30 setembro 2025

Cadernos andaluzes *

 I. no dia no teu aniversário 

toda a poesia é guerra, disse alguém
e quem sou eu para desdizê-lo?
por exemplo: hoje.
aqui, à sombra das laranjeiras e dos limoeiros,
bebendo nos lábios a fina luz da manhã,
contemplo séculos de história
e um complexo edifício-síntese,
combinando a memória do islão e do cristianismo
numa coexistência pacífica, comovente até.
qual o segredo?, perguntas-me.
e eu respondo-te: a ausência de seres humanos,
daqueles que estão ainda verdadeiramente vivos.
quer dizer: não é a completa ausência,
mas antes esse papel secundário
que todos os turistas desempenham
no grande esquema do mundo.
esta memória religiosa, arquitectónica,
mutuamente incrustada e indissolúvel,
faz-me lembrar eu próprio,
outra forma de dizer que me lembra a forma incontornável
como tomaste conta de mim.
por exemplo: hoje.
hoje, dia do teu aniversário, a centenas, talvez milhares,
de quilómetros de distância,
não deixas de estar aqui, e portanto de seres eu próprio,
tal como tudo o que ficou para trás e o que há-de vir
são extensões de uma essência presente qualquer,
como todo o amor que já morreu não deixará nunca de ser.
como tudo o que não há e que um dia houve ou um dia virá a existir.
nesta mesquita-catedral que me acolhe
em seus frondosos e intemporais braços,
é a ausência de vida quotidiana que permite um olhar doce,
desabitado de fantasmas e morticínios.
toda a poesia é uma jihad, uma guerra santa inclemente,
e agora sou eu que o digo.
entretanto, o dia entra em combustão,
o sol da andaluzia dá sinal de si,
regressam os passarinhos e o seu canto embalsamado.
cheira a verão, apesar de ser já setembro.

no dia dos teus anos, eu estava em córdoba,
e, tenho quase a certeza, um pedaço de ti também.

gi.

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* publicado originalmente a 24 de Setembro de 2010

28 setembro 2025

XXVI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 16,19-31

Naquele tempo,
disse Jesus aos fariseus:
«Havia um homem rico,
que se vestia de púrpura e linho fino
e se banqueteava esplendidamente todos os dias.
Um pobre, chamado Lázaro,
jazia junto do seu portão, coberto de chagas.
Bem desejava saciar-se do que caía da mesa do rico,
mas até os cães vinham lamber-lhe as chagas.
Ora sucedeu que o pobre morreu
e foi colocado pelos Anjos ao lado de Abraão.
Morreu também o rico e foi sepultado.
Na mansão dos mortos, estando em tormentos,
levantou os olhos e viu Abraão com Lázaro a seu lado.
Então ergueu a voz e disse:
‘Pai Abraão, tem compaixão de mim.
Envia Lázaro, para que molhe em água a ponta do dedo
e me refresque a língua,
porque estou atormentado nestas chamas’.
Abraão respondeu-lhe:
‘Filho, lembra-te que recebeste os teus bens em vida
e Lázaro apenas os males.
Por isso, agora ele encontra-se aqui consolado,
enquanto tu és atormentado.
Além disso, há entre nós e vós um grande abismo,
de modo que se alguém quisesse passar daqui para junto de vós,
ou daí para junto de nós,
não poderia fazê-lo’.
O rico insistiu:
‘Então peço-te, ó pai,
que mandes Lázaro à minha casa paterna
– pois tenho cinco irmãos –
para que os previna,
a fim de que não venham também para este lugar de tormento’.
Disse-lhe Abraão:
‘Eles têm Moisés e os Profetas.
Que os oiçam’.
Mas ele insistiu:
‘Não, pai Abraão. Se algum dos mortos for ter com eles,
arrepender-se-ão’.
Abraão respondeu-lhe:
‘Se não dão ouvidos a Moisés nem aos Profetas,
mesmo que alguém ressuscite dos mortos,
não se convencerão’.

26 setembro 2025

Dos puritanos e dos comunistas *

 "Not a whit. We defy augury. There’s a special providence in the fall of a sparrow. If it be now, ’tis not to come. If it be not to come, it will be now. If it be not now, yet it will come—the readiness is all."


Shakespeare (Hamlet, Acto V, Cena II)

***

Atiremo-nos ao silogismo: se A = B e B = C então A = C. Atiremo-nos agora ao devaneio: se os comunistas não jogam aos dados e os puritanos não jogam aos dados, então os comunistas são puritanos. Ou vice-versa.

***

Alguém me dizia, um destes dias, que gostava de conhecer o camarada Jerónimo de Sousa. A vontade, vinda de um cavalheiro com alguma idade, não tem por trás um qualquer interesse em discutir o fracasso da primeira internacional, a incapacidade de Marx em ter uma conjugalidade civilizada ou mesmo os encantos de viver em Pirescoxe. Há um interesse quase zoológico, sem desprimor pelo visado, em querer almoçar com este operário metalúrgico em quem se descortina qualquer coisa de simpático ou de educado. 

Há em mim uma dimensão socialmente curiosa. Quando os ventos internos correm de feição, gosto de conhecer gente diferente. Por vezes muito diferente, categoria em que enquadraria o secretário-geral do PCP. O meu temor é sempre um, formulado em duas perguntas: terão interesse? Irão maçar-me? Quando respondi que não e que sim às perguntas anteriores (a ordem dos factores não é arbitrária) percebi que devia dizer ao cavalheiro com alguma idade para não se meter nisso. Porquê? Porque nos comunistas o riso é algo de burguês que deve ser usado o menos possível em público - talvez mesmo combatido ferozmente em público. Dentro de cada comunista (englobando-se, neste sentido, a rapaziada do Bloco de Esquerda) há um frade assassino do mosteiro d' O Nome da Rosa, descrente que Aristóteles tenha, de facto, escrito um tratado sobre o riso, ou se o fez, foi para provar a menoridade da comédia face à tragédia  - esta última sim, próxima do sublime. Um comunista não ri, porque a seriedade da vida e a luta de classes não o permitem, nem sequer o suscitam. O divertimento não monta barricadas, não alimenta o campesinato faminto, não faz cantar os amanhãs - o riso é contrário aos ideais da revolução. Os comunistas não serão, assim, boas companhias de almoço.


