A 5 de Dezembro de 2016 escrevia o texto abaixo, sobre o livro South, de Sir Ernest Shackleton. Li ontem, no Observador, que o navio Endurance, no qual o explorador e a sua tripulação navegaram até ao Polo Sul, há mais de um século, fora descoberto em óptimo estado, a 10 mil pés de profundidade. Vale a pena ler o livro, não apenas como uma livro (quase) de aventuras sobre um tipo de pessoas que já não existe, mas como uma metáfora para muitas coisas: a refeição com espaço tribal de coesão contra o desmoronar das coisas, a impossibilidade de ser-se explorador num certo sentido da palavra.
JdB
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Retomo South, de Sir Ernest Shackleton.
Nota prévia: em bom rigor, e defendi-o ontem numa apresentação, o livro tem um título errado. Não deveria chamar-se South, mas sim We Leave no Man Behind, uma ideia que já vem de tempos muito antigos e que, de facto, ilustra bem melhor a epopeia deste explorador, que conseguiu resgatar todos os seus companheiros.
Shackleton tem um conjunto imenso de características e valores dentro de si: a lealdade, a tenacidade, a liderança, os conhecimentos técnicos, o carisma, a capacidade de estabelecer laços entre as pessoas em condições particularmente difíceis. E tem uma grande qualidade que marca a diferença para o seu rival, Scott. Há uma altura em que ele sente que a expedição está em risco e não hesita em decidir voltar para trás. E em vários momentos, o líder da expedição tem de fazer escolhas: não só uma escolha de caminho em função de ventos, características da neve ou do iceberg, de proximidade com um vislumbre de existência humana e salvadora, mas uma escolha de equipamento. É preciso alijar carga, reduzir o peso transportado ao exclusivamente necessário.
O que é exclusivamente necessário? Shackleton entende que a viagem de regresso pode ser longa, a equipa poderá ter de passar o inverno em instalações precárias numa costa inóspita. Nessas condições, entende ele, um homem pode precisar de algo que lhe ocupe a mente, algumas recordações tangíveis de casa e da família. É por isso que descartam as moedas e mantêm as fotografias. E é por isso, ainda, que levam consigo duas folhas da Bíblia que a rainha Alexandra oferecera ao barco: aquela onde consta a sua dedicatória e outra, onde está um excerto do livro de Job (Jb, 38:29).
E quem produz a geada do ar,
quando as águas endurecem como pedra,
e se congela a superfície do abismo
O que significa exclusivamente necessário? Falamos de sobrevivência, mas uma folha da Bíblia e um punhado de fotografias não são essenciais ao corpo e à fome a -20ºC... O exercício da equipa de Shackleton é uma boa metáfora para a vida: o que podemos deitar fora para continuarmos a ser o que somos? O que é essencial e acessório? O que garante a subsistência do corpo ou da alma? Se o soubéssemos sempre, talvez fossemos mais felizes ou, no confronto com um desaire, conseguíssemos perceber que podemos perder muito mais do que pensamos e, mesmo assim, manter a nossa integridade.
JdB
1 comentário:
Foi boa a ideia de trazer Shackleton à "conversa".
Abraço
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