Timidamente, o delegado de propaganda médica, já deitado sobre o divã mole, atreveu-se a murmurar, imaginando uma confusão de pessoas, que o que o trazia àquele consultório não era a barriga, mas sim o espírito.
- São indiferenciáveis - desemburrou-o a facultativa. - Um intestino que evacua pontual e totalmente é gémeo de uma mente clara e de uma alma bem pensada. Pelo contrário, um intestino carregado, preguiçoso, avarento, engendra maus pensamentos, avinagra o carácter, fomenta complexos e apetites sexuais tortos, e acredite, vocação de delito, uma necessidade de castigar nos outros o tormento excrementoso.
A «Ressurreição» foi escrita por Diogo Pacheco de Amorim e cantada por José Campos e Sousa durante o “Verão Quente” de 1975, num momento de grande vontade combativa e de alguma esperança, nas vésperas de uma tão desejada insurreição civil e militar contra o poder comunista-esquerdista secretariado.
Ressurreição
É uma Pátria quebrando cadeias, É um silêncio que volta a cantar, É um regresso de heróis às ameias, Da cidade que volta a lutar.
É um deserto que vemos florir, É uma fonte jorrando de novo, É uma aurora que volta a sorrir Nos olhos cansados do Povo.
E já ardem bandeiras vermelhas, Nos campos há gritos de guerra, Nas trevas da noite há centelhas, Das rosas em festa da terra.
Canta o vento nos trigos doirados, Dançam ondas à luz das fogueiras, E nas sombras guerreiros alados Erguem espadas entre as oliveiras.
É uma Pátria de novo sagrada, Acordada da morte esquecida, Vitória da nova alvorada: Lusitânia em giesta florida.
Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-Se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz. Por isso Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem no céu, na terra e nos abismos, e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.
No sentido mais amplo da palavra: Mulher, irmã, camaradas, parentes, Pessoas vistas uma só vez, Ou com quem se conviveu toda a vida: Contanto que entre nós, pelo menos um momento, Se tenha estendido um segmento, Uma corda bem definida. A vocês vos digo, companheiros de um caminho Denso, não poupado a trabalhos, E também a vocês, que perderam A alma, o ânimo, a vontade de viver. Ou a ninguém, ou alguém ou talvez só a um, ou a ti Que me lês: lembra o tempo, Antes da cera endurecida, Em que cada um era como um sinete. Entre nós cada um traz a marca Do amigo encontrado no caminho; Em cada um o rasto de cada um. Para o bem e para o mal Em sageza ou em folia Cada um estampado em cada um. Agora que o tempo urge apressado, Que as tarefas terminaram, A todos faço o humilde voto De que o Outono seja longo e brando. 16 de Dezembro, 1985 primo levi a uma hora incerta trad. rui miguel ribeiro edições do saguão 2024
Em 2006, a empresa na qual trabalhava há 20 anos já estava numa fase de redução forte da estrutura. Ao longo dos meses foram saindo quadros intermédios / superiores, num processo que, por mais generoso financeiramente que possa ter sido, provocou desconforto e angústia em muitas pessoas. A mim também me tocou ser protagonista desse movimento: no dia 26 de Abril comunicaram-me que o meu posto de trabalho seria extinto no dia 31 de Dezembro. Eu tinha 48 anos.
Este processo de despedimento / negociação de saída foi doloroso para muitos dos meus colegas, que se sentiram desconsiderados, descartados, e cuja auto-estima terá sido afectada. A mim salvou-me esta ideia que desenvolvi dentro de mim: se eu fosse a empresa para a qual trabalhava faria o mesmo, e 'negociaria' o JdB. Para além da extinção do posto de trabalho, quem eu era profissionalmente já não interessava à empresa. Eu pertencia a outra geração, que tinha trabalhado numa empresa que crescia anualmente a dois dígitos, empresa essa que se via agora confrontada com um decréscimo do volume de negócios. O que eu era já não interessava - e esse auto-conhecimento permitiu-me (também) perceber que se encerrava um tempo na minha vida. Saí tranquilo, consciente da finitude das coisas e do fecho dos ciclos.
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O Board da organização internacional de que faço parte - a Childhood Cancer International - juntou-se em Lisboa nos últimos dias para a sua habitual reunião de meio do ano. Será a última em que participo, pois sairei do Board em Outubro depois de cumpridos os 9 anos estatutários. O meu afastamento da comunidade internacional da oncologia pediátrica será quase total, por outro motivos, mas não é isso que me leva a este texto.
Na 2ªfeira, no meio de discussões sobre estratégia, branding, comunicação, crescimento, projectos, percepção da opinião pública, etc., tomei consciência de algo importante e igual ao que tinha sentido profissionalmente em 2006: o meu tempo - este meu tempo - tinha chegado ao fim. O meu discurso, as minhas ideias, os meus conhecimentos - o que eu era, no fundo - já não interessavam tanto a uma organização que (curiosamente e ao contrário da realidade de 2006) crescia anualmente a quase dois dígitos. Percebi que me faltava vocabulário para esta nova realidade. A minha voz continuará a ter alguma relevância dada a minha senioridade e conhecimento deste mundo, mas noutro enquadramento. Sairei tranquilo, consciente da finitude das coisas e do fecho dos ciclos.