Foi com base nesta ideia que me debrucei - ou talvez me tenham debruçado, sei lá eu - sobre os puritanos, esses protestantes radicais de confissão calvinista, vestidos de preto e detentores de faces patibulares nas quais não se esboça um sorriso - ou nem sequer se esboça a possibilidade de um sorriso. Talvez eles, como os comunistas, não sorriam, porque a vida é difícil e o riso é indutor de luxúrias e insultos à paixão do Senhor, que nunca riu, talvez nunca tenha sequer sorrido muito. E depois soube que os puritanos não jogavam aos dados, esse jogo que pratiquei muito no quartel porque nunca me chamaram para a guerra, mas sim para a messe de oficiais. E depois achei que era pelos mesmo motivos que os comunistas não sorriam (e talvez os comunistas eruditos não reconheçam em público que jogam aos dados) porque não agrada ao Senhor ou não agrada à memória dos fundadores do movimento operário. E, nesse sentido, puritanos eram iguais a comunistas (ou vice-versa): se A = B e B = C então A = C.

Fui elucidado pelos versos de Shakespeare que encimam este devaneio. Pode ler-se o parágrafo, mas deve fixar-se a frase a negrito: há uma providência especial na queda de um pardal. Isto é, nada há de fortuito e a mão de Deus está por trás de tudo - até da queda de um pardal. Ora, se assim é, a proibição do jogo de dados torna-se, para os puritanos, de uma elementar clareza indiscutível. Se perdermos aos dados foi a mão de Deus - e para os puritanos esta mão está por trás de tudo - que entendeu assim. Se ganharmos, o raciocínio é o mesmo. Contudo, o mundo está repleto de problemas bem mais graves do que não sair o terceiro valete à segunda jogada. Lançar dados é, por isso, obrigar Deus a desviar o Seu olhar das necessidades prementes, para se ater nos divertimentos frívolos. É obrigar o Santíssimo a horas extraordinárias. E os puritanos não o fazem, entregando-se mais ao treino das caras sérias.

O que separa os puritanos dos comunistas (ou ice-versa)? O verso de Hamlet, nada mais do que o verso de Hamlet, pese embora o interesse díspar que exibam pelos pardais. Quando alguém vos disser que, se A = B e B = C então A = C, desconfiem. Sobretudo se nas premissas houver gente que não ri.

JdB

* publicado originalmente a 21 de Março de 2018

25 setembro 2025

Poemas dos dias que correm

Exactidão 

Levam as frases sentido
que uma cadência lhes dá:
sentido do não-vivido
a que fica reduzido
o que, escolhido, não há.

Do imo do poder ser,
onde o não-sido se arrasta,
ouvi cadências crescer:
vaga música de ter,
na vida, quanto não basta -

quanto um sentido se entenda,
que nem verdade ou mentira.
(Que o que dele se aprenda
é como cobarde venda
para que a luz nos não fira.

Luz sem luz, brilho da treva
que tudo no fundo é;
e a certeza que se eleva
do fundo da própria treva,
de exacta que seja, é.)

Levam justiça consigo
as palavras que dissermos.
Por quanto sentido antigo,
nelas ficou por castigo
o futuro que tivermos.

Levam as frases sentido
que uma cadência lhes dá.
É justo, injusto - o escolhido?
Como quereis que, vivido,
ele não seja o que será?

Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum'

***

Antes do Nome

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,
o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

Adélia Prado, in 'Bagagem'

24 setembro 2025

Vai um gin do Peter’s ? 

 PUBLICIDADE PRECOCE AO ALGARVE, EM 1928 

As enormes dificuldades financeiras do país, que marcaram o século XIX português, foram disfarçadas através do endividamento do país. Em boa verdade, a devastação provocada pelo terramoto de 1755 desferira um golpe duro na capital de um país organizado de forma macrocéfala, em torno de Lisboa. As Guerras Napoleónicas deram, depois, a grande estocada, prolongando-se a agonia económica e social na guerra civil entre Miguelistas e Liberais. Logo que o ambiente político se apaziguou, o Governo procurou acompanhar os avanços dos países mais industrializados, modernizando a sua rede de transporte (ex: ferrovia), construindo hospitais, algumas escolas e outras infraestruturas, que obrigaram a contrair empréstimos à banca estrangeira, nomeadamente a inglesa. Sem capacidade para pagar os empréstimos, o previsível colapso financeiro ficou patente em 1891. Alguns historiadores associam essa vulnerabilidade financeira ao Ultimatum britânico a Portugal, que pôs termo às pretensões portuguesas de unir os territórios de Angola a Moçambique, através da repartição de terras africanas, que ficou conhecido por «Mapa Cor-de-Rosa». A humilhação infligida pelo mais velho aliado do país, fragilizou mais o Governo e agravou a tensão social que vinha em crescendo, desde há décadas. Eça e outros da sua geração documentaram bem o descontentamento geral, que se fazia sentir por todo o país.  

Para atrair remessas em moedas estrangeiras valiosas (como a libra inglesa, o marco alemão, o franco gaulês, etc.), de onde provinham os países emissores de turismo, no século XIX, o ministro da Fazenda (Finanças) Mariano de Carvalho defendeu (1893) a aposta no turismo para mitigar o desequilíbrio das contas públicas: «Lisboa lucraria enormemente se, pela afluência de passageiros [estrangeiros], aqui ficassem quantias avultadas». 

Porém, a turbulência política interna e a falta de infraestruturas retardaram esse desiderato. Apesar das dificuldades, em 1906 foi constituída a Sociedade de Propaganda de Portugal, com a missão de atrair turistas. O seu primeiro grande feito foi o acolhimento do IV Congresso Internacional de Turismo, que trouxe a Portugal perto de 800 congressistas estrangeiros. Corria o ano de 1911. 

O período político conturbado que marcou a Primeira República voltou a atrasar o desenvolvimento do sector. No final dos anos 20, as iniciativas começaram a pulular, depois fortemente impulsionadas e profissionalizadas por António Ferro.  

Um passo importante correspondeu ao lançamento da revista ilustrada «TERRAS DE PORTUGAL», fundada por Gomes Barbosa, em 1927, para «tornar conhecido em todo o mundo o ressurgimento de Portugal». O primeiro número, publicado em 1928, tinha por tema «Portugal Ilustrado – Grande Álbum de Turismo», dedicando um capítulo às praias algarvias (bem documentado em artigo de 3 de Agosto, publicado no site www.sulinformacao.pt), mostradas com um entusiasmo pueril, pois quase contava tanto o potencial das estâncias portuguesas como as reais condições oferecidas aos turistas de então.  

