15 fevereiro 2023

Vai um gin do Peter’s ?

 COMO A MEMÓRIA NOS REVELA  

Dependendo dos colégios por onde uns e outros andaram, assim terão sido mais ou menos frequentes os pedidos de redacções, ora com assunto pré-definido, ora de tema livre. Nos pré-fixados repetiam-se invariavelmente “as férias”, “o Natal”, o fim-de-semana, cada estação do ano, a escola, os amigos, num déjà vue cansativo, em que era custoso não replicarmos o que tínhamos escrito uns meses atrás. Por vezes, surgia um assunto mais inspirador, que nos ajudava a sair do marasmo comum, como experimentei com uma professora do liceu, mais pop, que recolhia ideias nos jornais, a partir de acontecimentos recentes ou de debates na ordem do dia. Essa aproximação a uma realidade mais colorida instigava-nos a investigar a matéria, a estruturar ideias e a esboçar um ponto de vista, conforme nos era dado ver e conhecer do dito assunto. 

Nesse esforço de escrita percebiam-se bem os temas que inspiravam uns ou outros, revelando um pouco da fase em que estávamos, ora tocados por experiências pessoais, ora estimulados por uma matéria política candente, ora fixados no hobby preferido, ora sensíveis a gestos contagiantes de outros. Tinha algo de pedagógico participar nesse exercício, onde se observavam múltiplas evoluções ou simplesmente percursos ziguezagueantes típicos do crescimento. O teste do algodão vinha, quase sempre, nas incursões retrospectivas, fossem narradas com maior preocupação com o vivido ou viessem mescladas com as afectividades individuais, únicas. Percebia-se quanto a memória se guiava (e guia) pelo caminho do coração. Por isso é deliciosa e diz muito deste aluno a redacção onde traça a professora da primária com tamanha estatura e gratidão, mesmo supondo que a protagonista merece ser assim lembrada. Mas quantos dos seus alunos lhe reconhecem este contributo para o seu desenvolvimento?

«A  MINHA  PROFESSORA 

Chega setembro e voltámos à escola. Ou, mais estrondoso ainda, ingressámos na escola pela primeira vez. Com que palavras se evocam essas figuras que, nos anos primeiros da nossa formação, nos ensinaram não só a ler e a contar, mas antecipadamente nos revelaram o que viria a ser impacto disso na nossa vida. São figuras matriciais, protagonistas pacientes que não se assustaram com a nossa turbulência e ignorância, que ativaram em nós o espanto, a inteligência e a dedicação, e fizeram de nós aquilo que depois seremos até ao fim: aprendizes.

“SÃO (…) PROTAGONISTAS PACIENTES QUE NÃO SE ASSUSTARAM COM A NOSSA TURBULÊNCIA E IGNORÂNCIA, QUE ATIVARAM EM NÓS O ESPANTO, A INTELIGÊNCIA E A DEDICAÇÃO”