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Não sei se sou inteligente, se tenho sorte. Face a estas saídas - a de 2006 e a de 2025 - não sei se o meu auto-conhecimento é uma defesa do corpo, um discernimento do corpo, ambos ou nenhum. O que sei - e disso estou certo - é que esta noção da finitude das coisas e dos fechos dos ciclos me confere uma tranquilidade grande. Perceber que aquilo que sou acrescenta menos valor aos sítios onde estou, tira-me a sensação de vazio que vi em pessoas que deixaram actividades profissionais ou de voluntariado.
Ninguém é a man for all seasons. Quando tudo acabar, que não me falta o discernimento de perceber que tudo acaba.
Todos iguais, todos diferentes, dizia George Orwell! Assim também cada país, cada artista ou empresário ou pai desencanta uma solução própria para combater o vício desumanizante do excesso de telemóvel, que já será a arma antissocial mais disseminada (porque acessível) do mundo! Em Itália, um restaurante privilegiou uma abordagem deliciosamente positiva. Mas comecemos pelo cinema, onde pululam denúncias mais incisivas.
Curiosamente, provém da Ásia uma onda de alertas, em versão animada – ora de pendor emotivo, ora mais satírico-corrosivo –, sobre o isolamento que o telemóvel pode provocar, naturalmente quando há excesso. O problema é a facilidade com que maus hábitos insignificantes resvalam, rapidamente, para o vício patológico.
Percebe-se que a febre dos telemóveis esteja exacerbada em países com produção própria ou com populações adolescentes especialmente tecnológicas. Isso explicará por que se tornou num tema recorrente em curta-metragens animadas do Indo-Pacífico, merecidamente premiadas pela indústria cinematográfica.
O filme «Addiction» do malaio Ngu Yon Xian baseia o argumento numa experiência imprevista e dolorosa na vida de uma adolescente de 12 anos, a quem o pai ofereceu o presente da sua vida – um portentoso telemóvel. Mal sabia ela a armadilha que lhe caíra nas suas mãos imaturas e impreparadas para aquela proeza high-tech:
O indiano Ashok Patel adopta um script semelhante na sua curta-metragem 3D «O ECRû (de 2023), também dramático e irónico, também protagonizado por um teenager irresponsavelmente viciado no telemóvel, com consequências trágicas para todos. A mensagem aos adolescentes surge em grandes parangonas, no final, se dúvidas houvesse: «Mobiles are made for humans, but humans are not made only for mobiles. STOP MOBILE ADDICTION»:
A perspectiva do jovem chinês Chenglin Xie é mais satírica e mordaz, sem discriminações etárias. Os adultos até são os mais visados na curta-metragem animada «LIFE SMARTPHONE» (de 2015). Será possível correr bem um dia-a-dia debruçado sobre o pequeno ecrã, alheado de tudo o que acontece em redor? A sucessão de gaffes e de desastres causados pela selfie mania, entre outros tiques tecnológicos, é acintosamente interpelativa:
Claro que estes pequenos ‘rectângulos’ são neutros do ponto de vista ético. Não faria sentido imputar-lhes qualquer responsabilidade – menos ainda culpa – pelos nossos comportamentos, quando desvirtuamos a sua utilização. A atracção incontornável dos pequenos computadores-telemóveis tornam-se um perigo, sempre que nos afastam dos outros, da realidade, preferindo ver o mundo pela lente da pequena máquina que julgamos controlar. Quanta ilusão… Porém, nunca é a faca que mata, mas o coração do homem, como lembrava o Papa João Paulo II. Claro que cabe a cada um decidir o tipo de utilização e o tempo a despender com estes equipamentos tão úteis. Bem sabemos como os excessos tendem a virar-se contra nós (com efeito direto no consumo desregrado de recursos básicos como comida & bebida, por exemplo e por azar).
Em Verona, um restaurante optou por incentivo positivo para os clientes largarem os telemóveis e gozarem a companhia dos companheiros de mesa. O truque tem-se revelado um sucesso, quer por melhorar o convívio, quer também por reduzir o barulho infernal das chamadas e das muitas pessoas que berram recados para o outro lado da linha. 90% dos clientes tem alinhado no convite do Al Condominio, para deixarem o tm num cacife, à entrada, e assim ganharem direito a uma garrafa de vinho Maia (Pinot noire)! Há-de ser bom, atendendo à taxa de adesão à deliciosa proposta facultativa. Segundo explicava o dono, Angelo Lella, ao diário britânico The Guardian sobre os paradoxos do telemóvel, bem mais associal do que parece: «We live with our cell phones always in our hands, and this is making us unaccustomed to socialization and communication. We wanted to open a restaurant that was different from the others. So we picked this format – customers can choose to renounce technology while enjoying a convivial moment together. Technology is becoming a problem – there is no need to look at your phone every five seconds, but for many people it is like a drug … This way they have an opportunity to put it aside and drink some good wine.»
Testemunho de Angelo Lella: «It really is a beautiful thing to see people embracing it – they are talking to each other rather than looking at photos or responding to messages on their phone.»