Quase cem anos depois, a viagem ao passado através daquela revista revela uma região a despontar para o turismo, ainda sem as feridas de um crescimento posterior muito desordenado, que correu atrás do dinheiro rápido, comprometendo o futuro.  

As falésias esculturais que recortam a costa algarvia, pontuada de casario branco.
À época, as referências às estâncias da concorrência eram uma constante, de Biarritz à costa espanhola: «[O Algarve, em geral, e a Praia da Rocha, em particular, melhores] não só porque a media das temperaturas máximas é um pouco menor, mas sobretudo, porque as oscilações termométricas são muito mais pequenas, assegurando assim [o Algarve] uma grande estabilidade de temperatura, [pelo que a Rocha resultava] estância invejável tanto de Verão como de Inverno».
Mas reconhecia-se, com pragmatismo: «a-pezar-de-se apregoar que o Algarve é região para turismo; mas oferece ao turiste, barrancos a percorrer, para lhe quebrar os ossos, estragar os automóveis e afugentar os desejosos de voltar cá».

O itinerário começa na Praia da Rocha, dita: «a mais formosa de Portugal e uma das mais belas do mundo inteiro. (Praia) verdadeiramente explendida [sic] e se afigura de grande e prospero futuro (…) com o seu clima dulcíssimo mesmo no inverno, com o seu céu quasi sempre limpo de nuvens, com as suas paisagens tão lindas e tão características, com todos os seus predicados, emfim, constitue (…), uma região por assim dizer privilegiada para o turismo».

E continua a descrição: o «pitoresco das suas rochas, a finura da sua areia, pouco alcantilada, isenta de alfaques, areias movediças, pedras e limos, não só oferece aos banhistas todas estas regalias como, pela sua situação abrigada, sem correntes, mar empolado, ou ressacas, tão perigosas nas outras praias, lhes patenteia sempre aguas temperadas, tranquilas e límpidas». E assumia-se que: «há bastantes construções, sendo algumas boas, e muitas se edificarão ainda para que não pare o progresso do desenvolvimento desta formosa estancia.»

Até o pitoresco da azáfama local da pesca ajudam a completar a paisagem da região.
Mas a grande atracção eram as festas locais: «são deveras interessantes e muito típicas as diversões populares da região, que tanto a banhistas como a turistas proporcionam agradáveis passatempos. O algarvio gosta de música e ama a dança.» Na gastronomia, além do peixe e dos frutos secos, elogiavam-se as uvas: «excelentes devendo especializar-se a sua soberba uva de mesa, deveras primorosa».

Observa-se que: «para L[este] margina terrenos levemente ondulados que se prestam para construções; pois que são de fácil aquisição, baratos e convidativos, por a região ter material para obras e ter disposição, que de futuro servirá com grande proveito, para a expansão que Albufeira há-de ter para esse lado – quando explorar o turismo, construindo prédios para hotéis, casinos e habitações particulares. [Para Oeste] pitorescos recintos; uns com pequenas praias, outros com furnas, falésias e outros caprichosos encantes com que a natureza a dotou. (…) [U]m novo e desusado movimento [no Verão], pois já afluem famílias de fora que procuram esta praia (…), vindo habitar um povoado que contém os recursos indispensáveis à vida, para alimentação, para socorro no caso de doença; e, até no campo distracções: vida de praia, passeios nos arredores, e no Casino».

«[Sem] excessivos calores, que às vezes, há na parte L(este] da província, nem dos rigorosos e agrestes frios que predominam na região O[este], com a ”costa em meia lua protegida dos vendos do N[orte]”- apresenta uma praia prolongada na sua orla, suave, quieta, limpa, atraindo o banhista ao prazer do repouso ou ao regalo do banho. [P]raia segura, porque tem declives suaves, o seu mar não é violento e poucas correntes o afecta».

«Excelente praia de banhos (…) [e para] socego e descanso do corpo e de espírito. (…) Sem ostentações faustosas e sem o bulício que outras praias proporcionam é muito salutar qualquer estadia na risonha praia de Armação de Pêra tida por indivíduos cujo estado mórbido leva os médicos a indicar-lhe a utilidade dos banhos de mar. [U]m ou dois meses de veraneio em Armação de Pêra, descansando da labuta do resto do ano, constitue um regalo para o espirito na contemplação das prodigiosas creações da natureza, oxigenando os pulmões, deixando-os limpos e sãos prontos a lutar com o ar contaminado de algumas cidades. (…) [O]nde fica a praia de banhos, há varias adegas, fábricas de conserva de peixe, fábricas de cordoaria e não poucos estabelecimentos comerciais e industriais de diversos géneros, empresas de armações de pesca e calafates, para concerto das embarcações piscatórias.».

Sobre a praia da Luz, em Lagos: «[é] sobremaneira interessante e costuma ser extraordinariamente concorrida não só por habitantes da província, como de famílias do baixo Alentejo e também por bastantes famílias do vizinho reino de Espanha. É uma das mais lindas e desafogadas praias do nosso litoral apresentando pontos de vista de uma superior beleza que jamais nos podem esquecer, e que não poucas praias do extrangeiro teem o direito de nos invejar».

Fugindo à ladainha das lamúrias habituais (q.b. compreensíveis, face aos estragos feitos na região e difíceis de reverter), constata-se que ainda há recantos paradisíacos no Algarve, de clima privilegiado, bafejado por um Inverno suave e luminoso. Não é por acaso que tantos europeus de países frios, rumam para lá, logo em meados de Setembro, à procura do sol e do céu turquesa. Não é por acaso, que em muito Algarve quase só se ouve falar inglês. Se os estrangeiros sabem tão bem aproveitar a extremidade Sul do país, como não havemos nós de tentar cuidar e melhorar (não desistir) do nosso património. 

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

23 setembro 2025

De uma mesa cheia de doutorandos

Um dia uma prima contou que, num casamento, lhe havia sido atribuída uma mesa onde estavam três cavalheiros (não afianço o número, mas é irrelevante) que tinham atravessado o Tejo a nado. A probabilidade de isso acontecer é baixa, muito baixa, excepto se pensarmos que o noivo já tinha atravessado o Tejo a nado, pelo que é possível que tivesse amigos - uma espécie de irmandade - capazes de uma façanha semelhante.

No sábado fui a um casamento. Na minha mesa - de oito pessoas - havia cinco doutorandos. A probabilidade de isso acontecer é baixa, muito baixa, excepto se pensarmos que a noiva também é doutoranda e convidou colegas da faculdade, eu incluído. Numa outra mesa havia mais dois doutorandos, também colegas de faculdade.  

