18 maio 2015

Vai um gin do Peter’s?

Um filme salvo pela qualidade histórica do argumento é «LABIRINTO DE MENTIRAS»(1)   cujo título alemão é bem mais sugestivo: Labirinto de silêncios. Não que faltem mentiras. Mas é sobretudo a falta por omissão que impera. Muito interpelativo a rever e julgar erros, embora correndo o risco de se entrincheirar numa lógica justiceira onde dificilmente há lugar ao perdão e à reabilitação.

A loucura de uma investigação aos milhões de documentos
cuidadosamente escritos e arquivados pelo Reich.

A trama baseia-se em factos verídicos, despoletados em 1958, praticamente uma década depois do fim da II Guerra. O processo de mudança irrompe quando a nova geração alemã, que só presenciara o conflito na primeira infância, começa a invadir o mercado de trabalho e introduz uma perspectiva diferente da história, sem perceber nem aceitar a colaboração da maioria dos seus compatriotas com o regime nazi. No pós-guerra, volta a não perceber o silêncio opaco sobre esse passado recente, em que apenas houvera oportunidade de julgar as cúpulas do Reich: menos de 50 pessoas. Onde estariam todos os outros? Só Auschwitz tivera 8000 guardas prisionais, responsáveis por atrocidades indizíveis. Faria sentido a sociedade reintegrá-los acriticamente e isentá-los de julgamento?

Assinado por um realizador italiano, também co-autor do argumento, a película começa por fazer desfilar personagens relevantes para o enredo, deixando claro o seu carácter indelével, que orientará as suas atitudes e acções posteriores. Assim, vemos junto ao gradeamento de uma escola um artista de olhar triste, a arrasta-se com a paleta de tintas. Preparando-se para fumar um cigarro, quase colapsa ao reconhecer um indivíduo, muito hirto e solícito, que lhe oferece lume.

Em 1958, à semelhança daquele indivíduo (agora professor primário), toda a cidade de Frankfurt transborda de aprumo, com uma organização bem oleada, a funcionar primorosamente como um relógio de cuco. Revelador da capacidade de reconstrução recorde da Alemanha Ocidental. Mal se adivinharia que aquele país estivera 10 anos antes no epicentro de uma guerra tremenda, de onde saíra derrotado e em ruínas. À parte do mérito da reconstrução fulgurante, o ambiente pacato e descomprometido da sociedade – a saborear a moda das scooters coloridas e dos vestidos de tule em tons primaveris e estampados florais – não parecia coadunar-se com a cumplicidade da maioria daqueles cidadãos com um regime cruel e belicista.

Johann com a namorada

Os tempos correm depressa e o filme foca os animados anos 50, na sede da Procuradoria de Frankfurt, onde juristas de elite andam atarefados com milhares de processos sobre todos os crimes, excepto os da II Guerra. Tabu absoluto. Mas nada melhor para desestabilizar o status quo do que um novato ambicioso e cheio de brio – Johann Radmann –  confinado a dossiers insignificantes, à base de infracções às regras de trânsito. Claro que sonha em emancipar-se de minudências e assumir casos importantes, de vida ou de morte. Percebemos na sua aparição em tribunal, no início da película, que partilha o rigor germânico, q.b. inflexível, apesar do olhar afectuoso e eivado de idealismo. Que até confirmou ter, embora com boa dose de intransigência e imaturidade. Cabe-lhe ser o protagonista desta narrativa, povoada de típicas ilusões e decepções.

A acção inicia-se, depois, com uma peripécia em volta do tal professor alemão que fora reconhecido por um sobrevivente de Auschwitz (o tal a quem o ex-SS se aprontara a acender o cigarro) e que ninguém na Procuradoria estava disposto a investigar. O caso é levado aos Procuradores por um jornalista exaltado, de aspecto subversivo e justiceiro, algo anarca, que todos se habituaram a ignorar. Excepto Johann, que aproveita aquela oportunidade de ouro para se lançar numa mega investigação, sem imaginar que iria relembrar a página mais negra da história da Alemanha.

O jornalista reivindicativo a irromper pela Procuradoria com o sobrevivente de Auschwitz, seu amigo. No friso de trás, à esquerda: Johann ao lado da secretária hiper competente e bondosa

Como é apanágio dos filmes históricos, também aqui se presta a devida homenagem a quem ousou alterar as mentalidades alemãs do pós-guerra, contra ventos e marés. Soma ainda a vantagem de revisitar o passado para dele tentar extrair lições, forçando os implicados na tragédia do III Reich a assumir responsabilidades pelos seus actos. Redundando num processo de auto-conhecimento e de auto-avaliação, acaba por expor as fraquezas e os pontos fortes de um povo, contrapondo duas épocas próximas e aparentemente opostas, entre a ofensiva de 1939-45 e a tranquilidade próspera de 1958. Dois tempos assentes na notável eficiência germânica. Umas máquinas… de efeitos perversos quando postas ao serviço da guerra.   

