27 novembro 2017

Da tecnologia enquanto carrasco

Por mais diferentes que sejam entre si, todas as gerações vão tendo pontos em comum, até que estes desaparecem na dinâmica da modernidade ou da mudança de valores, sendo substituídos por outros: o peso da palavra dada e de um aperto de mão, o cavalheirismo em relação às mulheres ou a deferência pela hierarquia, a importância do clero, dos oficiais das Forças Armadas ou dos professores primários, a consideração educada por quem era empregado ou inferior hierárquico. Muitos destes valores desapareceram, não havendo garantia que o seu desaparecimento se deva aos melhores motivos. No entanto, há um ponto em comum que permanece de geração em geração, materializado numa frase que tem o peso das frases sábias e, simultaneamente, maçadoras: no meu tempo é que... Ora, a constância desta frase ao longo das gerações deve-se ao facto muito simples de ser em muitos casos verdadeira, e a inexorabilidade do progresso constituir apenas uma ideia bonita - ainda que nefasta.

Elenquemos, neste raciocínio que não é mais do que um devaneio dominical, vários elementos do nosso quotidiano: whatsapp (como expressão genérica de algumas redes sociais), casa de jantar, papel de carta. O que une estes três itens aparentemente tão diversos? A solução do exercício não requer um esforço intelectual de rara dificuldade. Há um elemento comum: a comunicação. Nada fez tanto pela destruição da comunicação do que o surgimento do primeiro item e o desaparecimento dos dois últimos. Embora se fale muito - e com razão - no facto das pessoas viverem cada vez mais isoladas estando cada vez mais próximas, o surgimento das redes sociais afectou, entre mil e uma coisas que só o futuro determinará, a ideia de conversa como a tínhamos até ao fim das casas de jantar, ao advento dos programas de televisão a qualquer hora, à publicitação despudorada e permanente de informações pessoais e de vídeos de saloios que roubam castanhas ao vizinho. A qualquer minuto há um amigo que partilha um restaurante, uma fotografia de uma boazona que tritura cartões de crédito, um filme sobre cheias no Sri Lanka ou indígenas que não sabem dizer a palavra beginning. Numa cozinha, ou numa sala a ver televisão, as conversas são cortadas pelo telemóvel que apita para partilhar uma anedota viral e pela confusão dos tempos em que as coisas - conversar, ver telemóvel, partilhar coisas - devem ser feitas. O whatsapp (sobretudo este meio, até porque os outros não domino) deram a machadada final na estertor que já havia sido iniciado pelo fim da casa de jantar enquanto espaço de partilha, de conversa, de educação para a vida, de aprendizagem.

Perguntar-me-ão, os que aguentaram até aqui, o que lá faz o papel de carta. Pois eu explico: o papel de carta, usado como tal, foi, em grande medida, o vínculo duradouro entre as pessoas. O papel de carta é o oposto do whatsapp - e não me refiro, obviamente, ao suporte tecnológico. A tecnologia transformou a nossa comunicação em algo momentâneo, frívolo, ligeiro, sem presença no futuro nem evidência de existência. A tecnologia transformou a nossa comunicação numa sucessão entrecortada de frases, porque a tecnologia suscita eficácia, rapidez, imediatismo. A tecnologia é o pingue-pongue da evolução científica. O papel de carta requeria cuidado com a caligrafia, com a disposição estética do texto, com a legibilidade e com o pensamento. A tecla delete - ou equivalente - permitiu-nos o outsourcing dessas tarefas. As cartas, por outro lado, eram registos (quase) permanentes de comunicação entre as pessoas. Agora tudo se apaga, em nome do espaço que esse tudo ocupa. 

Nos dias de hoje não se está; nos dias de hoje faz-se. A vida moderna, e muito bem em determinadas circunstâncias, está feita para a acção, para o consumo (aparentemente) produtivo do tempo, relegando a ideia de tempos livres para aqueles que não sabem fazer nada (os defuntos da produtividade) ou para aqueles que aguardam que os progenitores os resgatem aos estabelecimentos de ensino. Dantes conversava-se, talvez porque não houvesse mais nada para fazer. Hoje não se conversa, talvez porque há tudo o resto para fazer. 

O mundo mudou. A consideração pelas professoras primárias, oficiais das forças armadas ou padres é uma consideração pelo ser humano, não pelo profissional. O cavalheirismo relativamente às senhoras caiu em desuso, porque há a igualdade e o assédio, e talvez haja menos senhoras... O trabalho em casa é mais repartido, porque há a consciência e a consideração. Etc., etc., etc. No entanto, relativamente à perda do gosto pela conversa, ao desinteresse pela conversa, à ideia de conversa como perda de tempo, direi a frase: no meu tempo é que... Mesmo que o meu tempo já tivesse morto coisas de outros tempos...

JdB

2 comentários:

Anónimo disse...

modernidade liquida.

Anónimo disse...

Muito de acordo, v.g., concordando.

Tivemos televisão no 2o ano da RTP. O aparelho ficou na casa de jantar por um ano e meio. Meu Pai fez obras e o dito foi para a sala para os miúdos, para a sala de jogar cartas. Ele tinha razão: 'cortava' o convívio.

Agora, depois de uns bons 70 anitos, ainda escrevo. Muitas vezes por e-mail. Outras vezes, arrumo recordações ou ideias minhas — claro que evoluídas pelas ideias de outros. Isto é 'investigação', não é plágio'...
Nos textos no computador escrevo e re-escrevo. Um .doc de 40 páginas tem uns 3 a 6 meses de 'consertos'.

Quando acho que o assunto é assunto solene, uso os CTT e escrevo com caneta de tinta permanente com um aparo 'largo' — num azul-turquesa que descobri pelos 30 anos.
As esferográficas são óptimas mas desgraçam a caligrafia.
O escrever com caneta de tinta permanente obriga a não desperdiçar pensamento, palavras, nem papel. Tem que se elaborar muito bem o que se sente.

Graças a Deus nunca fui a uma rede social. Tenho o sentir de que de nada prestam.

E, com isto... lá foi meia-hora.
Abraços

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