Uma mesa de doutorandos é uma mesa divertida? Estou em crer, num pensamento muito repentino, que sim, é divertida (presumindo que as pessoas não são maçadoras) desde que sejam da mesma faculdade. Imagino-me com dificuldades em entabular conversa com um doutorando em matéria negra, na influência dos raios gama no comportamento das margaridas (título de um filme de 1972, que também vi), na definição de estruturas pendulares para o suporte de pontes aéreas ou para os efeitos da gentrificação no bairro do estacal novo. Aqui o grupo era mais homogéneo: para além de mim, havia uma doutoranda em José Régio, outra em João Guimarães Rosa (sobrinha do meu querido amigo fq), um doutorando em Alexandre O'Neill e uma doutoranda a terminar a sua tese (que vou conhecendo bem) sobre a representação social das viúvas, mas numa faculdade diferente. Para todos tenho conversa e ouvidos interessados - confirmo uma suspeita sobre José Régio (de cuja poesia gosto) no livro O jogo da cabra-cega; li há uns bons Grande Sertão: Veredas, motivo de espanto geral, e sou igualmente apreciador de O'Neill. Na mesa ao lado reencontrei mais dois colegas que já fizeram o doutoramento: um sobre Wittgenstein e a noção de casa e outro sobre Sócrates (ou seria Aristoteles?) e Platão.

Um dia perguntei a uma colega que estava a fazer um doutoramento sobre Wordsworth: o que motiva uma rapariga com 25 anos a fazer um doutoramento sobre o poeta inglês? E o que vai fazer com o doutoramento? A resposta foi sequencial: não sei e não sei. Dos dois doutorandos que referi no final do parágrafo anterior, um tirou um curso de programação e exerce esse mister; o outro deu aulas na faculdade - totalmente de graça!!! -  e agora está perdido, sem saber o que fazer. Ambos gostariam de leccionar, n(um)a faculdade, assim como o doutorando em O'Neill. 

Para a minha geração era muito importante ter-se uma ferramenta (a expressão era mesmo essa), isto é, um curso com saída para uma vida profissional. Todos estes doutorandos quererão leccionar? E se sim, onde? E será que o conseguem? E se não conseguirem, fazem o quê?

JdB

21 setembro 2025

XXV Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 16,1-13

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Um homem rico tinha um administrador,
que foi denunciado por andar a desperdiçar os seus bens.
Mandou chamá-lo e disse-lhe:
‘Que é isto que ouço dizer de ti?
Presta contas da tua administração,
porque já não podes continuar a administrar’.
O administrador disse consigo:
‘Que hei de fazer,
agora que o meu senhor me vai tirar a administração?
Para cavar não tenho força,
de mendigar tenho vergonha.
Já sei o que hei de fazer,
para que, ao ser despedido da administração,
alguém me receba em sua casa’.
Mandou chamar um por um os devedores do seu senhor e disse ao primeiro:
‘Quanto deves ao meu senhor?’.
Ele respondeu: ‘Cem talhas de azeite’.
O administrador disse-lhe:
‘Toma a tua conta: senta-te depressa e escreve cinquenta’.
A seguir disse a outro: ‘E tu quanto deves?’.
Ele respondeu: ‘Cem medidas de trigo’.
Disse-lhe o administrador:
‘Toma a tua conta e escreve oitenta’.
E o senhor elogiou o administrador desonesto,
por ter procedido com esperteza.
De facto, os filhos deste mundo são mais espertos do que os filhos da luz,
no trato com os seus semelhantes.
Ora Eu digo-vos:
Arranjai amigos com o vil dinheiro,
para que, quando este vier a faltar,
eles vos recebam nas moradas eternas.
Quem é fiel nas coisas pequenas também é fiel nas grandes;
e quem é injusto nas coisas pequenas também é injusto nas grandes.
Se não fostes fiéis no que se refere ao vil dinheiro,
quem vos confiará o verdadeiro bem?
E se não fostes fiéis no bem alheio,
quem vos entregará o que é vosso?
Nenhum servo pode servir a dois senhores,
porque, ou não gosta de um deles e estima o outro,
ou se dedica a um e despreza o outro.
Não podeis servir a Deus e ao dinheiro».

18 setembro 2025

Poemas dos dias que correm

 Quadras da Minha Vida 

Os ecos nos meus sentidos
Dos meus afectos doentes
São mais longos, mais compridos
Do que rastos de serpentes.

Nasci profundo e pegado
A turbilhões de aflição:
Na cara trago estampado
O meu perfil de obsessão.

Não creio que possa amar
Nem neste mundo ter jeito
De me encostar a outro leito
Sem desatar a chorar.

Enterro os dias e os ais,
Sou uma pilheira de mortos,
Não tenho espaço pra mais!
Que se comam uns aos outros...

Mário Saa [18 Jun 1893 - 23 Jan 1971], in 'A Poesia da Presença'

***

Do Primeiro Regresso

Escuta, meu Amor, quando eu voltar
De tão longe, e avistar de novo o Tejo,
O meu Restelo que em saudades vejo
Como outra nova Índia a conquistar;

Quando a minha alma inquieta sossegar
Este voo indomável, num adejo,
E o amor e o céu e Deus, vivos num beijo,
Iluminarem todo o nosso lar;

Quando, meu Santo Amor, voltar o dia
Do primeiro regresso, e a aleluia
Madrugar tua alma anoitecida...

Hás-de embalar-me sobre o teu regaço
Arrolar, encantar o meu cansaço...
E então será o meu regresso à Vida!

Augusto Casimiro [11 Mai 1889 - 23 Set 1967], in 'Primavera de Deus'

17 setembro 2025

Em memória de Robert Redford (1936 - 2025)

 

Dos mails recebidos

Como todos nós, seguramente, recebo mensagens que a eficácia do sistema informático envia imediatamente para spam, ou correio indesejado, ou junk email. Normalmente são emails a dar-me dinheiro, a propor-me um negócio, a incluir-me numa herança de uma pessoa que não sei quem é, mesmo que existisse. Já recebi mensagens mais formais, outras quase carinhosas, em que senhoras infelizes me tratam de forma carinhosa. 

