Nos últimos tempos tenho vindo a conversar amiúde sobre ritos religiosos, nomeadamente católicos, que são os que nos estão mais próximos e são mais familiares. No que a eles diz respeito, não há época melhor para os espreitarmos com interesse do que a Páscoa. Na verdade, o Tríduo Pascal é, por excelência, o momento dos ritos. Os ritos não se esgotam no interior de uma igreja: estendem-se à nossa vida social, familiar, profissional. São, como explica a Enciclopédia Católica Popular, actos executados de forma precisa por um grupo humano que lhes dá sentido. Um dicionário corrente dirá que são um conjunto de práticas de carácter mágico ou simbólico, executadas segundo ordem precisa e consagradas pelo uso ou pelas normas.
A monarquia inglesa, plena de tradições e costumes, é, também ela, um esplendor de ritos. Num dos episódios da série Crown, de que já aqui falei, o Duque de Windsor, que chegou a ser Eduardo VIII, assiste, com amigos, à transmissão pela televisão da coroação da sua sobrinha como Isabel II. À medida que a cerimónia se desenrola o Duque explica o que se passa, e o que está por trás de cada gesto. Nota-se nele conhecimento histórico, informação detalhada - talvez alguma nostalgia por não ser ele o protagonista. A um dado momento um pálio cobre o trono onde a rainha será ungida com o óleo santo, e ela desaparece do campo de visão das câmaras. Alguém pergunta por que razão a unção com o óleo não é visualmente acessível a todos. O Duque de Windsor responde: porque somos apenas humanos. Na 6ª feira Santa é colocado um véu de ombros sobre as costas do celebrante para que ele leve, protegido e escondido, o viático para o sacrário, enquanto o povo canta o tantum ergo sacramentum. Somos apenas humanos.
Um rito não é uma sequência de gestos avulsos e desligados entre si, mas uma espécie de código com que os membros de uma mesma comunidade se identificam - e que os identifica. Um marciano surdo que vá a uma missa todos os domingos perceberá que, em momentos especiais no ano, as coisas se alteram, e saberá que esses momentos são especiais. Olhando à volta, e percebendo como os membros daquela congregação se comportam, perceberá que há, ali, uma comunidade, porque os ritos são seguidos por todos. O raciocínio aplica-se à maçonaria, a um clube ou a uma qualquer confraria espalhada pelo país. Os membros destas agremiações utilizam gestos que os identificam como membros dessa comunidade; e essa espécie de coreografia comum dá-lhes um sentimento de pertença.
O raciocínio aplica-se, ainda, à dinâmica afectiva de um casal, na qual os gestos ritualistas criam um carácter diferenciador: são expressões que só os próprios conhecem ou movimentos executados a momentos certos. Esses ritos são um código amoroso que distingue aquela relação de todas as outras, como a adoração da Cruz identifica um momento distinto daquele em que se adora o Menino.
Os maçons (imagino eu) poderiam reunir-se sem cumprir ritos que lhes são exclusivos? Sim, claro. Um casal poderia viver sem ter rituais próprios? Sim, claro. A Igreja Católica poderia viver sem o incenso, sem o tantum ergo sacramentum ou sem o véu de ombros? Sim, claro. Ninguém é melhor ser humano por causa de um rito. No entanto, todos seríamos menos felizes, porque perderíamos o sentimento de pertença a algo, porque os ritos são, também, os fios que reforçam ou que diferenciam o tecido das relações humanas. Sem ritos, ou com a desvalorização dos ritos, esse tecido fica mais fino, mais impessoal, menos perene, porque pouca coisa diferencia aquela pertença de todas as outras. Sem ritos não há pertença relevante e as nossas relações humanos transformam-se num somatório de pessoas, não num conjunto de pessoas.
Não sei se sou um homem de ritos porque acredito nisto que escrevi, ou se acredito nisto que escrevi porque sou um homem de ritos. É-me indiferente, em bom rigor.
JdB
2 comentários:
Bom dia JdB
Oportuno, como sempre!
Os ritos, rituais e folclore, termos que temos discutido, por vezes, em opostos de um contínuo. Os ritos são conceitos, os rituais práticas e o folclore é a encenação dessa prática. Talvez você seja mais um homem de rituais (sei que conhece bem o rito que os suporta). O perigo dos rituais é que se tornam automatismos, gestos, práticas que deixam de ter uma ligação afectiva ao rito. É por isso que a igreja e outras associações de "boasgentes" associam aos rituais um folclore. São formas de criar adesão emocional através da encenação (folclore). O problema é quando ritual se torna num automatismo, a prática é uma prática destituída de emoção.
Obrigada por me ter feito repescar este tema que eu tanto gostava.
ACC,
Obrigado pela sua visita.
Do ponto de visto da linguagem oral gosto de ser um homem de rituais. Do ponto de vista da utilização correcta penso que deveria ser um homem de ritos. Do ponto de vista da linguagem "científica" percebo que sou um homem de rituais. Olho para o dicionário e, como sou um homem corrente, não sei o que dizer de mim próprio. Acedo no ser um homem de "rituais" e não de ritos. Atenção que é um leigo a falar, não uma pessoa que estuda há anos numa universidade
A utilização de rituais afectivos pode tornar-se num automatismo. "Pode" é a palavra usada; se pode tonar-se é sinal de que é verdade que pode não tornar-se. Ora, se não houver rituais afectivos não há o risco de se tornarem automatismos; mas também não há o risco de mais nada, porque não há rituais.
Terminada esta arenga provocatória, mais vale ter rituais - e mudar só o estritamente necessário. Há países e organizações que não os mudam e, mesmo assim, mantêm viva essa sensação de pertença e de comunidade. Há uma habituação que se instala e que, para algumas pessoas, é confortável. Se mudássemos tudo, o que aconteceria às tradições?
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