12 maio 2020

Textos dos dias que correm

A fé não nos separa, nem nos confunde

Bebemos a fé a partir da situação em que a recebemos. É diferente ser crente desde a nascença ou experimentar a conversão na vida adulta. Quando a fé surge à nascença, recebemo-la como um dom encarnado naquilo que já tínhamos começado a ser ainda antes de vermos a luz. Quando a chegada à Fé implica uma exigente experiência de conversão pode trazer consigo a necessidade de romper com formas e hábitos antigos.

A fé é por isso transmitida entrelaçada com uma experiência concreta, seja da família a que pertencemos, seja de valores e normas sociais ou de diferentes visões do mundo.  Por isso, muitas vezes é difícil distingui-la de tudo isso. E, no entanto, a fé não se confunde com as diferentes esferas e heranças da nossa vida. Pode, no nosso entretanto, ser o suporte de cada uma delas e a liberdade que nos impede de absolutizá-las porque o Deus, no qual nos apoiamos, é sempre maior.

Em diferentes momentos da história, as diferentes tradições religiosas deixaram-se apreender pelo poder ou pelas ideologias, manipularam e foram manipuladas. E isso também faz parte da nossa herança católica e, eventualmente, da nossa herança pessoal da fé. É bom aprender a viver em paz com isto, mas é também importante aprender a viver com liberdade esta herança.

Só um catolicismo manietado por ideologias desfocadas, por alguma ideia de superioridade ou privilégio,  pode em algum momento achar que confinamentos seletivos têm alguma semelhança com o Evangelho. Jesus morreu por ter rasgado o véu que alimentava uma visão religiosa sustentada por confinamentos que separavam puros de impuros, trouxe a Salvação como oferta universal sem exclusivos ou privilégios.

Ora isto convida-nos a recusar formas sectárias de nos situarmos diante da realidade seja ela a realidade familiar, social, política, cultural ou natural. Somos criados em cada dia à imagem de Deus. E Jesus é o nosso ícone, a referência a que aspiramos. Só podemos ser reflexo dessa imagem em abertura e acolhimento. Fechados, superiores ou privilegiados não somos como Jesus.

Esta abertura faz-se não como fuga da realidade ou do mundo mas como pertença assumida a essa realidade. A fé vive-se na contingência social e corporal que nos toca, precisa de uma dimensão material. Não se opõe nem à sociedade, nem à natureza. A comunidade constitui-se como corpo concreto de gestos e práticas. Alimenta-se de sinais visíveis que precisam da água, do trigo e da uva amadurecida pelo sol.

Para permanecer livre, apoiada em Deus, a fé não pode confundir-se nem com os outros, nem com a cultura, nem com a natureza. Tornar-se-ia idolatria ou panteísmo.  Por outro lado, uma fé sectária, separada dos outros, da cultura e da natureza é fundamentalismo sem transcendência é a ideia de um deus desligado da realidade. Em ambos os casos seria uma fé sem Jesus e sem o Evangelho.


P. José Maria Brito, sj
Diretor do "Ponto SJ"
Publicado pelo SNPC em 11.05.2020

Sem comentários:

Acerca de mim

Arquivo do blogue