muito bom post. Rico e sóbrio.
Cumprimento-a
ao

Anónimo disse...

Muito obrigada pelo comentário tão simpático e encorajador. MZarco

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