26 outubro 2015

Das boas pessoas



Há dois ou três anos, numa missa de finados, o padre, amigo óbvio do desaparecido, elogiou-lhe fortemente as virtudes humanas. Ao meu lado, alguém me diz ironicamente, sem um minuto de hesitação: "ouvi dizer que era insuportável em casa". 6ªfeira passado recebo um elogio fúnebre sobre alguém que desapareceu recentemente e que conheci relativamente bem. O nome masculino "elogio" está correcto, independentemente de ser uma expressão vulgar quando ligado ao adjectivo "fúnebre". Era de facto um elogio, e para o caso pouco interessa saber se merecido ou não. Para mim basta-me que contivesse muita verdade.

O parágrafo acima deriva de uma pergunta que me fazem e que suscita uma conversa toda feita de interrogações: o que faz de nós boas pessoas? Isto é, o que nos leva a dizer que o manel ou a maria são boas pessoas, ou que nem o manel nem a maria são boas pessoas? A conversa assenta numa pergunta inicial mais incisiva: uma pessoa generosa é uma boa pessoa? Tendo a dizer que é uma condição necessária, mas não é suficiente. Um mafioso, pelo menos segundo o paradigma dos filmes, pode ser um homem generoso: num minuto empresta dinheiro a um amigo ou proporciona-lhe uma viagem a Las Vegas para jogar e beber e, no minuto seguinte, calça uns sapatos de betão a um traidor e atira-o ao rio, ou manda dizimar uma quantidade imensa de inimigos que, à saída de uma missa, sonham com um prato de spaghetti alla putanesca com os filhos e sobrinhos vestidos de ver a deus. 

O que faz de nós boas pessoas? A generosidade sobrepõe-se à ira? O sentido de justiça é mais forte do que o orgulho? Uma índole pacificadora tem mais impacto do que um comodismo exacerbado? As virtudes são sempre melhores do que os defeitos, diria La Palice. Coexistindo na mesma pessoa, que critérios utilizamos para aferir a contabilidade entre uns e outros? Não sei. Só sei - e isso sei - que de algumas pessoas afirmo que são muito boas pessoas e que de outras pessoas elogio as qualidades, por vezes bastantes. O que diferencia umas das outras? Na minha cabeça é de tal forma intangível que não sei dizer com exactidão. Talvez seja um conjunto de virtudes humanas com impacto no próximo que as leva a serem promovidas a "boas pessoas".  Ou será a ausência de alguns defeitos? Vemos os outros pela positiva ou também pela ausência de negativa? Há defeitos que nos impedem de sermos boas pessoas, mesmo que tenhamos um bom punhado de qualidades?

Regresso aos mortos. Em O Primo Basílio, há o seguinte diálogo:

- Até já fiz construir, sem vacilar, no Alto de S. João, a minha última morada. Modesta, mas decente. É ao entrar, no arruamento à direita, num lugar abrigado, ao pé da choça dos Veríssimos amigos.
- E já compôs o seu epitáfio, Sr. Conselheiro? — perguntou Julião, do canto, irónico.
- Não o quero, Sr. Zusarte. Na minha sepultura não quero elogios. Se os meus amigos, os meus patrícios, entenderem que eu fiz alguns serviços, têm outros meios para os comemorar; lá têm a imprensa, o comunicado, o necrológio, a poesia mesmo! Por minha vontade, quero apenas sobre a lápide lisa, em letras negras, o meu nome - com a minha designação de conselheiro -, a data do meu nascimento e a data do meu óbito. 
E com um tom demorado, de reflexão:
- Não me oponho todavia a que inscrevam por baixo, em letras menores: «Orai por ele.» 

O elogio fúnebre, sobretudo se for em sentido único, pode surtir um efeito contrário. Isto é, à conta de tantos encómios - como se qualquer finado não fosse um caldo onde viveu a luz e a escuridão, o bem e o mal - é normal que nos lembremos rapidamente de alguns defeitos que equilibrem o epitáfio tirando-lhe um pendor excessivamente elogioso. Nem todos somos boas pessoas porque nem sempre o queremos, ou nem sempre o conseguimos, ou talvez estejamos iludidos quanto à bondade do nosso caminho. Morrer com essa certeza - relativamente a nós ou aos outros - é morrer com a noção reconfortante de que partimos humanos, incompletos, mas sempre filhos de um Deus que nos recebe por igual.

Quando chegar a minha hora serei lembrado pelos amigos e familiares que me sobreviverem. Não haverá imprensa, necrológio - menos ainda poesia. Em tudo sendo justo não haverá elogio fúnebre ou homilias laudatórias. Talvez não me oponha, como diria o Conselheiro Acácio, a que inscrevam uma singeleza por baixo das memórias que terão de mim: tentou imperfeitamente. Mais do que isso não, não vá alguém afirmar ironicamente: "ouvi dizer que era insuportável em casa".

JdB

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