25 março 2019

Dos cuidadores informais - um outro olhar

Há algumas semanas participei, na sede do CDS, num encontro sobre cuidadores informais. Fi-lo enquanto presidente da Acreditar, até porque eu próprio, devo dizê-lo, não tenho experiência nessa matéria, para além daquela que nos cabe enquanto filhos disponíveis para pais mais ou menos idosos ou necessitados. Do ponto de vista da carga do trabalho (e excluo, daqui, o gosto com que se faz tudo) realizar tarefas pontuais ou vagamente continuadas é diferente de cuidar. Também é cuidar, mas no entanto...

O Estado tem uma relação com os cuidadores informais que assenta, forçosa e naturalmente, em coisas tangíveis: tempo de reforma, possibilidade de subcontratação ou de recorrer a uma rede de cuidados existente, folgas, direitos, etc. Desse ponto de vista, a existência do cuidador informal tem uma coluna de deveres muitíssimo maior do que a coluna de direitos. É forçoso, portanto, que se faça algo para mitigar a grande fragilidade e sobrecarga (tantas vezes sem contrapartidas, a não ser o amor) a que esta "classe" de pessoas está sujeita. Pessoas (e convivo de muito perto com uma), como já o disse aqui no estabelecimento aquando do encontro na sede do CDS, sem tempo próprio, presas a um dever e a uma responsabilidade, a um gesto contínuo, permanente (e ironicamente desgastante) de amor que não é valorizado pelo Estado.

O cuidador informal apresenta-se à sociedade de duas formas - e é assim que devemos vê-lo. Em frente a uma repartição dos ministérios que o tutelam apresenta-se com um cartão de cidadão, com uma folha de horas trabalhadas, com um histórico de contribuições para a segurança social, com uma folha modesta no que toca à previsão de reforma. Leva as despesas de saúde não reembolsadas, os fins de semana registados como de trabalho, as consultas de psiquiatria ou os episódios de desgaste em que atirou um copo à parede ou se sentou no chão a chorar. O Estado regista o que há a registar, e contabiliza o número de consultas de psiquiatria, mas não as causas que as geraram. O cuidador informal fala de amor, mas o Estado não sabe bem o que isso é.

O cuidador informal também se apresenta a cada um de nós, essa massa imensa de gente que não faz parte da máquina burocrática do Estado, totalmente despido. Uma mão aponta para a cabeça, a outra para o coração. Atentar nas mãos do cuidador é identificar o que é importante na sua actividade: o discernimento e o amor. Com o primeiro toma as melhores decisões, rodeia-se de quem o ajude, define o caminho que parece mais certo. Com o segundo - o amor - toma também decisões, porque o cuidador informal não tem uma tabuada à frente, precisa do coração para decidir com a cabeça. O segundo, o amor, é o combustível que o faz seguir em frente.

Ora, olhar para o cuidador não é olhar para um prisioneiro do amor, para um refém do altruísmo ou do dever. Olhar para o cuidador é olhar para um ser humano cheio de boas intenções, crivado de falhas, tentado pelo egoísmo (a que cede) ou vencido pela exaustão. Só há cuidador quando há alguém de quem se cuida. Nesse sentido a palavra (ou a função) é relacional e envolve os dois numa espécie de dança em que ambos têm uma função - ainda que nem sempre clara ou definida. A nós, a quem está de fora, cabe-nos olhar para o cuidador e perceber que nem tudo deve ser feito em nome daquele de quem se cuida, ou que o cuidador é uma espécie de marioneta sem vontade própria, sem angústias próprias, sem dúvidas próprias ou cansaços próprios, porque o importante - o verdadeiramente importante - é aquele de quem se cuida. O cuidador não é uma simples peça numa máquina - mas uma peça sem a qual a máquina não funciona. No limite, proteger o cuidador é proteger a relação, é proteger, também, aquele de quem se cuida.

Sobre o cuidador não pode cair o peso de uma frase mortífera: tudo tem de fazer-se em nome de quem precisa.O cuidador tem necessidades que o Estado não provê. E por vezes precisa de coisas simples: um toque, uma palavra, um incentivo, uma concordância, uma disponibilidade.

JdB

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