31 janeiro 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

 COMO KAFKA TERÁ CONSOLADO UMA CRIANÇA

Um ano antes da sua morte, no passeio diário pelo parque Steglitz, em Berlim, conta-se que o escritor checo de raízes judaicas Franz Kafka (1883-1924) e a sua última companheira Dora Diamant deram com uma criança a chorar copiosamente. Querendo consolá-la, aproximaram-se para perceber o motivo do desgosto – perdera a boneca. Habilmente, Kafka sugeriu à menina que não se tratara de uma perda mas de uma partida, pois a boneca decidira viajar pelo mundo, desejosa de conhecer outros lugares e novos amigos. 

O olhar atento, frontal e triste, que perpassa nos seus livros. À direita: num café de Praga, no 1º quartel do séc.XX.

Estátuas de homenagem a Kafka, na sua cidade natal – Praga. O da esquerda evoca o conto do checo «Descrição de uma luta».

Dora Diamant – atriz polaco-judia, oriunda de uma família judia  ortodoxa,
perto de 15 anos mais nova do que Kafka, que o terá reaproximado do Talmude. 

Semi incrédula, a pequenina enxugou as lágrimas e começou a inquirir o seu interlocutor sobre a veracidade da insólita justificação daquele desaparecimento doloroso. Desencantando nova proeza ficcional, o checo insistiu na sua tese e propôs-se mostrar-lhe uma prova da partida da boneca, aludindo à carta que esta lhe escrevera, na qualidade de ‘carteiro de bonecas viajantes’. Surpreendida e confusa, a criança ficou a aguardar pela carta de que Kafka era, estranhamente, o guardião.

Mal chegou a casa – contou Dora Diamant – o escritor sentou-se à escrevaninha, com o empenho nervoso com que cumpria as suas obrigações editoriais, e começou a redigir a primeira missiva da boneca viajante. No dia seguinte, leu-a e entregou-a à criança, comprometendo-se a servir de correio para as novas epístolas da boneca a narrar as aventuras pelo mundo. Ao longo de um par de semanas, o escritor e Dora cumpriram o ritual do encontro no parque com a pequenina, sempre com um novo escrito da boneca. Entretanto, o escritor teve um novo surto de tuberculose e foi internado. A 3 de Junho de 1924, com 40 anos, chegou a hora da Partida de quem se prestara ao humilde papel de mero carteiro.

Um dos especialistas em Kafka – Klaus Wagenbach – procurou, em vão, pela criança e pelas cartas que o checo lhe teria escrito, em nome da boneca. Assim, subsiste como única fonte deste episódio da biografia de Kafka a sua última companheira. 

Décadas depois, a história inspirou outros escritores, como Paul Auster, que a narrou na novela «The Brooklin Follies». Também o psicoterapeuta May Benatar a publicou sob o título «Kafka e a boneca: a omnipresença da perda», introduzindo um desfecho em que o escritor oferecia uma boneca à criança com o seguinte bilhete para justificar a nova aparência do brinquedo: «As viagens mudaram-me»! Mais tarde, teria encontrado um segundo bilhete escondido dentro da boneca, onde rezava: «tudo o que amas, provavelmente, perderás, mas no final o amor voltará sob uma forma diferente».  

Um terceiro escritor, de língua espanhola, também aproveitou a correspondência perdida de Kafka para compor um romance: «Kafka y la muneca viajera», resultado da parceria entre o texto do catalão Jordi Sierra i Fabra e do ilustrador de jornais como El Pais e o The New York Times – Pep de Montserrat. 

«Kafka y la muneca viajera» - no livro de Jordi Sierra i Fabra,
com ilustrações de Pep Montserrat.


Segundo a conclusão de Dora: Kafka pôs a arte ao serviço de uma criança para lhe devolver a alegria, após uma perda sentida com enorme desgosto. Escalando no potencial da ficção, desencantou um óptimo truque literário para consolar a pequenina. 

Uma curta-metragem inspira-se também naquele encontro do escritor com a criança, que teria puxado pelo lado solar da criatividade turbulenta, sumamente angustiada, mas genial de Kafka, mais dada a explorar os refolhos obscuros da alma e da mente humanas para denunciar as engrenagens ilógicas e castradoras da sociedade, frequentemente usadas para domar e formatar os indivíduos. 


A criancinha do parque de Berlim teria acordado a bondade imensa de Kafka, fazendo prevalecê-la sobre a lucidez glacial com que costumava mergulhar até às profundezas paradoxais e negativas da humanidade. Seguindo o trilho da boneca viajante, o checo ter-se-ia empenhado em revisitar o mundo sob um olhar de esperança e de criatividade construtiva – incomum em si – para oferecer à nova amiga pequenina um horizonte cheio de futuro. Valera-lhe gostar muito de crianças (confirmado por Dora) e nutrir especial consideração pela juventude, a quem reconheceu um dos maiores dons da vida [citação de autoria comprovada]: «A juventude é feliz porque tem a capacidade de ver beleza. Qualquer um que tenha a capacidade de ver beleza nunca envelhece.»  

Não existindo rasto das cartas originais, nem de muitos outros escritos de Kafka, que pediu ao maior amigo para queimar tudo o que encontrasse inacabado (felizmente que o amigo incumpriu quanto pôde o desejo do artista), ficamos com as sugestões poéticas de escritores mais recentes. Mesmo que a amizade com a criança tenha sido q.b. ficcionado por Dora, encontramos escritos do depressivo Kafka, que ecoam reflexões igualmente interpelativas, de uma bondade límpida e lúcida: «O mal conhece o bem, mas o bem não conhece o mal»! Não está ao alcance de todos reconhecer um bem profundo e pleno onde o mal inexiste, pois não tem lugar. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

Sem comentários:

Acerca de mim

Arquivo do blogue