Um destes dias, ao consultar a pasta de spam, algo que faço com alguma irregularidade não vá haver mails mal classificados, confrontei-me com este da suposta interpol, a que achei graça. Obviamente que o humor não vem daquilo de que me acusam (mas também tem graça, pelo disparate, sobretudo a parte da "exibição na internet") mas da linguagem. Gosto de imaginar um orgão policial a avisar os delinquentes: "o cavalheiro entregue-se, que o juiz não será indulgente". E gosto que me avisem que, caso não explique, por correio electrónico, porque cometi a infracção, que alguém vem a casa para me prender (penso que "prender" não é expressão policial, são mais de "deter"). E gosto também da ideia de ter de explicar por que motivo seria pedófilo ou me exibiria na internet (o que é isso, exactamente? Trata-se de alguém desnudo, em cima de uma secretária, a deixar-se filmar pelo computador?)

A minha grande dúvida é esta: qual é a taxa de sucesso destes mails. Isto é, quantas pessoas se deixam enrolar por estas patetices? O número é significativo?

JdB

***


DIREÇÃO-GERAL DA INTERPOL

RESULTADO DA NOSSA INVESTIGAÇÃO SOBRE SI
(artigo 390.o-1 do codigo de processo penal)



Sou Mateus COSTA da SILVA COUTO, o comissário de divisão, chefe da Brigada de Proteção de Menores.
Está a receber esta mensagem porque cometeu várias infrações na Internet nos termos do artigo 390.o-1 do código de processo penal.

CONSULTA DE UM SÍTIO PORNOGRÁFICO PROIBIDO PELO NOSSO SERVIDOR INTERPOL (PORNOGRAFIA INFANTIL)
PEDOFILIA
EXIBIÇÃO NA INTERNET

Nunca nos enganamos, esta mensagem é para si porque é o seu endereço IP que foi detectado pelo nosso servidor.
Foi intimado a comparecer na Interpol para justificar o seu ato ilegal.
Se não puder comparecer na Interpol, informe-nos por correio eletrónico para que possamos enviar a carta de intimação para o seu domicílio.

Se não responder à nossa mensagem, os agentes da Interpol deslocar-se-ão a sua casa para o prender e o assunto será tratado em tribunal. O juiz não será indulgente consigo.

O juiz não será indulgente consigo porque foi avisado e arrisca-se a ser condenado a 2 anos de prisão. Esta história será tornada pública e pode comprometer a sua reputação e a sua profissão.

DIGA-NOS, POR CORREIO ELECTRÓNICO, POR QUE RAZÃO COMETEU ESTA INFRAÇÃO?

SE NÃO, IREMOS A SUA CASA COM O MANDADO DE CAPTURA EMITIDO PELO JUIZ RESPONSÁVEL PELO SEU CASO PARA O PRENDER.

Escreva-nos neste e-mail para obter mais informações.

...@gmail.com

Aguardamos o seu contacto.

Comissário Divisionário, Chefe da Brigada de Proteção dos Menores ,  (BPM)

16 setembro 2025

Da escuta do corpo *

 No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / eu era feliz e ninguém estava morto. 

Gosto desta frase de Álvaro de Campos. No tempo em que eu era feliz e ninguém estava morto (a primeira morte impactante surgiu-me numa idade adulta) as receitas para o emagrecimento eram claras - e, arrisco, únicas: comer menos. Lembro-me de raparigas que bebiam sumo de limão em jejum, mas não sei se isso tinha algum efeito vagamente positivo para o efeito pretendido. Estou certo de que faria mal. Comer menos - nada menos e nada mais do que isso.

Na minha memória, foi com Demis Roussos que tudo isto se alterou: a quantidade já não era limitadora - o problema estava nas misturas. O cantor (que não me lembro se emagreceu) afirmava que se podia comer um frango inteiro - desde que não houvesse acompanhamento. Hoje, quem quer emagrecer tem uma panóplia de opções: dietas do paleolítico, em função do horóscopo, do tipo de sangue, assente na proibição de um tipo de alimentos ou na absoluta permissão desses alimentos proibidos, na absoluta troca de horas das refeições, etc. Passados 45 anos de ver, pela primeira vez, gente a beber sumo de limão em jejum, a minha teoria assenta no conservadorismo mais impenitente: comer menos. Mas comer de tudo.

Alguém me diz, no decurso de uma conversa sobre alimentos: o meu corpo está a rejeitar carne... O que faz essa pessoa? Muito naturalmente (porque, lá está, é o corpo a falar) não come carne. O corpo já rejeitara o leite e a pessoa deixara de beber leite. Eu, que tenho um corpo santo, que não rejeita nada a não ser o que não gosto, desconfio desta importância que se dá ao corpo, como desconfio da importância que se dá à opinião de algumas crianças.  

Não sou adepto de seguir o que o corpo diz. Sou mais adepto de dizer ao corpo como se faz. O meu argumento é muito válido, porque tenho esta ideia (pouco científica, reconheço) que estes corpos que falam muito são corpos de vocabulário limitado ou enviesado: rejeitam muitas coisas, como a carne, o leite e alguns vegetais, que são importantes, mas não rejeitam inutilidades gastronómicas como o coco, as tripas, os pezinhos de coentrada ou as cartilagens das aves. Devemos ouvir o nosso corpo? Depende. Ouvir um corpo cheio de intolerâncias é como atribuir a mediação da paz a um colérico.

O corpo deve ter uma voz limitada, porque seguir-se fielmente o que as nossas entranhas dizem é regressar a um certo primitivismo no qual vingavam os impulsos: dormir, comer, e outras coisas de que se fala com parcimónia neste estabelecimento. O corpo deve educar-se a ter hábitos e rotinas saudáveis. Não sou a favor destas teorias modernas de escuta muito activa, mas de uma democracia mais musculada. Ainda lá não estou, infelizmente: o meu corpo vive em regime libertário, na mais absoluta roda livre.