Na mesma senda do humor, uma tasca alentejana, cujo letreiro percorrei mundo pelo WhatsApp, deixa um aviso divertido:
Páscoa é tempo de desacelerar, aliviar a agitação diária, recuperar paz interior, condiz com estes alertas de maior atenção aos outros, melhor foco sobre a realidade, mais abertura ao que nos rodeia. O convite a um silêncio reflexivo, que aguce o olhar e o ouvido, precisa sempre de desintoxicação, a começar por um saudável jejum dos múltiplos ecrãs que nos rodeiam. Serão os mínimos olímpicos para ganharmos disponibilidade – de agenda e de atitude – para o essencial. Boa Semana Santa e Feliz Páscoa a todos!
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Naquele tempo, Jesus foi para o Monte das Oliveiras. Mas de manhã cedo, apareceu outra vez no templo, e todo o povo se aproximou d’Ele. Então sentou-Se e começou a ensinar. Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus uma mulher surpreendida em adultério, colocaram-na no meio dos presentes e disseram a Jesus: «Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres. Tu que dizes?». Falavam assim para Lhe armarem uma cilada e terem pretexto para O acusar. Mas Jesus inclinou-Se e começou a escrever com o dedo no chão. Como persistiam em interrogá-l’O, ergueu-Se e disse-lhes: «Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra». Inclinou-Se novamente e continuou a escrever no chão. Eles, porém, quando ouviram tais palavras, foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus e a mulher, que estava no meio. Jesus ergueu-Se e disse-lhe: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?». Ela respondeu: «Ninguém, Senhor». Disse então Jesus: «Nem Eu te condeno. Vai e não tornes a pecar».
Éramos inseparáveis. Eu, o Hubert, o Karim. Jogávamos futebol durante o dia, tomávamos banho no rio no Verão. À noite saíamos para o cinema ou para os bares para jogar bilhar, envoltos em fumo e ruído. Bebíamos mais do que devíamos, naquele desequilíbrio adolescente cujo futuro é incerto. O que seria de nós, o que seria do mundo, se em jovens prevíssemos o preço que pagaríamos em adulto pelos nossos excessos?
Bebíamos muito. Ao fim da noite o Hubert já ria quase descontroladamente, com os cabelos num desalinho de louco e metade da camisa fora das calças, aproximando-se ousadamente das raparigas locais que, gargalhando com gosto, fugiam dele. Foi para ele uma época que durou pouco, quase como se cumprisse um calendário ou fizesse um intervalo na sua verdadeira natureza. Encontrou-se na sobriedade da vida e vive feliz. O Karim mantinha-se sempre sossegado, encostado ao balcão ou a uma mesa de bilhar, de garrafa constante na mão. Era um sossego enervante, pois não emitia sinais do seu estado. Atravessou a vida assim: casou, separou-se; casou, separou-se. Vai voltar a casar e a separar-se, sempre silenciosamente, um pouco como se a vida não fosse mais do que um sucessão de cervejas bebidas no estabelecimento local.
E eu? Eu colava-me aos outros quando o corpo acusava excesso de álcool. Uns riam, outros contavam piadas, outros ainda mantinham uma calma quase incomodativa. Eu colava-me nos bancos, encostava-me a uma parede, e maçava quem ali estava com uma conversa desajustada. Era assim que eu me dava ao fim da noite. Não voltei a embebedar-me desde que fui para Paris estudar veterinária. Mais do que dos excessos, quem sabe não fugia de uma natureza que não entretinha ninguém. Talvez continue a ser assim, a viver um desajuste momentâneo como se estivesse ébrio. Às vezes parece que fujo dos outros, que me afasto dos outros. É possível que só queira, com falta de jeito, reconheço, proteger os outros de mim. Como se a vida fosse um bar forrado de mesas de bilhar e as minhas conversas não fossem as conversas de mais ninguém. Como se as minhas conversas não fossem mais do que as minhas conversas.
Marcel Larque (Lettres aux amies disparus, Éditions Maison Jaune, 2010, tradução minha deste excerto)
Aspas: sinal gráfico que destaca títulos ou nomes comerciais, sendo também usado para delimitar citações ou realçar uma palavra ou expressão.
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Em 1979 tive uma curta experiência veraneante como jornalista. Durante meia dúzia de meses, se tanto, fui jornalista estagiário no jornal O Dia, um matutino importante pela sua não conotação com o governo vigente. Data dessa altura uma qualificação ternurenta que me apodaram - especialista em matéria vaga - já que, enquadrado na secção de informação geral, cobri o impacto do aumento do vinho na cooperativa de Palmela, um congresso de medicina dentária, o desaparecimento da pequena Sofia B da estrada da circunvalação onde vivia com os seus pais, e outras importâncias semelhantes. Também nesse âmbito generalista me deslocava amiúde à Polícia Judiciária para consultar o rol de actividades dos meliantes. E foi aí, à Gomes Freire, que acrescentei ao meu léxico a expressão varinha mágica - designação que desconhecia - artigo que havia sido furtado na véspera.