Há dias dei comigo a pensar numa das minhas professoras do ensino primário. Conheci-a no último ano do primeiro ciclo do ensino básico, a então quarta classe. Havia feito os anos iniciais de escolaridade em Angola e chegava à Madeira, onde para mim tudo era novo e, certamente, também difícil, penso eu agora. A escola ajudou-me a refazer de dores de que eu não era consciente. Lembro-me de três episódios. O primeiro foi uma aula fora da escola, por meados de outubro: a professora levou-nos ao caminho do cais, serpenteado de grandes árvores, para que recolhêssemos folhas de outono. Eu até aí não sabia o que era o outono, habituado às duas estações africanas. Entreguei-me, por isso, àquela atividade um bocado às cegas, valorizando erroneamente alterações mínimas nas folhas, coisas que o verão produzira nelas. Enchi as mãos de folhas que me fizeram ouvir aquela que é a primeira frase que recordo da professora: “Essas não são ainda as folhas do outono.” A verdade é que, não sei bem porquê, recebi aquela correção sem descorçoar. Deve ter sido feita no tom certo. Voltei àquele caminho sozinho e com mais atenção. Encontrar o outono nas folhas tornara-se uma tarefa pessoal importantíssima e depressa aquelas folhas amareladas e vermelhas, como se fixassem em si uma labareda, vieram a ser a minha primeira coleção, para desconcerto dos meus irmãos e primos, que seguiam com ironia e desespero aquele meu súbito arrebatamento de caçador de inutilidades. Porém, alguma utilidade tiveram aquelas horas perdidas, pois, quando a professora nos pediu uma composição escrita sobre o outono, tinha alguma coisa para dizer. Isso, porém, não diminuiu a surpresa que para mim foi o modo como a professora festejaria a minha composição, colocando-a num quadro de cartolina, dependurado numa das paredes da sala. Experimentei contentamento e vergonha, pois na infância tudo nos custa mais do que se mostra, até a alegria. Este foi o segundo episódio. O terceiro foi dramático e não teve nada de escolar, mas atesta como os professores humanizam a escola, evitando que ela se torne uma máquina de processos e de técnicas. O barco onde trabalhava o meu pai não tinha entrado no porto, falava-se à boca pequena de um possível naufrágio e que os tripulantes estariam dispersos, e, quem sabe, mortos. A minha mãe sacudia como podia a nossa angústia e não tinha dúvidas de que o melhor seria não faltarmos à escola. Assim foi. Recordo que o nó que tinha na garganta estrangulava o meu corpo e que choramingava. A professora falou-me com desembaraço, como se fala aos crescidos nesses momentos, mas deu depois uma parte da aula sentada a meu lado.

Sei muito pouco da vida desta mulher maravilhosa que na minha cabeça ficou sempre como “a minha professora”. E o nosso encontro mais recente, teve o seu quê de cómico. Ela assistiu a uma sessão em que eu falava e no final veio cumprimentar-me. Senti uma emoção que não fui a tempo de esconder. E atrapalhado perguntei se ainda dava aulas. Ela deu uma gargalhada e, nesse momento, os nossos olhos com doçura se cruzaram. Só então me dei conta de como e porquê, dentro de nós, fantasiamos que o tempo não passa.»

– José Tolentino Mendonça – publicado na
revista do semanário “Expresso” de 5.SET.2020  

É significativo este artigo ter sido publicado no rescaldo do regresso às aulas, após 6 meses de ausência para a maioria dos miúdos, devido ao confinamento decretado em Março de 2020, a que se juntaram os 2 meses de férias. Meio ano longe da escola é muito tempo na vida de quem tem pouca idade! Partilhar uma lembrança tão positiva sobre quem mais nos pode ajudar na escola foi mesmo certeiro, ainda que o texto possa ter demorado a chegar aos mais novos. 

O final oferece uma chave óptima sobre as vantagens do olhar capaz de repassar a vida sob um ângulo positivo, não por embelezamentos artificiais, mas pela capacidade de guardar o que vale a pena! É um apelo ao dom do discernimento começando por encarar a vida como mistério. Não se confunde com um branqueamento do passado, mesmo que por motivos de higiene psicológica (tentação compreensível). Não é fantasia que algum tempo não passa, antes sustenta a trama da nossa vida, graças à memória! Isto é notório nas pessoas mais velhas, mais desmemoriadas, mas ainda com acesso ao passado distante. É refrescante ouvir e ler memórias tão agradecidas ao passado. Sim, também somos feitos do património de vida acumulada, que a memória preserva como as flores mais importantes do jardim, regando esses segredos antigos com a água e os truques vitamínicos que encontrar (ou não) no nosso coração, ora revitalizantes, ora amargosos e sombrios; ora livres e respeitadores, ora julgadores e assertivos… 

De certo modo, viver é relativamente fácil. O desafio está em saber viver e saber recordar, segundo o sábio conselho: ficai com o que é bom

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

1 comentário:

Anónimo disse...

Não me faz prurido que aprecie o Calaça de Mendonça. É um bom poeta, um bom escritor.
Já me faz prurido por as barbas do dito junto a Sua Santidade. Não bate a bota com a perdigota.
Cumps

Acerca de mim

Arquivo do blogue