15 abril 2019

Poema e análise dos dias que correm

Vamos a hacer limpieza general

Vamos a hacer limpieza general
y vamos a tirar todas las cosas
que no nos sirven para nada, esas
cosas que ya no utilizamos, esas
otras que no hacen más que coger polvo,
las que evitamos encontrarnos porque
nos traen los recuerdos más amargos,
las que nos hacen daño, ocupan sitio
o no quisimos nunca tener cerca.
Vamos a hacer limpieza general
o, mejor todavía, una mudanza
que nos permita abandonar las cosas
sin tocarlas siquiera, sin mancharnos,
dejándolas donde han estado siempre;
vamos a irnos nosotros, vida mía,
para empezar a acumular de nuevo.
O vamos a prenderle fuego a todo
y a quedarnos en paz, con esa imagen
de las brasas del mundo ante los ojos
y con el corazón deshabitado.

Amalia Bautista in Cuéntamelo otra vez


***


Talvez haja poemas que se constroem como se fossem um artigo de jornal: uma primeira frase forte para prender a leitura, deixando que os pormenores se desdobrem em pirâmide. Amalia Bautista fez, no olhar de uma certa leitura, exactamente o contrário: deixou a força para o fim, como se quisesse que as duas últimas palavras ficassem a ressoar dentro de cada um de nós, numa reverberação permanente à qual nem o atrito faz frente.

A poeta espanhola usa uma expressão feliz - coração desabitado – e a felicidade da frase é imensa, porque se constitui, simultaneamente, numa consequência e numa causa de tudo aquilo que é dito nas linhas anteriores: desabitamos o coração porque limpámos tudo, limpamos tudo porque desabitámos o coração.

De um coração desabitado – e a expressão é uma espécie de punctum de que falava Roland Barthes – só de forma ingénua (ou pessimista, que é uma forma de ingenuidade) se poderá dizer que é um coração abandonado, como se fosse uma casa deixada à sua sorte, à infiltração do tempo e da chuva que tudo destrói. Muito pelo contrário, um coração desabitado é um coração aberto, disponível, como se fosse uma criança a passear pelo mundo com um saco vazio onde por tudo – o sabor do pão, a cor das ravinas, o aroma do eucalipto molhado, mas também o olhar das pessoas, o perfil dos rostos, os gestos das mãos e, com isso, formasse uma ideia aprazível do mundo.

Não limpamos porque temos a mais, limpamos para poder ter mais. Não deitamos nada fora, apenas nos afastamos das coisas, porque o coração habitado é, tantas vezes, o reflexo de um sítio e de um tempo, e se nos afastarmos disso estamos a distanciar-nos de tudo aquilo que em nós se perturbou e escureceu: os copos a mais, as roupas acumuladas, as mobílias, as amarguras, o olhar desviado do homem estendido na rua, a mão que se recolhe perante a mão desconhecida, um telefone que, no silêncio, nos dá a ilusão de um mundo sossegado. Mas também as tristezas que se agarram a nós e formam uma outra pele, as saudades das partidas antecipadas, as agruras que foram chão por onde caminhámos. 

Deixamos tudo, deitamos tudo fora, fazemos um fogueira com tudo. Amalia Bautista dá-nos liberdade total. Só nos impõe uma coisa: o coração desabitado, para com ele acolhermos o Outro. 

JdB

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