(De notar que foi só após 1981, já eu estudava integrais duplos, centipoises e resistência de materiais, que me confrontei com o termo trem de cozinha, novidade que fez de mim um homem diferente).
É também nessa altura jornalística que me atrevo, com 21 anos feitos de ignorância, despudor e ingenuidade, a escrever sobre corridas de touros. Um dia, proveniente de um bandarilheiro cujo nome não esqueci jamais, recebo o sobrescrito abaixo, irrepreensível na sua caligrafia de Futura preta. O conteúdo é irrelevante, apenas o cartaz de umas festas em Vila Franca de Xira.
O que podemos realçar no sobrescrito, para além de ser um documento com 36 anos guardado numa caixa com objectivo indefinido? A resposta está nas aspas em torno de crítico tauromáquico - um símbolo gráfico que muda tudo, que põe tudo em questão.
Se eu escrever gato tem quatro patas, a frase está correcta. Se eu escrever gato tem quatro letras, a frase está incorrecta. Mas se eu escrever "gato" tem quatro letras, a frase torna-se de novo correcta. O que altera tudo? As aspas. As aspazinhas. O animal gato tem quatro patas mas não tem quatro letras. Só a palavra gato é que tem quatro letras. Vamos ao último raciocínio: a frase "'gato' tem quatro letras" tem quatro palavras. As aspas, de novo.
Mudemos de âmbito. Se eu escrever Prof. Miguel Relvas a frase está incorrecta, porque o cavalheiro que ascendeu a ministro não é professor. Se eu substituir Prof. por Dr. a frase torna-se dúbia, porque não se sabe que habilitações literárias tem o senhor. Agora, se eu lhe dirigir um sobrescrito para indagar onde há seminários de folclore ou cursos de gestão de ranchos e o endereçar ao "Dr." Miguel Relvas a conclusão é simples: há gozo! A utilização das aspas não destaca títulos ou nomes comerciais, como o bandarilheiro usa em jornal "O Dia". No caso de Miguel Relvas reflecte uma ironia - ah! e tal, ele não é bem doutor...
O que significam as aspas na expressão abaixo do meu nome? Significam ironia, isto é, Miguel Relvas está para doutor como João Bragança está para crítico tauromáquico? Ou significam apenas a expressão crítico tauromáquico e, nesse sentido, poderia estar "apreciador de vinho" ou mesmo "gente alta" ou ainda "oh laurentina, vem à janela...".
Houve gente que escreveu muito sobre isto, sobre uso e menção. Só me falta perceber porquê.
Naquele tempo, os publicanos e os pecadores aproximavam-se todos de Jesus, para O ouvirem. Mas os fariseus e os escribas murmuravam entre si, dizendo: «Este homem acolhe os pecadores e come com eles». Jesus disse-lhes então a seguinte parábola: «Um homem tinha dois filhos. O mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me toca’. O pai repartiu os bens pelos filhos. Alguns dias depois, o filho mais novo, juntando todos os seus haveres, partiu para um país distante e por lá esbanjou quanto possuía, numa vida dissoluta. Tendo gasto tudo, houve uma grande fome naquela região e ele começou a passar privações. Entrou então ao serviço de um dos habitantes daquela terra, que o mandou para os seus campos guardar porcos. Bem desejava ele matar a fome com as alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. Então, caindo em si, disse: ‘Quantos trabalhadores de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a morrer de fome! Vou-me embora, vou ter com meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho, mas trata-me como um dos teus trabalhadores’. Pôs-se a caminho e foi ter com o pai. Ainda ele estava longe, quando o pai o viu: encheu-se de compaixão e correu a lançar-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos. Disse-lhe o filho: ‘Pai, pequei contra o Céu e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho’. Mas o pai disse aos servos: ‘Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha. Ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o vitelo gordo e matai-o. Comamos e festejemos, porque este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado’. E começou a festa. Ora o filho mais velho estava no campo. Quando regressou, ao aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças. Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que era aquilo. O servo respondeu-lhe: ‘O teu irmão voltou e teu pai mandou matar o vitelo gordo, porque ele chegou são e salvo’. Ele ficou ressentido e não queria entrar. Então o pai veio cá fora instar com ele. Mas ele respondeu ao pai: ‘Há tantos anos que eu te sirvo, sem nunca transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos. E agora, quando chegou esse teu filho, que consumiu os teus bens com mulheres de má vida, mataste-lhe o vitelo gordo’. Disse-lhe o pai: ‘Filho, tu estás sempre comigo e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado’».
Domingo jantei com um amigo caçador. Diz-me, e eu acredito, que gosta muito de animais. Tem uma cadela à qual se afeiçoou e que, no fim previsível da sua vida (do bicho...), trata com um desvelo inexcedível. Não obstante, quase todos os anos vai a África à caça grossa. Mata búfalos e animais quejandos, vê-os a serem esventrados (não sei se a expressão é esta) quando o tiro não atinge os pontos vitais certos.
Eu sou relativamente piegas com o sofrimento dos animais. Nunca cacei, nunca matei um animal com um tamanho superior ao de um rato pequeno. Não obstante, gosto de corridas de touros e, se o animal demora a morrer, cambaleia golfando sangue ou tem que ser descabellado, não viro a cara, tomando atenção a tudo sem o menor sentimento de angústia, pena ou incómodo.
