31 dezembro 2025

Vai um gin do Peter’s ?

 O NATAL COMEÇA NA GRUTA  

Há vinte anos, amigos de diferentes movimentos resolveram dar continuidade aos preparativos organizados em conjunto para as vindas dos Papas a Portugal, desde a visita de S.João Paulo II, em 1991. A ideia de prepararem o Natal fez surgir um coro com todos a bordo. Nesse Natal, ouviu-se o primeiro concerto do “Coro dos Movimentos”, onde tantos já tiveram (e ainda têm, como eu) sobrinhos a actuar. Os maestros ou maestrinas têm dado provas de imenso profissionalismo e autoridade natural, apesar de serem da idade dos coralistas. O repertório variado e muito original tem sido outra das boas apostas. 

Aos poucos, juntaram às músicas, textos compostos por alguém do coro, com especial sentido poético e uma sabedoria que talvez não se esperasse em estudantes universitários e recém-licenciados. Acrescentaram o bom hábito de distribuir pelos bancos os livrinhos do concerto, para os espectadores acompanharem tudo, de fio a pavio. E juntam-se às centenas, apesar das noites geladas de Dezembro. 

Este ano, além dos textos compostos pelo Francisco Mendes, foi estreada uma música composta por este jovem talentosíssimo. A obra chama-se «Sonhos de José» e transcrevo a letra, com pena de não ter conseguido apanhar uma gravação na net: 

«José não tenhas medo   
Sou eu
Sei que é difícil de acreditar
No que aconteceu
O filho de Maria é vontade de Deus
Pelo Espírito Santo a Virgem concebeu 

O Sonho de Deus
Fez-se em sonhos teus
Desperta do sono
Recebe Maria
Entrega o que és a Jesus
Terás Sagrada Família
Jesus, Maria, José
Família de Nazaré 

José, filho de David,
És tu
Que tomas por esposa
Aquela que um Filho vai dar à luz
E tu pôr-lhe-ás o nome de Jesus
Pois tu carpinteiro
És homem bom
És homem justo.»

Partilho excertos dos escritos do Francisco, tão novo e inspirado, que adoptou para leit motiv da sua mensagem de Natal a Gruta: 

«NOSSA SENHORA COMO GRUTA

Não se entra numa gruta para ficar lá para sempre. Mas é preciso entrar. É preciso ver. 
Mais um concerto, mais um Advento, mais um tempo para o qual não tenho tempo.
Mas entro. (…)
Em 1962, Michel Siffre, um espeleologista francês partiu numa expedição para uma gruta nos Alpes. 
Levou todo o material necessário, mas decidiu que não levaria relógio e que só queria ser contactado pelo exterior dois meses depois do início da expedição.
Quando o chamaram, no final de dois meses, a sua perceção dizia-lhe que só tinha passado um.
A gruta fria, escura e silenciosa tinha-lhe mudado a perceção do tempo. Trabalhou nesses dois meses como nunca tinha trabalhado. (…) O tempo da gruta é um tempo diferente, mais largo.
Na gruta há tempo para que eu me aproxime do tempo de Deus.
Há tempo para que uma Virgem prepare no silêncio, no íntimo, no escuro, o tempo largo de Deus.
Porque, sem saber, Nossa Senhora foi a gruta antes da gruta. 
O abrigo seguro e silencioso onde se prepara o sonho de Deus.
É Maria que nos mostra a primeira gruta, a que nos abre a preparação. O “sim” de Maria muda tudo, com ela há todo um Advento. Um corpo que se prepara para ser mãe de um menino. Um coração que se prepara para ser Mãe de Deus. 
Maria, a entranha que deixou Deus entrar.
Mesmo que não se entre na gruta para ficar lá para sempre, é preciso entrar.
Sê bem-vindo! 

PRESÉPIO COMO GRUTA

(…) Tudo pronto para montar o presépio e pôr as figuras todas… na gruta. Era uma gruta ou um estábulo?
Uma hospedaria não era de certeza… S.Lucas conta-nos que já não havia lugar e que o Menino ficou reclinado “numa manjedoura”.  
A partir daí entra a tradição: (…) Belém tinha um sistema de grutas, e muitas funcionavam como armazéns agrícolas, por isso é possível que numa gruta houvesse uma manjedoura. 
É possível… É possível…
Enquanto me embrenho em questões históricas (…) esqueço-me da mais espectacular possibilidade.
É só olhar para o presépio. 
A questão espacial fica especial se eu me lembrar de que Deus cabe numa gruta! (…) (No) tal lugar escuro, frio e inóspito.
Mas um lugar cuja Natureza muda pela presença de Deus. 
Uma gruta é escura, mas aquela gruta é o lugar mais iluminado da terra.
Uma gruta é inóspita, mas quela gruta é fonte de Vida.
Uma gruta é fria, mas aquela faz arder corações. 
[No presépio quem é que aquece quem? São os pais, os reis, os animais que aquecem o Menino? Ou é o Menino que os aquece a todos?]
(…) Se é assim no presépio, como não será comigo?
Deus cabe-me no coração, pelo que é e pelo que Deus faz dele.  