JdB 

* publicado originalmente a 9 de Julho de 2018  

14 setembro 2025

XXIV Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Lucas 15,1-32

Naquele tempo,
os publicanos e os pecadores
aproximaram-se todos de Jesus, para O ouvirem.
Mas os fariseus e os escribas murmuravam entre si, dizendo:
«Este homem acolhe os pecadores e come com eles».
Jesus disse-lhes então a seguinte parábola:
«Quem de vós, que possua cem ovelhas
e tenha perdido uma delas,
não deixa as outras noventa e nove no deserto,
para ir à procura da que anda perdida, até a encontrar?
Quando a encontra, põe-na alegremente aos ombros
e, ao chegar a casa,
chama os amigos e vizinhos e diz-lhes:
‘Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida’.
Eu vos digo:
Assim haverá mais alegria no Céu
por um só pecador que se arrependa,
do que por noventa e nove justos,
que não precisam de arrependimento.
Ou então, qual é a mulher
que, possuindo dez dracmas e tendo perdido uma,
não acende uma lâmpada, varre a casa
e procura cuidadosamente a moeda até a encontrar?
Quando a encontra, chama as amigas e vizinhas e diz-lhes:
‘Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma perdida’.
Eu vos digo:
Assim haverá alegria entre os Anjos de Deus
por um pecador que se arrependa».
Jesus disse-lhes ainda:
«Um homem tinha dois filhos.
O mais novo disse ao pai:
‘Pai, dá-me parte da herança que me toca’.
O pai repartiu os bens pelos filhos.
Alguns dias depois, o filho mais novo,
juntando todos os seus haveres, partiu para um país distante
e por lá esbanjou quanto possuía,
numa vida dissoluta.
Tendo gasto tudo,
houve uma grande fome naquela região
e ele começou a passar privações.
Entrou então ao serviço de um dos habitantes daquela terra
que o mandou para os seus campos guardar porcos.
Bem desejava ele matar a fome
com as alfarrobas que os porcos comiam,
mas ninguém lhas dava.
Então, caindo em si, disse:
‘Quantos trabalhadores de meu pai têm pão em abundância,
e eu aqui a morrer de fome!
Vou-me embora, vou ter com meu pai e dizer-lhe:
Pai, pequei contra o Céu e contra ti.
Já não mereço ser chamado teu filho,
mas trata-me como um dos teus trabalhadores’.
Pôs-se a caminho e foi ter com o pai.
Ainda ele estava longe, quando o pai o viu:
Enchendo-se de compaixão,
correu a lançar-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos.
Disse-lhe o filho:
‘Pai, pequei contra o Céu e contra ti.
Já não mereço ser chamado teu filho’.
Mas o pai disse aos servos:
‘Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha.
Ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés.
Trazei o vitelo gordo e matai-o.
Comamos e festejemos,
porque este meu filho estava morto e voltou à vida,
estava perdido e foi reencontrado’.
E começou a festa.
Ora o filho mais velho estava no campo.
Quando regressou,
ao aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças.
Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que era aquilo.
O servo respondeu-lhe:
‘O teu irmão voltou
e teu pai mandou matar o vitelo gordo,
porque ele chegou são e salvo’.
Ele ficou ressentido e não queria entrar.
Então o pai veio cá fora instar com ele.
Mas ele respondeu ao pai:
‘Há tantos anos que eu te sirvo,
sem nunca transgredir uma ordem tua,
e nunca me deste um cabrito
para fazer uma festa com os meus amigos.
E agora, quando chegou esse teu filho,
que consumiu os teus bens com mulheres de má vida,
mataste-lhe o vitelo gordo’.
Disse-lhe o pai:
‘Filho, tu estás sempre comigo
e tudo o que é meu é teu.
Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos,
porque este teu irmão estava morto e voltou à vida,
estava perdido e foi reencontrado’».

11 setembro 2025

Poemas dos dias que correm

 Agora acabou-se tudo, baby blue

Deves partir agora, leva o que precisas, o que pensas que há-de durar
Mas o que quer que desejes guardar, é melhor agarrá-lo depressa
Além está o teu órfão com a sua arma
Chorando como uma fogueira ao sol
Cuidado que os santos estão a passar
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
A estrada é para os jogadores, é melhor usares o teu bom senso
Leva tudo o que juntaste da coincidência
O pintor de mãos-vazias das tuas ruas
Está a desenhar padrões loucos nos teus lençóis
Também este céu se está a dobrar debaixo de ti
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
Todos os teus marinheiros enjoados, eles estão a remar para casa
Todos os teus exércitos de renas, estão todos a ir para casa
O apaixonado que acabou de sair pela tua porta
Tirou todos os seus cobertores do chão
Também o tapete se está a mover debaixo de ti
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
Deixa o trilho de pedras para trás, algo chama por ti
Esquece os mortos que abandonaste, eles não te seguirão
O vagabundo que bate levemente à tua porta
Está com as roupas que dantes usavas
Acende outro fósforo, vai e começa de novo
E agora acabou-se tudo, Baby Blue 
 
 
bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
bringing it all back home
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008

10 setembro 2025

Vai um gin do Peter’s ? 

 O QUE DISTINGUE OS HUMANOS 

Segundo a famosa antropóloga norte-americana, Margaret Mead (1901-1978), o indício primordial da presença humana no planeta – dado distintivo da raça humana, recuando ao tempo do Homo sapiens – não está nos avanços técnicos proporcionados pela produção de novas ferramentas para caçar e combater, por formidáveis que fossem, nem no processo de sedentarização, que se encontra na génese da vida gregária. Em contracorrente com os outros académicos, a célebre investigadora feminista, que trouxe a antropologia para a ribalta, considerou como primeiro vestígio de humanidade o gesto solidário mais antigo de que há prova. 

Celebrizou-se, logo nos anos 20 no século passado, nos trabalhos de campo em Samoa,
que deram origem ao seu livro «Coming Of Age In Samoa».  

Nesses primórdios de luta constante para extrair meios de subsistência no seio de uma natureza indomável, alguém partir um osso que afectasse a sua mobilidade era prenúncio certo de morte, pois o ferido costumava ser abandonado à sua sorte, para não pôr em risco o resto do grupo. Imperando a lei do mais forte e com maior destreza física, ninguém arriscava ficar a cuidar de um coxo. Ser ágil e veloz era condição sine qua non para escapar aos incontáveis perigos de um habitat hostil. Esse o motivo por que Mead qualificou de salto quântico na história da humanidade a descoberta rara de um fémur cicatrizado, pois redundava num acto heróico esperar quatro a seis semanas pela convalescença da perna partida, além de abrigar e alimentar o sinistrado. 

Um fémur partido e recuperado prova que alguém ficou a cuidar do ferido,
resguardando-o em lugar seguro, trazendo-lhe comida, cuidando da fractura.

Não por acaso, ao longo dos tempos, quem contraía doenças contagiosas – como a lepra, a peste, a cólera – era banido da comunidade, por motivos de saúde pública, vendo-se obrigado a subsistir sozinho ou com outros companheiros de infortúnio. De facto, ao longo dos séculos, têm-se registado práticas sociais impiedosas, quando a sociedade se sente ameaçada. No início dos tempos, tal como hoje, ir além da reacção espontânea de sobrevivência, demonstrando uma compaixão que comporta risco de vida, sempre foi e será um gesto maior, que se eleva acima do feroz ciclo da natureza, da mera subsistência natural.  