Sábado fui a um casamento. A seguir ao jantar - óptimo por sinal - dançou-se longamente, o que é hábito nestas festas hoje em dia. Terminado o irritante Danúbio Azul com que noivos e pais abrem o baile, uma mole de gente atira-se à pista a pular e a gritar, a agitar freneticamente os braços e, nalguns casos mais preocupantes, o corpo todo, invadindo espaços alheios que não estão definidos. São dezenas de pessoas a cantar uma música cuja letra nem sempre percebem integralmente - talvez mesmo palavras cujo significado não descortinam. Mas, apesar dessa aparente incompreensão, cantam, seguem coreografias, olham uns para os outros, afastam-se e aproximam-se, provocam ou atravessam corpos com olhares vidrados de alegria como se quisessem soltar o diabo do corpo, como se a catarse dos dias difíceis se fizesse ali, ao som das Doce ou dos Village People.
Chegado a este ponto do post, haverá quem se questione o que têm em comum a caça, os toiros e a dança dos tempos modernos. Domingo, em conversa sobre o tema da caça e das corridas com o meu amigo caçador, falávamos de uma certa ancestralidade bárbara que existe dentro de nós - dos tempos, seguramente, em que o homem da caverna caçava para sobreviver - que, não obstante as festas que fazemos aos animais que nos estão mais próximos, nos deixa relativamente indiferentes ao sofrimento de outras bestas. Conseguimos encontrar na dança um paralelismo, ainda que muito remoto? A forma como dançamos hoje em dia revela também uma certa ancestralidade de milhares de anos? Haverá qualquer coisa antiga, muito antiga, mesmo, no mais fundo de nós que nos faz papaguear palavras, frases, gritar com um ar de satisfação alucinada para, com isso, atingir um êxtase de felicidade?
Deixo-vos com música que arrebata multidões, mesmo que no remanso do lar as consideremos menores.
De um lado terra, doutro lado terra; De um lado gente, doutro lado gente; Lados e filhos desta mesma serra, O mesmo céu os olha e os consente. O mesmo beijo aqui, o mesmo beijo além; Uivos iguais de cão ou de alcateia. E a mesma lua lírica que vem Corar meadas de uma velha teia. Mas uma força que não tem razão, Que não tem olhos, que não tem sentido, Passa e reparte o coração Do mais pequeno tojo adormecido. miguel torga libertação 1944 poesia completa vol. i dom quixote 2007
Uma história real, passada no século XVI, inspirou o conto de A BELA E O MONSTRO. Os primeiros registos correspondem a desenhos e descrições feitas por investigadores da época. Em 1740, o livro «La Belle et la Bête» de Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve inspira-se naquele casal improvável. No século XX, chega aos ecrãs de cinema pela mão da Disney e aos palcos da Broadway através do musical de Alan Menken (https://www.alanmenken.com/work/beauty-and-the-beast-stage).
Cada nova versão foi acrescentando nuances, dando novos cunhos às personagens e conotações diferentes à narrativa, segundo as modas da época. Em 1991, o musical e o filme ainda seguiram o velho padrão do castigo infligido ao príncipe egoísta, transformado em monstro para penar pelos erros cometidos, mas resgatáveis se e quando aprendesse a amar uma bela pura, inocente
Em 2017 (e posteriormente), o novo filme já vinha tingido de wokismo, aproveitando as bizarrias menos atractivas para afirmar o direito à diferença e a desestabilizar o status quo comum, na defesa da supremacia do subjetivo e do indivíduo sobre os demais. Nesse filme musical, a principal áriacoloca a tónica e a maior responsabilidade no olhar de quem percepciona algo ou alguém como espontaneamente repugnante, poupando quem ou o que é observado: «Bittersweet and strange /Finding you can change / Learning you were wrong»(1). A ária flui em dueto, aqui interpretada por Celine Dion e Peabo Bryson:
Curiosamente, esta interpretação favorável aos mais estranhos (igualmente a advogar uma moral, embora diversa da clássica) encontra algum eco na história original, onde não pôde haver passos de mágica com as transfigurações estéticas que superabundam nas obras de ficção e em raríssimos milagres. O bom acolhimento de todos - todos - todos (diferente de tudo - tudo - tudo), começando pelos desfeados por condições adversas, é por si só um valor maior e insubstituível. Essa é a história real do pobre bebé, nascido em 1537, com hipertricose – a horrenda anomalia mais conhecida por ‘síndrome do lobisomem’, que se manifesta numa camada espessa de pelugem a cobrir o corpo. Pedro Gonzalez, nado em Tenerife e descendente do soberano local, foi raptado e oferecido como presente para animar a corte do rei francês Henrique II, por ocasião do seu enlace com Catarina de Medici.
Retratado na vida adulta, depois de uma reviravolta fantástica, que lhe permitiram estudar, ser ilustre, bem enquadrado na sociedade, como indicia o vestuário e o próprio privilégio de posar para um pintor.
