05 fevereiro 2020

Da suspensão da incredulidade

Bebo café antes de uma aula sobre retórica e troco ideias com quem me faz companhia. Falamos de pessoas, uma que conheço, outra de quem só ouvi falar. Falamos de viagens, de desconhecido. Aqui há uns meses, esta mesma colega de café pediu-me uma definição de amor. Disse de rompante, com a lentidão apenas de escrever num telefone: confiança. E falámos disso, também.  

Foi Samuel Taylor Coleridge (Inglaterra, 1772 - 1834) quem cunhou a expressão willing suspension of disbelief que se traduziria em português por suspensão voluntária da descrença. É esta expressão que decido roubar para criar um ponto de união entre o romance (enquanto literatura), o amor (sobretudo o conjugal) e a fé. Por mais diferentes que estes aspectos da vida pareçam, requerem todos uma suspensão voluntária da descrença. Eu explico, para os incautos (pois só esses continuarão a ler):

Não se pode ler um romance com uma mente exclusivamente racional; afinal, todos os romances estão repletos de inverosimilhanças, de improbabilidades, de encontros que dificilmente aconteceriam numa vida normal. Contudo, não é por isso que deixamos de ler, de nos comovermos, de nos irritarmos ou, inclusivamente, de atribuirmos a personagens fictícios uma capacidade de emitir juízos morais sobre as coisas. Por outro lado, a fé convida-nos, concomitantemente, a acreditar no que não vemos e, por isso, a suspender voluntariamente a incredulidade. Deixamo-nos "incredulizar" para nos conseguirmos elevar e, com isso sermos melhores pessoas. 

O amor, por último. Acredito que amar é confiar; e como imaginamos amar alguém até ao fim da vida, comece essa vida aos 20 ou os 60? Suspendendo a incredulidade na espécie humana, acreditando que na queda há um amparo, que no erro há um perdão, que na falha há uma voz compassiva. Amar é confiar em alguém que escolhemos, mas de quem não conhecemos tudo para ter a certeza de que é confiável. Iris Murdoch (parece-me, não afianço) afirmou que "há no amor o dom de uma certeza." Essa certeza não assenta no conhecimento racional das virtudes do ser amado, mas no desejo que temos de acreditar nas virtudes dessa pessoa. E isso só acontece quando suspendemos a descrença. Só nessa altura podemos deixar-nos cair para trás, sabendo que há quem nos ampare.

JdB

1 comentário:

ACC disse...

Belíssimo texto que já partilhei por aí. Merece ser lido.
A ideia de ler os romances de forma racional, tocou-me. De facto não leio romances porque não me embalo pela linguagem, para mim, demasiadamente poética. Não sinto a mesma devoção pelo o "olhar embevecido sobre uma pele branca",mas talvez o que me demova seja a falta de estrutura. O romance tem de seguir cumprir "viagem do herói" e foi assim que Disney conquistou o mundo. Mesmo os romances naturalistas seguem esta estrutura, só assim colo emoção à descrição, senão enfado-me.

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