Foi, precisamente, esse gesto maior que Mead escolheu para datar o início da civilização humana, elegendo a descoberta arqueológica invulgar de um fémur de há 15 mil anos marcado por uma fractura cicatrizada, porque significava que alguém se sacrificara generosamente, correra perigo para abrigar um ferido. A resposta da antropóloga ao aluno, que a questionou sobre o primeiro acto humano conhecido na Terra, tornou-se viral (diríamos hoje) e antológica, até pela originalidade, bem nos antípodas da generalidade da academia sua contemporânea: 

«O PRIMEIRO SINAL DE CIVILIZAÇÃO

Há anos, um estudante perguntou à prestigiada antropóloga Margaret Mead qual seria, na sua visão, o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga. Ele esperava uma resposta técnica — talvez ferramentas, cerâmica, armas. Mas Mead surpreendeu: "O primeiro sinal de civilização é um fêmur quebrado… e depois curado.

No mundo selvagem, um osso fracturado é uma sentença de morte. Um animal ferido não consegue fugir, caçar, buscar água. Morre sozinho. Porque na natureza, ninguém pára, ninguém espera, ninguém cuida

Por isso, um fémur curado é uma evidência poderosa. Alguém viu a dor. Alguém parou. Carregou. Protegeu. Alimentou. E ficou ali tempo suficiente para que o outro se curasse. 

Isso, para Margaret Mead, correspondeu ao início da civilização: o momento em que um ser humano decidiu que a vida do outro importava mais do que a própria pressa (e necessidade) para sobreviver, quando a compaixão superou o instinto, quando cuidar se tornou um acto de sobrevivência coletiva.» 

Adaptado de artigo de Remy Blumenfeld
publicado na Forbes a 21 de Março de 2020. 

Em sentido análogo, defenderam grandes teóricos de estratégia política que a força de qualquer grupo se mede pela força do elo mais fraco e pela sua aceitação do seio do corpo gregário. De certo modo, valida o raciocínio da célebre antropóloga, reconhecendo que o grau de coesão de uma comunidade humana também (mas não apenas) está correlacionada com o grau de compaixão. E vai mais longe, ao considerar que a capacidade de sobrevivência de uma comunidade – desde a escala micro, até à mais global – se pode medir pelo nível de integração dos mais débeis e improdutivos da sociedade. Porém, o mais interessante é tal conclusão não provir de um ímpeto magnânimo, per se, mas de uma observação lógica e pragmática, pois só as soluções mais justas resultam estáveis e duradouras.  

Retornando à famosa antropóloga americana – premiada com a Medalha da Liberdade (atribuída postumamente, pelo Presidente Jimmy Carter, em 1979) pela sua luta a favor dos direitos das mulheres, nas décadas de 50 e 60 do séc. XX –, é reconfortante ouvir de investigadores da craveira de Mead a ideia de que os humanos se diferenciam dos outros seres vivos pelo grau de empatia, interessando-se pelo destino dos demais, a ponto de se disporem a dar a vida pelo outro. 

Selo lançado pelos Correios norte-americanos, a 28 de Maio de 1998.

Transcorrido tanto tempo desde o Homo sapiens, constata-se que nem tudo mudou, nem sempre se avançou. Numa lógica naturalista (de certo modo egoísta) valorizar alguém tornado improdutivo, visto como um fardo, continua a ser anti natura. Mas na linha de raciocínio de Mead este olhar configuraria um primitivismo sub-humano, uma vez que antropóloga só reconhece humanidade em comportamentos elevados, supra natura, como proteger alguém diminuído sob algum aspecto. Curioso e interpelativo ser uma estudiosa das civilizações ancestrais a associar grandeza ao rosto humano.

Desafiante é garantir que esses traços distintivos da humanidade persistem, na nossa época tão competitiva e quantas vezes a parecer regredir para os critérios mais básicos da lei do mais forte! 

Maria Zarco 
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

09 setembro 2025

Dos pecadilhos *

 

Fotografia de Alfred Eisenstaed

Já ouvi a história há alguns anos, pelo que não afianço a veracidade de nada. Kafka (?) terá estado, no fim da vida, impedido de falar, pelo que se socorria de um caderninho onde escrevia as respostas àquilo que lhe perguntavam. E o desafio, segundo este entrevistado, era imaginar o que teriam perguntado ao escritor para ele ter respondido de uma determinada forma. Folheio um caderninho onde assento frases, ideias, textos de livros que me passam pelas mãos. E leio: saber os nossos pecadilhos é uma virtude. Não sei onde li a frase, se fui eu que a pensei, se a transcrevi de forma correcta. Nem sequer estou certo de a interpretar bem.

Com excepção da confissão religiosa, onde o carácter sigiloso e tantas vezes informal facilita a revelação, temos alguma dificuldade em reconhecer os nossos pecadilhos, palavra que gosto de usar em sentido amplo: as nossas inseguranças, os nossos defeitos, as nossas adições, as nossas falhas mais graves, os nossos buracos negros que aspiram a energia luminosa que nos é oferecida todos os dias, tal como a santidade do Retrato de Mónica. Fugimos desta exposição porque tudo na vida nos impele à defesa e protecção da imagem que derivam, não de um pudor saudável, mas de uma ideia errada de força que é preciso exibir - ou fingir que se tem. 

Quem sabe os meus pecadilhos? Os meus mais próximos, aqueles em quem mais confio para me ouvirem e para me ensinarem. Olho para as minhas amizades mais antigas, algumas com 40 anos ou mais; olho para outras mais recentes, mas igualmente partilhadas e militadas. Uns sabem os meus pecadilhos porque são amigos muito próximos, outros tornaram-se amigos muito próximos porque ouviram os meus pecadilhos. Significa isto que ouvir pecadilhos pode ser um ponto de chegada ou um ponto de partida. 

Acima de tudo imagino a virtude que está por trás do facto de alguém saber os nossos pecadilhos. No fundo, é como convidar alguém para nossa casa e mostrar-lhe os lugares mais recônditos, aqueles lugares onde se chega por intimidade ou indiscrição. Revelar um pecadilho não é um exibicionismo de uma tara para gáudio dos presentes, como a mulher com três pernas ou o homem que sai de um canhão. É a constatação da normalidade, algo a que me aferro com pundonor excessivo.   

