16 abril 2019

Poemas dos dias que correm

Atropelamento e fuga

Era preciso mais do que silêncio,
era preciso pelo menos uma grande gritaria,
uma crise de nervos, um incêndio,
portas a bater, correrias.
Mas ficaste calada,
apetecia-te chorar mas primeiro tinhas que arranjar o cabelo,
perguntaste-me as horas, eram 3 da tarde,
já não me lembro de que dia, talvez de um dia
em que era eu quem morria,
um dia que começara mal, tinha deixado
as chaves na fechadura do lado de dentro da porta,
e agora ali estavas tu, morta(morta como se
estivesses morta!),olhando-me em silêncio estendida no asfalto,
e ninguém perguntava nada e ninguém falava alto!

Manuel António Pina, in "Atropelamento e Fuga"

***

O Lado de Fora

Eu não procuro nada em ti, 
nem a mim próprio, é algo em ti 
que procura algo em ti 
no labirinto dos meus pensamentos. 

Eu estou entre ti e ti, 
a minha vida, os meus sentidos 
(principalmente os meus sentidos) 
toldam de sombras o teu rosto. 

O meu rosto não reflecte a tua imagem 
o meu silêncio não te deixa falar, 
o meu corpo não deixa que se juntem 
as partes dispersas de ti em mim. 

Eu sou talvez 
aquele que procuras, 
e as minhas dúvidas a tua voz 
chamando do fundo do meu coração. 

Manuel António Pina, in “O Caminho de Casa” 

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