IGREJA COMO GRUTA

Escura, fria, sem vida. É assim a Igreja sem Jesus.
Uma gruta sem luz é assustadora. 
Um Igreja sem Jesus é inimaginável.
A Igreja também é uma gruta, edificada sobre a Pedra. Mas a Igreja é amada por Cristo e esse Amor faz dela uma gruta diferente. 
Quando estás na Igreja, por mais parada que ela te pareça, a Igreja move-se. Se fechares os olhos e ouvires bem, ouves para lá do silêncio… os ecos de todos os que aqui chegam, os ecos de todos os que por aqui passaram.
Quando abres os olhos, percebes que há movimento na gruta. 
Para a Igreja ser abrigo, para a Igreja proteger, para ser o crescimento constante de cada pedra, precisa de desenhar movimento. Um movimento que aponta para a profundidade e reencaminha para a saída. 
Mas se Deus sonhou a Igreja, se Deus a amou, por que é que nos quer em constante saída?
Porque não se entra numa gruta para ficar lá para sempre.
A Alegria não se esconde. 
Se Ele já nasceu, o que ainda estás a fazer aí parado?» 

Uma das peças mais salerosas do Coro dos Movimentos é a ária do espanhol Jorge Álvarez, intitulada «Ven y reina» (aqui numa gravação de 2024, que se repetiu também este ano):  


Rembrandt também representou o presépio como gruta escura e fria, apenas com um foco de luz em redor de um Bebé nu, maximamente despojado, e da Mãe que o mostra a um Mago idoso, imponente, de joelhos e até curvado para se aproximar daquele minúsculo ser humano. Esta obra maior do barroco e do tenebrismo revela a catadupa de paradoxos de um Deus, que decide vir ao mundo na máxima vulnerabilidade, como recém-nascido, igual a qualquer humano, sem nenhuma originalidade e tão insignificante face à opulência dos soberanos que O visitam, com pálio, trajados sumptuosamente, numa cena difícil de perceber para quem não perceba quem é aquele Pequenino. 

Também na tela do pintor de seiscentos ecoa a pergunta: afinal, quem ilumina quem?... Atrás dos Sábios do Oriente, amontoa-se uma multidão, talvez formada por pajens e gente da corte, que os terá acompanhado na longa viagem. A maioria parece alheada, conversando entre si, quase de costas para o foco de luz onde as figuras principais contracenam. Talvez a luz nem esteja ao alcance de todos os olhares, tal a distração da maioria dos que se acotovelam por detrás do pálio. Resta uma minoria curiosa, que espreita para aquele pequeno círculo luminoso e insólito, talvez procurando vislumbrar a causa da estranha inversão de papéis entre uns e outros, segundo os critérios do mundo. Porque se furou o protocolo tão acintosamente? O mistério manter-se-á indecifrável para os desinteressados, demasiado entretidos com os seus afazeres e preocupações. Quantos conseguirão aceitar e reconhecer a possibilidade de se esconder um Mistério decisivo sob uma aparência tão banal? A luz quente e aconchegante que Rembrandt associou àquele Bebé, a par da vénia enternecida e solene do Sábio mais próximo do Bebé, com as mãos em gesto de adoração, ficaram como sinais eloquentes do alcance maior do nascimento de Jesus. De facto, tudo mudou, quando entrou no curso da História, em carne-e-osso.          

Adoração dos Magos. Rembrandt, 1632. Tela de 54cm x 44cm. Original em colecção privada de Roma, com réplicas no Hermitage e no museu sueco de Gothenburg.

Um grande presente de Natal terão tido os donos desta tela original de Rembrandt, que pensavam possuir uma cópia de boa qualidade do mestre flamengo do claro-escuro. Descobriram tratar-se do original (2016), quando o levaram a uma oficina de restauro, depois de o quadro ter caído e ficado com a moldura estragada.  

Feliz Ano Novo a todos e Feliz Dia de Reis, na próxima semana!

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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