JdB 

* publicado originalmente a 18 de Dezembro de 2015

07 setembro 2025

XXIII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Lucas 14,25-33

Naquele tempo,
seguia Jesus uma grande multidão.
Jesus voltou-Se e disse-lhes:
«Se alguém vem ter comigo,
sem Me preferir ao pai, à mãe,
à esposa, aos filhos, aos irmãos, às irmãs
e até à própria vida,
não pode ser meu discípulo.
Quem não toma a sua cruz para Me seguir,
não pode ser meu discípulo.
Quem de entre vós, que, desejando construir uma torre,
Não se senta primeiro a calcular a despesa,
para ver se tem com que terminá-la?
Não suceda que, depois de assentar os alicerces,
se mostre incapaz de a concluir
e todos os que olharem comecem a fazer troça, dizendo:
‘Esse homem começou a edificar,
mas não foi capaz de concluir’.
E qual é o rei que parte para a guerra contra outro rei
e não se senta primeiro a considerar
se é capaz de se opor, com dez mil soldados,
àquele que vem contra com ele com vinte mil?
Aliás, enquanto o outro ainda está longe,
manda-lhe uma delegação a pedir as condições de paz.

Assim, quem de entre vós não renunciar a todos os seus bens, 
não pode ser meu discípulo». 

05 setembro 2025

Fatal é o destino? *

Deixa-me viver. Não te entrances nos meus dias, estou-te a pedir. Não vês que não consigo carregar-te? É muito peso, é longa a história, e duro lamber as chagas. Na verdade, nem sei se sou capaz de te enfrentar, de te olhar nos olhos, de te ver de frente. Fazes-me pena, trazes-me raiva, mostras-me coisas que eu não quero, lembras-me o que eu gostava de esquecer. Lembras-me, eu já sei. Deixa-me lá continuar a disfarçar que sou mais um, igual a tantos outros da manada. Que gosto de andar aqui na multidão, de ser um cidadão progenitor, um empregado disciplinado e cumpridor. Larga-me, rogo-te. Fecha-te a sete chaves em sossego, esconde-te, não me forces a fazer-te a vontade. Não posso, sinto isso, não consigo. Tem dó alma perdida, pára de segredar constantemente a mesma coisa, que nada querias com esta vida. Não vês que eu era fraco e nem te ouvia? Como hei-de consolar-te, já não sei. Como hei-de dominar-te, ainda talvez... um dia, se lá chegar, vou procurar-te. E tentar saber ao que chegaste, o porquê, a razão de tanta urgência. Prometo, juro e quem sabe, firmamos um acordo. Que eu viva inteiramente ao teu jeito, que te ame loucamente como anseias, sem as reservas desta mente maltrapilha, carregada de obtusos pensamentos, que adiam e adiam os tormentos. Aguenta-te alma, mais um pouco. Espera que chegue o tempo que nos junte. Que haja coragem para termos esse encontro. Fatal, eu sei, como o destino. 

DaLheGas

* publicado originalmente a 28 de Novembro de 2009

03 setembro 2025

Poemas dos dias que correm

Equinócio

Chega-se a este ponto em que se fica à espera

Em que apetece um ombro o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato

Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gin enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena

Chega-se a este ponto Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo

Rola mais um trovão Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe

David Mourão-Ferreira 

02 setembro 2025

Das crenças

A ler vários livros por causa do doutoramento, cruzo-me com esta frase de alguém que se refere a outro alguém que já morreu: rezo pela alma dele todos os dias

O que significa rezar pela alma de alguém que pode ter morrido há 2 anos, ou há 20? Os mortos precisam da nossa oração para ir para o Céu? E o que acontece aos que não têm quem reze por eles especificamente? Confiam na generosidade de uma multidão anónima, porém crente? E o que acontece aos mortos que conhecemos, mas pelos quais nos esquecemos de rezar? E as crianças que morrem, estão também dependentes da nossa oração para encontrar o colo de Nossa Senhora? E a partir de quando se deixa de ser criança e já se requer a oração como uma espécie de bilhete de entrada na pátria celeste?

Estas e outras perguntas têm-me surgido à medida que vou escrevendo sobre o sofrimento e Deus, um capítulo claramente muito exigente do ponto de vista intelectual: conciliar harmoniosamente, e no mesmo texto, Camus, Dostoiévski, Santo Agostinho ou Carla Madeira (uma escritora brasileira moderna) é um exercício desafiante. Esta secção da tese pode ser uma faca, em que tudo depende de como a agarramos: à medida que leio e escrevo, releio e rescrevo, a minha fé não esmorece, torna-se mais clara, mais límpida, talvez mais discernida e, quem sabe, mais forte. Por outro lado, torno-me mais crítico do que fui ouvindo na catequese, nas missas de finados, nas orações pelas crianças doentes, na interpretação das curas aparentemente sem explicação racional, na imperscrutabilidade dos desígnios de Deus. 

Se eu pudesse dialogar com o personagem do livro que reza todos os dias pela alma do falecido, talvez lhe dissesse que o foco da nossa oração deveriam ser os vivos, e não os mortos. Mal de mim se acreditasse que os meus mortos estão dependentes da frequência das minhas rogativas; e quero sossegar os que me sucederem: estou em crer que o céu me será franqueado - ou não - independentemente da quantidade de avé-Marias que rezarem pela minha alma. Rezemos, por isso, por nós e pelos que cá estão ainda. E talvez mesmo, quando lembrarmos os mortos nas nossas orações, que seja para eles nos ajudarem.   

No livro Óscar e a senhora cor-de-rosa, de Eric-Emmanuel Schmitt, há um diálogo entre Óscar (uma criança com cancro) e a Vóvó-Rosa (uma voluntária) que deveria ser mencionado na catequese das crianças e nas conversas de adultos:

“- OK. Então posso pedir-lhe [a Deus] tudo? Brinquedos, bombons, um carro...
- Não, Óscar. Deus não é o Pai Natal. Só podes pedir coisas do espírito.
- Por exemplo?
- Por exemplo: coragem, paciência, esclarecimentos.” 
 

Perceber este diálogo é perceber que Deus não cura as nossas doenças, porque também não as causa; é perceber que os milagres são os da alma, não os do corpo; é perceber que as curas inexplicáveis são fenómenos que a ciência ainda não sabe explicar, e que é melhor que Deus seja bondoso e não omnipotente do que omnipotente e não tão bondoso, porque há crianças que morrem e não se percebe porquê... É melhor compreender isto e inocentar Deus das desgraças que acontecem, do que achar que é Deus que dá as coisas boas, mas que há um mistério nas coisas más...

Digo eu, no fundo...

JdB        

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