Na investigação por sua conta, com o voluntarismo próprio da pouca idade, o novato do «Labirinto de Mentiras» é logo torpedeado pelos colegas e, em seguida, pelo oficial americano que guarda os arquivos nazis e nem acredita que um alemão quer mesmo reagitar o fantasma do conflito e da culpabilidade dos cidadãos, hoje tornados anónimos. Mas nada faz vacilar o jovem jurista, nem mesmo o erro de, involuntariamente, ter passado informações internas ao tal jornalista agitador e ousado. O certo é que o Procurador-Geral percebe a verve do seu jovem colaborador e dá-lhe carta branca para vasculhar um passado tão difícil quanto humilhante, que beliscará gente VIP, arriscando-se a abrir fraturas numa sociedade recém reerguida das cinzas.

À medida que as descobertas de Johann avançam, também as pessoas se revelam… A quantidade de esqueletos descobertos no armário é assustadora. Fará impressão a muitos reencontrar os antigos algozes pacatamente reinseridos na sociedade, a trabalhar em escolas, escritórios, no pequeno comércio ou em lugares de destaque na administração pública.  



No desenho variado das personagens ressalta o carácter sólido e íntegro da funcionária mais subalterna da Procuradoria – a secretária maternal que acorre a todos os dossiers, sempre diligente e eficaz. Firme como uma rocha, possui a sobriedade dos povos do Norte da Europa. Uma das suas saídas emblemáticas é o repúdio silencioso, mas inequívoco, à despedida de Johann, quando este se cansa da investigação labiríntica que lhe fora confiada e resolve ir ganhar principescamente para o outro lado da trincheira, num escritório de advogados de defesa, cheio de êxito. Felizmente que o idealismo do imberbe procurador se choca, de imediato, com o mercantilismo amoral de uma indústria de defesa, especializada em contornar as leis segundo os interesses dos clientes, sem escrúpulos. Nada poderia ferir mais o lema herdado do pai, que adoptou como mantra: Veritas.  

Com a secretária fantástica.

Ainda assim, a incursão de Johann ao lado menos escrupuloso da justiça fora menos movida pelo dinheiro do que pelo desânimo face à avalanche de revelações sobre os seguidores de Hitler, a incluir o seu mentor e herói: o pai, igualmente jurista! Não bastava o desgosto de o saber perdido em combate, prisioneiro de Estaline em parte incerta, para agora lhe descobrir uma faceta sombria, que nunca imaginara.

Numa investigação dolorosa a todos os títulos, a infligir-lhes desgostos pessoais grandes, Johann amadurece muito, percebendo o risco de se arvorar em juiz puro à caça de cadastrados não-assumidos. À medida que desvenda e consegue levar a tribunal os torcionários de Auschwitz, aprende a matizar a realidade, a reconhecer atenuantes e a ter a coragem de evoluir de “nãos” proferidos com o orgulho dos que se tomam por impolutos, para o “sim” mais humilde e solidário com a frágil condição humana. No fundo, ganha realismo. É disso prova a humildade com que acabou por anuir ao pedido do pintor judeu e, não só se prontifica a ir ao Campo de Concentração proferir a oração hebraica pelas filhas pequeninas ali mortas, como aceita a companhia do jornalista, também ele ex-funcionário do Campo, recrutado à força, aos 17 anos!

De facto, Veritas revela-se um mantra extraordinário, ultrapassando os limites do ecrã. Profundamente transfigurador. Ideal para nos humanizar, à medida que nos vamos imbuindo dessa luminosidade impregnada de Amor, que constitui a trama da vida, marcada com o selo de veritas. Paradoxal? Utópico? Só na aparência.     

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA


Título original:
Im Labyrinth des Schweigens
Título traduzido em Portugal:
Labirinto de Mentiras
Realização:
Giulio Ricciarelli
Argumento:
Giulio Ricciarelli e Elisabeth Bartel
Produzido por:
Duração:
122 min.
Ano:      
2014
País:
Alemanha
        Elenco:

Alexander Fehling (como Johann)
André Szymanski (o jornalista)
Friederike Becht (namorada de Johann)


Trailer oficial:

Hansi Jochmann  (a secretária )


www.youtube.com/watch?v=yZtY0LBbvak

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