10 maio 2023

Vai um gin do Peter’s ?

TRANSBORDARAM DA TELA PARA A VIDA

Na Primavera de 2013, após 10 anos de meticuloso restauro, o Rijksmuseum anunciou a reabertura de portas com uma campanha publicitária portentosa. Escolheu uma das telas coqueluche do seu acerto – a «Ronda da Noite» de Rembrandt (1642) – e inventou maneira de a trazer para o dia-a-dia do público, como desafio a rever o original em exibição na sala renovada do museu. 


A intervenção do arquitecto espanhol Cruz y Ortis recuperou a traça original do edifício do século XIX, dotando-o das estruturas de apoio do século XXI. Numa cidade de canais, como Amsterdam, o grande desafio de qualquer obra é evitar infiltrações, pois qualquer furo no chão abre uma brecha para a entrada de água.

A ideia de dar vida ao famoso quadro de Rembrandt, de certo modo, replica o contexto histórico que terá inspirado o artista. Uma das novidades e originalidade da obra reside, precisamente, no efeito mais próximo do instantâneo fotográfico de uma multidão activa do que da encenação estática, em pose, comum na pintura da época, sobretudo na representação de grupos. Neste conjunto de 18 personagens pontifica o capitão Frans Banninck Cocq a dar ordem de marcha ao pelotão do II Distrito de Amsterdam. Na liderança, era coadjuvado Lugar-Tenente Willem van Ruytenburch. Sobre a esquerda, a figura feminina alvo de um dos focos cirúrgicos de Rembrandt corresponde à mascote da companhia. Outros focos destacam mais pormenores relevantes sob um fundo intencionalmente escuro, salientando o gesto de comando do capitão ou a bandeira desfraldada ao vento ou o homem do tambor a marcar o ritmo da formatura ou os canos das carabinas metálicas, conferindo movimento e dimensão guerreira à cena retratada. Deparamo-nos com um corpo de guarda em acção, só faltando ouvir vozes, batuques e sentir cheiros.  

A negritude que marca o cenário, típico em Rembrandt, motivou o nome atribuído posteriormente ao quadro, que foi interpretado como um episódio nocturno, apesar de o pintor ter sido omisso a respeito da hora do dia representada. 

A encomenda ao génio da idade de ouro da pintura flamenga destinava-se à sede de uma das três companhias da guarda civil de Amsterdam, incumbidas da defesa da cidade, da manutenção da ordem, da extinção de incêndios e de atender aos acidentes na via pública. Nesse tempo, acumulavam funções militares, policiais e de bombeiros. 


Recentemente, a Inteligência Artificial permitiu uma reconstrução minuciosa da tela original, que foi cortada aos lados e no topo para caber na parede da Câmara Municipal de Amsterdam para onde foi transposta, em 1715. Curiosamente, esta obliteração, impensável nos nossos dias, provinha da fama já consagrada a Rembrandt, cuja obra merecia ser exibida num dos edifícios mais nobres da cidade, segundo esclarecem os historiadores de arte. Isto confirma quanto as modas mudam e com elas os comportamentos, o que expõe a falácia de tentar ajuizar outras gerações com os critérios e os costumes da actualidade.

A tela completa, a incluir as extremidades laterais cortadas no século XVIII. No séc.XX,
registaram-se várias tentativas de vandalização da tela. 

Este salto da pintura para a vida lembra os “Concertos para Jovens” do compositor norte-americano Leonard Bernstein, apostado em entusiasmar as crianças e os adolescentes pela música clássica. Este movimento foi replicado em Portugal pelo maestro José Atalaya (1927-2021). No início da década de 70, o português enchia o S.Luiz (no Porto, o Rivoli), aos Domingos de manhã, para concertos comentados e explicados às famílias, introduzindo os mais novos (sobretudo) numa sonoridade diferente, erudita. As salas abarrotavam de gente e na RTP o programa chegava a todos os que viviam longe de Lisboa e do Porto. Em plena ditadura, o maestro informal esforçava-se por «destruir a barreira entre o público e o artista» e em «informalizar os concertos». Até sugeria que a música clássica fosse ouvida «em mangas de camisa», tentando impregnar um universo erudito da coloquialidade divertida do jazz. Por que não embalar e emocionar-se com as composições de Tchaikovsky, Mozart, Beethoven, Mahler?… Como observava o jornalista Pedro Tadeu, por ocasião da morte do maestro: «esteve para ser engenheiro, mas trocou a resistência de materiais pelos resistentes à música que chamavam erudita para a remeterem só para os eleitos». 




Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e perde-se a memória. Mal abandonou os ecrãs de televisão, pouco interessada na divulgação cultural, Atalaya foi caindo no esquecimento e com ele recuou alguma disseminação da música clássica, novamente relegada para o Olimpo dos deuses, novamente cotada de privilegiados. Fazem falta estes visionários, de Bernstein a Atalaya, que criaram momentos com humor e arte, como tocar o Requiem de Mozart junto às pinturas rupestres do Foz Côa.  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

2 comentários:

Anónimo disse...

Como disse o Principal dos Jesuítas, haverá melhores.
ao

Anónimo disse...

Perdoai mas não tinha ligado o meu corrector de ideias.
A frase referia-se ao padre Pedro Arrupe.
Quanto ao "Gin": foi maltratado por automatismos gramaticais que um corrector semeou ao Deus dará. Que venha o trigo...
Cumprimenta,
ao

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