Felizmente para o pobre Pedro, os estudiosos da corte gaulesa perceberam que aquele bobo peludo era uma criança dotada e sensível, como informaram o rei, que deliberou proporcionar-lhe uma boa educação. Em poucos anos, Pedro tornou-se fluente em 3 línguas, incluindo o latim, considerada a marca d’água das elites cultas. Foi rebaptizado de Don Petrus Gonsalvus, segundo o latim e com direito a título honorífico pela sua linhagem na tribo dos Guanches, sendo presença assídua na corte.
Aos 36 anos, a rainha resolveu arranjar-lhe uma noiva, escolhendo a filha de uns serviçais, diz-se que entre as mais bonitas da sua geração, por curiosidade científica, segundo constou. A escolha recaiu sobre Catherine, que desmaiou quando foi apresentada a Petrus. Porém, conta-se que a bondade, a erudição, a delicadeza e a boa educação do noivo acabaram por conquistar Catherine, ficando para a história como um casal feliz. Dos seus 6 ou 7 filhos, apenas os dois primeiros foram poupados àquela anomalia.
Retrato do casal Petrus e Catherine Gonsalvus, onde a mão pousada no ombro era considerado, à época, um sinal afectuoso.
Em 1582, com o doutoramento em Direito Canónico, Pedro passou a leccionar na prestigiada Sorbonne, até mudar-se para Itália, onde terá morrido aos 81 anos. Permanecem registos e desenhos sobre a família de Petrus Gonsalvus no Gabinete de Artes e Curiosidades do Castelo austríaco de Ambras, bem como em Arquivos em Roma, em Nápoles e no Vaticano.
A família Gonsalvus foi estudada por investigadores clínicos, constando desenhos na obra do naturalista e botânico Ulisse Aldrovandi, intitulada “De Monstris”. À época, o termo “monstro” não tinha a conotação pejorativa da actualidade. Vivia-se o auge da descoberta de novos mundos, dados a conhecer à Velha Europa pelos navegadores portugueses e espanhóis. Por isso, as notícias de seres exóticos e inéditos, pertencentes a universos desconhecidos, maravilhavam as sociedades europeias, ávidas de novidades e de serem surpreendidas com outras formas de vida.
Sketch de uma das filhas de Petrus – Antoinetta – da autoria do médico botânico bolonhês Ulisses Aldrovandi, legendada como ser humano e envergando indumentárias caras, com uma coroa de flores no cabelo. Crédito: Universidade de Yale.
Mais um retrato às filhas de Petrus.
Os olhares atentos e humanos, que deram o alerta a Henrique II sobre a riqueza humana de Pedro Gonzalez, resgataram-no da difícil condição a que parecia condenado, vítima de uma ostracização injusta e ignorante, como aconteceu na sua terra natal. A história aventurosa daquele ser humano com aspecto de lobisomem, mas coração grande, confirma quanto as pessoas fazem a diferença, podendo tornar a realidade mais espantosa do que a melhor das ficções.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
(i) A ideia de suspensão da incredulidade tem 200 anos: em havendo um interesse humano e uma semelhança com a verdade num conto fantástico, o leitor ignoraria a implausibilidade da narrativa.
(ii) Numa conversa que aborda temas da igreja católica, e perante a crítica continuada de um dos participantes, o conferencista diz-lhe: sabe o que me parece que lhe falta? Paixão!
(iii) Afirma Pseudo-Longino (século I): o Sublime não conduz os seus ouvintes à persuasão, mas à exaltação, porque a eliminação imprevisível por ele provocada prevalece sempre sobre tudo o que convence ou agrada.
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Destes três pressupostos se poderia dizer, numa abordagem repentista, que o seu conjunto intersecção é vazio. De facto parecem ser desconexos e, no entanto, não o são, pois abordam o mesmo tema: a necessidade de desracionalização (sim, sim, a palavra não deve existir) de parte da nossa vida. Schiller, o filósofo alemão que escreveu abundantemente sobre o Belo e o Agradável, achava que as pessoas demasiadamente racionais ou lógicas perdiam a capacidade de ver o Sublime.
Visto por um certo ângulo, há uma total similitude entre pertencer à Igreja Católica e ler um romance. O que é esse ângulo, esse menor múltiplo comum que liga dois aspectos tão diferentes da história do mundo ou de cada um de nós? A resposta está na suspensão da incredulidade que, é por seu lado, o princípio da desracionalização. Assim sendo, os pressupostos (i), (ii) e (iii), não só não são disjuntos como se intersectam fortemente.
Suspender a incredulidade é, repito, ignorar a implausibilidade da narrativa; é acreditar que aquilo é verdade, mesmo sabendo que não poderia ter acontecido (ou nós não concebemos possível com o nosso mindset); é deixar-se arrebatar pelo inverosímil, pelo encanto de uma história ou pela forma como ela é contada; é querer ser o herói, ansiar pelo castigo justo do vilão, rir como a criança que ri naquela história, sofrer com os que sofrem, sentir no corpo ou no espírito as dores que são de outrem. Mas suspender a incredulidade é também deixar-se invadir pela sensação de uma descoberta, pela visão do que era até então desconhecido.
