14 setembro 2022

Vai um gin do Peter’s ?

 NO ANO DA MORTE DE FERNANDO PESSOA (II) 

Na continuação do gin anterior (de 31.Ag.), seguem mais 3 poemas de Pessoa quase inéditos em Portugal, mas não em Itália, onde continuam a ser divulgados! Em Agosto, estiveram nos holofotes da exposição do «Meeting» de Rimini dedicada ao poeta com mais heterónimos do mundo. 

Estas composições mais votadas ao esquecimento datam do último biénio de vida do poeta, que expirou a 30 de Novembro de 1935. Chegaram-me por mão amiga, participante no badalado Meeting italiano, onde costumam intervir artistas, Nobéis e grandes figuras da política internacional (raridades…):  

«VIRGEM MARIA

Mãe de quem não tem mãe, no teu regaço
Poisa a cabeça a dor universal
E dorme, ébria do fim do seu cansaço...
E tens na mão, usado e nunca imundo,
O pequenino lenço maternal
Com que enxugas as lágrimas do mundo.

De 21 de Agosto de 1935.

A EGREJA MATERNA 

A Egreja materna cobriu como uma redoma
Meus dias serenos.
Chamo-lhe agora, com razões, a Egreja de Roma.
Sei mais ou sou menos?

Kabbalahs, gnoses, mistérios, maçonarias
Tudo tive na mão
Na busca ansiosa que enche minhas noites e dias.
Mas nunca no meu coração.

De que fui desherdado pela verdade?
A maçã diabólica
Comi-a, e sou outro, mas quanto?! Oh a saudade
Da Egreja Catholica!
Qualquer cousa de mim quebrou-se, como uma mó
Que cahisse mal.
Em pequeno eu seguia, magnanimamente só 
Sem nada fatal.

De 20 de Abril de 1934. 

«À MINHA MÃE

  Ave Maria, tão pura,
  Virgem nunca maculada
  Ouvi a prece tirada
  No meu peito da amargura!
  
Vós que sois cheia de graça,
  Escutai minha oração,
  Conduzi-me pela mão
  Por esta vida que passa!

  O Senhor, que é vosso filho,
  Que seja sempre connosco,
  Assim como é convosco
  Eternamente o seu brilho.

  Bendita sois vós, Maria,
  Entre as mulheres da terra;
  E voss’alma só encerra
  Doce imagem d’alegria!

  Mais radiante do que a luz
  E bendito, oh Santa Mãe
  É o fruto que provém
  Do vosso ventre, Jesus!

  Ditosa Santa Maria,
  Vós que sois a Mãe de Deus
  E que morais lá nos céus
  Orai por nós cada dia!

  Rogai por nós, pecadores,
  Ao vosso filho, Jesus,
  Que por nós morreu na cruz
  E que sofreu tantas dores!

  Rogai, agora, oh Mãe querida,
  E (quando quiser a sorte)
  Na hora da nossa morte
  Quando nos fugir a vida!
 
  Avé Maria, tão pura,
  Virgem nunca maculada,
  Ouvide a prece tirada
  No meu peito da amargura.»

 (Data incerta: 1935 ?, 1902 ?)  

São desencontradas as opiniões sobre o gnosticismo pessoano, que ora rasga um horizonte maior, ora desespera com o limite curto da existência. Há exemplos para vários lados, embora no meio da sua angústia de viver também tenham despontado momentos inequívocos de luz, a somar à devoção antiga do poeta pela figura maternal de Maria, a quem personalizou a oração da Avé-Maria (citada acima).  

              «QUERO, TEREI  

                Se não aqui, 
                Noutro lugar quinda não sei. 
                Nada perdi. 
                Tudo serei.»

Data atribuída:  9 de Janeiro de 1933 
            «ISTO

              Dizem que finjo ou minto
              Tudo o que escrevo. Não.
              Eu simplesmente sinto
              Com a imaginação. 
               Não uso o coração.

               Tudo o que sonho ou passo,  
               O que me falha ou finda, 
               É como que um terraço 
               Sobre outra coisa ainda. 
               Essa coisa é que é linda
.  (…)»

(data desconhecida)

           «NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO (…) 

             De tanto ser, só tenho alma.
             Cada momento mudei.
             Continuamente me estranho. 
             Nunca me vi nem achei.
             De tanto ser, só tenho alma. 
             Quem tem alma não tem calma. (…)
            
             Por isso, alheio, vou lendo
             Como páginas meu ser (…)   
             Noto à margem do que li
             O que julguei que senti.
             Releio e digo: “fui eu?”
             Deus sabe, porque o escreveu.» 
          
De 24 de Agosto de 1930. 

           «DEU-ME DEUS O SEU GLÁDIO, (…) 

             Pôs-me as mãos sobre os ombros e dourou me
             A fronte com o olhar:
             E esta febre de Além, que me consome,
             E este querer-justiça são Seu Nome
             Dentro em mim a vibrar.

              E eu vou, e a luz do Gládio erguido dá
              Em minha face calma.
              Cheio de Deus, não temo o que virá,
              Pois, venha o que vier, nunca será
              Maior do que a minha alma!»   

In ‘Orpheu’, nº 3, 1916.

Vale sempre a pena revisitar as reflexões do autor de frases magistrais, como estas assinadas pelo heterónimo mais vanguardista – Álvaro de Campos: «VIVER TUDO DE TODOS OS LADOS» e «NÃO SOU NADA. NUNCA SEREI NADA. NÃO POSSO QUERER SER NADA. À PARTE ISSO, TENHO EM MIM TODOS OS SONHOS DO MUNDO.» (in “Tabacaria”). Esta tirada poderia ser complementada pela observação da escritora brasileira de origem ucraniana – Clarice Lispector: «TODAS AS MANHÃS ELA DEIXA OS SONHOS NA CAMA, ACORDA E PÕE A SUA ROUPA DE VIVER.». Por seu turno, o heterónimo com que mais se identificava – Alberto Caeiro – sintetizou neste dizer um sentido de vida: «SINTO-ME NASCIDO A CADA MOMENTO / PARA A ETERNA NOVIDADE DO MUNDO…». 

É fantástica a rapidez com que os poetas condensam o mistério grandioso e paradoxal da humanidade em palavras breves e lindas. Bem hajam pela sua arte!   

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom e bem escalonado.
Cumprimenta,
ao

Anónimo disse...

Tropecei na "Mensagem", há séculos, na feira do livro.

D. Fernando, Infante de Portugal.

João Seabra também o citou numa das homilias.

Cumprimenta,
ao

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