09 junho 2009

Páginas escolhidas para o Dia de Portugal



Com efeito! Depois de tão desencontradas emoções só apetecíamos as camas que esperavam, macias e abertas. Quando caí sobre a travesseira, sem gravata, em ceroulas, já o meu Príncipe, que não se despira, apenas embrulhara os pés no meu paletó, nosso único agasalho, ressonava com majestade.

Depois, muito tarde e muito longe, percebi junto do meu catre, na claridadezinha da manhã, coada pelas cortinas verdes, uma fardeta, um
boné, que murmuravam baixinho com imensa doçura:

--V. Exas. não têm nada a declarar?... Não há malinhas de mão?...

Era a minha terra! Murmurei baixinho com imensa ternura:

--Não temos aqui nada... Pergunte V. Exa. pelo Grillo... Ai atrás, num compartimento... Ele tem as chaves, tem tudo... É o Grillo.

A fardeta desapareceu, sem rumor, como sombra benéfica. E eu readormeci com o pensamento em Guiães, onde a tia Vicência, atarefada, de lenço branco cruzado no peito, de certo já preparava o leitão.

Acordei envolto num largo e doce silêncio. Era uma Estação muito sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes — e outras rosas em moitas, num jardim, onde um tanquezinho abafado de limos dormia sob duas mimosas em flor que rescendiam. Um moço pálido, de paletó cor de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava pensativamente o comboio. Agachada rente à grade da horta, uma velha, diante da sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre o telhado secavam abóboras. Por cima rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que meus olhos andavam aguados.

Sacudi violentamente Jacinto:

--Acorda, homem, que estás na tua terra!

Ele desembrulhou os pés do meu paletó, cofiou o bigode, e veio sem pressa, à vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra.

--Então é Portugal, hein?... Cheira bem.

--Está claro que cheira bem, animal!

(Eça de Queirós, in A cidade e as Serras)

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