O olhar excessivamente racional ou lógico tem tradução num gesto físico concreto, observável a olhos nus: é o olhar que, por demasiado próximo do objecto, detecta facilmente a imperfeição do contorno de uma letra impressa, uma mancha dissonante nos olhos de uma criança pintada a óleo, a implausibilidade de uma paixão que nasce numa franja negligente da violinista. É o olhar que, por demasiado próximo do objecto, vê a inutilidade do incenso que se queima numa cerimónia religiosa, a soturnidade de um coro de Bach a cantar a paixão de Cristo, a incoerência imperdoável e demolidora daqueles que pregam o que não fazem ou o fazem num léxico despropositado. Um olhar excessivamente próximo detecta a pequena falha que desfeia, o pequeno defeito que corrompe, o pequeno desvio que elimina. Não vê o conjunto, o global, a floresta onde tudo acontece. Fixa a árvore, talvez o arbusto, seguramente a erva daninha.
Suspender a incredulidade na leitura de um romance, ou suspender a incredulidade na nossa história com a Igreja Católica é pormo-nos à distância certa, acreditar na plausibilidade do implausível, aceitar o rito como agregador de uma multidão heterogénea, não descurar a importância dos pormenores, acreditar na busca de uma perfeição humanamente incerta. Suspender a incredulidade é deixarmo-nos arrebatar pela paixão ou pela exaltação, abrindo espaço para a entrada do Sublime.
Naquele tempo, vieram contar a Jesus que Pilatos mandara derramar o sangue de certos galileus, juntamente com o das vítimas que imolavam. Jesus respondeu-lhes: «Julgais que, por terem sofrido tal castigo, esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus? Eu digo-vos que não. E se não vos arrependerdes, morrereis todos do mesmo modo. E aqueles dezoito homens, que a torre de Siloé, ao cair, atingiu e matou? Julgais que eram mais culpados do que todos os outros habitantes de Jerusalém? Eu digo-vos que não. E se não vos arrependerdes, morrereis todos de modo semelhante. Jesus disse então a seguinte parábola: «Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi procurar os frutos que nela houvesse, mas não os encontrou. Disse então ao vinhateiro: ‘Há três anos que venho procurar frutos nesta figueira e não os encontro. Deves cortá-la. Porque há de estar ela a ocupar inutilmente a terra?’ Mas o vinhateiro respondeu-lhe: ‘Senhor, deixa-a ficar ainda este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo. Talvez venha a dar frutos. Se não der, mandá-la-ás cortar no próximo ano».
Mão amiga enviou-me um link para uma notícia que poderão ler aqui: as corridas de touros, tal como as conhecíamos, acabaram na Cidade do México. Estamos mais perto do que um primo, agricultor e ganadero, vaticinava há uns largos anos: as touradas acabarão no espaço de uma geração.
Tenho uma relação estranha com as corridas de touros - espectáculo que aprecio muito. Naturalmente avesso à violência sobre animais - até sobre aqueles de que não gosto, como os gatos - não me faz confusão ver um touro a morrer numa praça. Apesar de ser incapaz de dar um pontapé num gato - para me manter nestes felinos - vejo, sem um enorme incómodo, um touro que demora a morrer porque a estocada não foi eficaz. E vejo ainda, sem um sobressalto assinalável, o que se faz ao touro para terminar o processo (com a puntilla) ou paracorrigir a ineficácia da estocada (com o descabello).
Dentro de mim há um bárbaro, estou certo. Não me orgulho disso, não me envergonho disso. É o que é, e tudo me sai naturalmente, isto é, não viro a cara ao sangue na arena, não me comprazo com o sangue na arena. Faz parte de um espectáculo que aprecio, que tem raízes antigas, que representa parte de um modo de vida do campo que está a desaparecer da vista e da prática, que opõe homem e animal num combate forçosamente desigual, onde se digladiam bravura e coragem, arte e tragédia.
As corridas de touros acabarão? Talvez sim, talvez não. No meu tempo haverá sinais pequenos e irreversíveis de que o sim está mais perto. Até lá é apreciar e não entrar em discussões sobre o tema.
Os prazeres ardentes são momentâneos, e custam graves inconvenientes. O que devemos cobiçar é viver sem sofrer muito. Aquele que sofre foge-lhe uma parte da existência. O mal é nocivo à plenitude da vida por que é sempre causa do aniquilamento. Quando o sofrimento nos ameaça, e receamos que as forças defensivas nos faleçam, suspendem-se os outros movimentos do nosso coração, e então pouco há que esperar de nós, por que se torna incerto o nosso destino. O bem-estar de grande numero de individuos, que vivem retirados das agitações, depende mais da sua disposição habitual de pensamento que da influência de causas exteriores. A crise moral pode surpreendê-los e magoá-los momentaneamente; mas a força dos acontecimentos é meramente relativa. Os sofrimentos são mais ou menos intensos, conforme a época em que nos oprimem. O que ontem poderia aniquilar-me, levemente me incomoda hoje. Cinco minutos de reflexão me bastam. A maior parte dos objectos encerram e presentam, indirectamente pelo menos, as propriedades oportunas. Pô-las em acção é no que assenta a industria da felicidade. Há aí que farte instrumentos fecundos de prazeres úteis; ponto é saber meneá-los. Quem não sabe trabalhar com eles, fere-se. Discernir, isto é, reflectir é o que mais importa...
