24 novembro 2017

Ver diferente

Então o bom gigante fez um prodigioso esforço, e a cada passo, meio desfalecido, os olhos turvos, a cada instante lançando a mão para se arrimar, tropeçando, com grossas gotas de suor que se misturavam a grossas gotas de sangue, rompeu a caminhar, sempre para cima, sempre para cima. Os seus pés iam ao acaso, no desfalecimento que o tomava. Uma grande frialdade invadia todos os seus membros. Já se sentia tão fraco como a criança que levava aos ombros. E parou, sem poder, no topo do monte. Era o fim: um grande sol nascia, banhava toda a terra em luz. Cristóvão pousou o menino no Chão. e caiu ao lado, estendendo as mãos. Ia morrer. Então entreabriu os olhos, e no esplendor incomparável reconheceu Jesus Nosso Senhor, pequenino como nasceu no curral, que docemente, através da manhã clara o ia levando para o Céu.

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Índia, Janeiro de 2017


Não me parece que vá dizer nada de novo neste post.

1) Há un anos pediram-me para escrever um texto com base em cenas da vida de Nossa Senhora, um conjunto de quadros da Paula Rego que estavam no palácio de Belém.  Não gosto de Paula Rego.

2) Durante muitos anos não gostei de Alfredo Marceneiro a cantar fado. 

3) Ler Shakespeare ou este trecho de Eça de Queiroz, sobre S. Cristovão é ler textos bem escritos, de escritores cuja mestria perdura no tempo.  

*** 

Nenhuma das frases acima é mentira. Não gosto de Paula Rego, não gostava de Marceneiro, este texto (ou outros de outros escritores consagrados) é muito bonito. No entanto, apesar da veracidade das afirmações, todas pecam pela incompletude. Não gosto de Paula Rego, repito, mas a mestria, a criatividade, o mundo interior da pintora ficaram bem patente depois do assessor cultural do presidente da altura me ter explicado o que significavam as figuras, os pormenores, o fio condutor que une tudo. A forma como olhei para aqueles quadros mudou substancialmente.

Se quisesse ser um pouco radical diria: não gosto de ouvir um fado do Marceneiro, mas gosto se ouvir todos. Porquê? Porque ouvir tudo é perceber o estilo, a escola criada. É, à semelhança do que aconteceu com a explicação dos quadros de Paula Rego, perceber o fio condutor de uma carreira. 

Por último. Ler Shakespeare pode ser, apenas, ler Shakespeare: quem matou quem, quem atraiçoou quem, que frases ficaram para a posteridade. Mas, explicada a obra, há muito mais interesse na interioridade dos personagens do que na história dos dramas. A Lady Macbeth ou Othello têm uma densidade que ultrapassa em muito os seus actos. Mas é preciso que me expliquem...

Por último, ler o texto acima não é ler um texto bonito, apenas. Há ali uma lição: a ideia de paraíso como destino de recompensa, a certeza de que no rosto do nosso próximo mais fragilizado se reflecte o rosto de Cristo, ou que os ombros que oferecemos a quem precisa, mesmo que para isso se rasguem joelhos e se sue sangue, é dar a mão à eternidade, à mão que docemente nos leva para o Céu.

Ver tudo, ver além do desfocado, ver de forma diferente. Ver mais, para perceber mais. Ou apenas ver diferente, sei lá eu.

JdB  

1 comentário:

Anónimo disse...

Bem!

Abr
fq

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