NO MNAA PARTILHA-SE O BELO E A SEDUÇÃO
Numa parceria entre o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e a colecção «Gaudium Magnum», propriedade de Maria e de João Cortez de Lobão, o grande público tem oportunidade de apreciar peças interessantes daquele acervo privado.
A tela agora em exposição no MNAA data de 1610 e foi pintada por um contemporâneo e rival de Caravaggio – Giovanni Baglione (Roma, 1566- 1643). O tema em foco é S. João Baptista em idade jovem e numa pose invulgar, que se inspirara numa estátua muito em voga na época (1610), pertencente a um dos Cardeais coleccionadores da Curia romana. A mesma contorção do dorso observada na escultura é replicada no óleo, com o braço direito a apontar no sentido oposto ao do olhar, interpelando interlocutores mais distantes e já fora do campo de visão do quadro. Poderíamos ser nós.
Sob um fundo escuro, o vigoroso santo sobressai com um traço bem modelado. O jogo de claro-escuro característico do barroco surge aqui enriquecido pela introdução de uma faixa de paisagem de luminosidade suave, onde predomina um céu azul repleto de nuvens, ao gosto da pintura bolonhesa. De facto, Baglione foi recolhendo influências de diferentes escolas, do maneirismo ao barroco, acabando por fazer uma simbiose pessoal que lhe conferiu um estilo original, sem se deter «(n’)os passos de ninguém» – segundo o grande coleccionador de arte seu contemporâneo – Giulio Mancini (1559-1630).
As tonalidades barrentas e aparentemente monocromáticas do corpo do santo, onde nem as vestes sobressaem, acentuam o cunho escultórico do pregador, como se tivesse sido modelado em barro. Depois, a filigrana de claros-escuros, que demarcam a figura do profeta, acentuam a tridimensionalidade da sua representação. Só falta falar ou talvez nem precise, pois o gesto que aponta para a parte do horizonte onde há céu é suficientemente sugestivo.
Na tela, junto ao primo de Jesus aninha-se um cordeiro, imagem do sacrifício pascal. Mais acima, talvez sobre a base do escuro pedestal (ou será um banco?) onde o santo se apoia, podendo adivinhar-se a sua posterior elevação aos altares, está pousado um pano revolto em tom carmim indiciador do martírio perpetrado numa festa da corte de Herodes. Poderia também ser a capa do suplício de Jesus, que lhe fora deposta pela mesma corte impiedosa no palácio do rei Herodes. Outro símbolo da paixão, que o santo não poderia ter conhecido em vida, corresponde ao crucifixo que João segura com a mão esquerda, antecipando o sinal maior da morte do Salvador, ocorrida bem depois da decapitação do Baptista.
«São João Baptista no Deserto», de Giovanni Baglione (Roma-1566-1643), óleo de 1610, dimensões: 194cm x 151cm. |
Baglione fez uma carreira de sucesso, sendo um dos pintores mais requisitados pelos mecenas da época, entre cardeais e príncipes italianos. Um ano antes de morrer, publicou uma colectânea com a biografia dos artistas que se tinham distinguido na fervilhante cidade de Roma, para dar continuidade à obra «Vitae» de Giorgio Vasari. O seu esquecimento póstumo é comummente atribuído às tensões que teve com o truculento milanês Caravaggio (1571-1610). Acresce que o entusiasmo do século XX pelo barroco fulgurante caravagesco ofuscou a fama de outros artistas do mesmo período. No calor da sua diatribe contra Baglione, Caravaggio declarou a arte do romano um perfeito logro e ainda compôs quadras satíricas caluniosas.
Boa hora em que a dupla MNAA & Fundação Gaudium Magnum dão a conhecer a obra de pintores menos badalados, ajudando a alargar horizontes. Na sala contígua à do quadro corre uma curta-metragem bilingue para mostrar o contexto histórico-artístico daquele óleo, confirmando quanto a trama da arte é urdida pelo intercâmbio (mesmo o inconsciente) entre artistas. Envolve, afinal, uma permeabilidade muito enriquecedora, que Baglione explorou com especial versatilidade e alguma grandeza de carácter. Basta lembrar que na sua obra literária de fim de vida -- «Le Vite de’ pittori scultori e architetti dal pontificato di Gregorio XIII de 1572 in fino a’Tempi di Papa Urbano Otavo nel 1642» -- incluiu referências elogiosas ao arquirrival Michelangelo Merisi da Caravaggio, com quem se tinha digladiado em tribunal por ataques ferozes ad homine por parte do colérico milanês (aliás, provados judicialmente).
Até 3 de Julho, o MNAA convida-nos a saborear mais uma tela de um dos grandes de Itália, ainda que menos mediático, sob o título expositivo «O BELO, A SEDUÇÃO E A PARTILHA - obras da coleção Maria e João Cortez de Lobão». A não perder.
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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