Camilo Castelo Branco (cujo duplo centenário de nascimento se lembrou no passado dia 16), in 'Cenas Inocentes da Comédia Humana (1863)'
O estabelecimento de ensino universitário era reconhecido a nível mundial: o rigor e competência da classe docente, a taxa de empregabilidade, o rácio oferta / procura, a ausência de escândalos, a sobriedade das instalações não obstante a sua dimensão, os princípios de ética subjacentes às matérias ministradas e às conversas regulares entre professores e alunos.
A escola, malgrado ser teoricamente mista, tinha regras muito próprias, nunca violadas: apesar do internato, dentro das instalações (porque fora delas cada pessoa seguia códigos próprios) rapazes e raparigas nunca se cruzavam, nunca se viam, estavam impossibilitados de qualquer contacto físico ou verbal. E no entanto frequentavam a mesma escola. Se era um professor a ministrar uma certa cadeira, na sala de aula só havia rapazes, sendo que as raparigas acompanhavam a matéria dada por meio de um sistema que as impossibilitava de ver os colegas e o docente; a inversa também se aplicava.
A propina dos rapazes era elevada. A das raparigas era muito baixa, sendo compensada com actividades de carácter doméstico - confeccionar a comida, lavar e engomar a roupa, pôr e levantar a mesa, fazer as camas. Nunca, mas nunca, vendo os destinatários das camisas que tratavam, dos lençóis que esticavam, dos rissois que fritavam. Um sistema de câmaras comunicantes, de portas de sentido único, de vigilância permanente garantiam a segregação absoluta. Uma espécie de apartheid ultra-rigoroso englobando todos os sentidos. Se o regime de internato lhes fosse imposto desde o dia em que nascessem, poucos saberiam que existia algo chamado sexo oposto.
Maria frequentava esta escola há dois anos. Raramente ia a casa, pois calcorrear 500 km, qualquer que fosse o meio de transporte, não era coisa fácil - menos ainda barata - pelo que ficava por Lisboa, frequentando alguns bares ou discotecas mais decentes com colegas da escola. Num dia de Inverno rigoroso, a poucos dias do início do Advento, cruzou-se com o Manuel num bar da moda. Ficou estarrecida com o impacto. Não percebeu se era do cabelo grisalho num rapaz jovem, da boca carnuda, das pernas esguias, do tronco bem delineado numa roupa corriqueira, dos olhos peregrinos. Ou talvez fosse, apenas, a visão de um homem no final de um período de estudos e exames onde só se cruzava com mulheres. Talvez fosse tudo isso, ou ainda de um cocktail que a haviam obrigado a provar.
Nessa mesma noite Maria deitou-se a chorar. Na manhã seguinte levantou-se a chorar. Não era a primeira experiência sexual dela. Mas num carro? Com um desconhecido que lhe dizia que ia para Macau de férias, onde os pais trabalhavam? Não era possível! E no entanto tinha acontecido. Pior que tudo, divertira-se, gostara, apetecera-lhe repetir embora a probabilidade fosse baixa, já que o bar ficava fora do seu circuito. Voltou a chorar e agarrou um cesto de roupa suja para por na máquina de lavar. Foi então que se confrontou com um par de boxers de onde sobressaía uma fotografia: a Porta do Cerco e a frase de Camões: "a Pátria honrai, que a Pátria vos contempla...". Percebeu tudo ao identificar um cheiro que também era dela...
JdB
* publicado originalmente a 10 de Setembro de 2015
Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago e subiu ao monte, para orar. Enquanto orava, alterou-se o aspeto do seu rosto e as suas vestes ficaram de uma brancura refulgente. Dois homens falavam com Ele: eram Moisés e Elias, que, tendo aparecido em glória, falavam da morte de Jesus, que ia consumar-se em Jerusalém. Pedro e os companheiros estavam a cair de sono; mas, despertando, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com Ele. Quando estes se iam afastando, Pedro disse a Jesus: «Mestre, como é bom estarmos aqui! Façamos três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias». Não sabia o que estava a dizer. Enquanto assim falava, veio uma nuvem que os cobriu com a sua sombra; e eles ficaram cheios de medo, ao entrarem na nuvem. Da nuvem saiu uma voz, que dizia: «Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O». Quando a voz se fez ouvir, Jesus ficou sozinho. Os discípulos guardaram silêncio e, naqueles dias, a ninguém contaram nada do que tinham visto.
Foram tempos magníficos, foram tempos tenebrosos, fui era da sabedoria, fui era da estultícia, foi a época das convicções, foi a época da incredulidade, foi a idade da luz, foi a idade das trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, nada tínhamos diante de nós, íamos todos os direitos para o Céu, íamos todos direitos em sentido contrário - em suma, aquela época assemelhava-se tanto à presente que algumas das suas eminências mais exuberantes insistiam que apenas a poderíamos adjetivar, para o bem ou para o mal, lançando mão do grau superlativo.