28 julho 2010

Vai um gin do Peter's?


É difícil imaginar que um contemporâneo das escolas de pintura mais vanguardistas, nado e criado em França, se tenha mantido constante no estilo mais próximo do objecto observado, tornando-se conhecido como o «pintor da verdade»


Constant Le Breton, oriundo da Bretanha, atravessou um século de vida, de 1895 a 1985, igualzíssimo a si próprio, imperturbável aos movimentos experimentais e progressistas da arte novecentista. Teve, assim, a ousadia de ser fiel à tradição, uma das características mais subestimadas do século em que o homem chegou à Lua:


A exposição, patente na Gulbenkian até 8 de Agosto (1), é uma boa mostra da produção clássica do pintor, permitindo-nos sobrevoar cem anos da história de França, na versão menos comum: os cenários familiares com acesso directo aos interiores das casas parisienses; as perspectivas captadas a partir do fantástico passeio pedonal que bordeja o Sena; as paisagens suaves, de luz sombria, na parte menos monumental do Loire, bem a norte dos Castelos; os retratos de crianças anónimas e de algumas (poucas) figuras públicas como Ingrid Bergman. Dos óleos às aguarelas, Breton foi também um exímio desenhador e gravador de litografias tendo-se, no entanto, celebrizado como retratista.


Em toda a sua obra perpassa um olhar doce e, simultaneamente, firme, que transporta para as telas uma paz e uma luminosidade extraordinárias. Raras no panorama das pinturas do seu tempo, onde as abordagens introspectivas, exploratórias das zonas mais remotas e indomáveis do subconsciente, se exprimem num tom angustiado e obscuro.




É frequente aplicar a Breton um tratamento de excepção e não dissociar a pintura da sua vida. É nessa senda, bastante incomum, que o grande realizador sueco, Ingmar Bergman, assume ter sido um fiasco como ser humano (2), com a lucidez que lhe admiramos nos filmes. Claro que estamos a falar de um homem superior, apesar de tudo. Não por acaso, seguia das bússolas mais fiáveis: a busca intrépida pela verdade tomando como meta o amor – «Tento dizer a verdade sobre a condição humana – a verdade como eu a vejo.» «A noção de amor (é) a única forma concebível de santidade (1968)


É também de Bergman a caracterização cirúrgica do artista contemporâneo, incrivelmente egocêntrico: «A mais insignificante ferida ou dor no ego é examinada à lupa como se fosse matéria de importância capital. O artista considera o seu isolamento, a sua subjectividade, o seu individualismo quase sagrado


Isto é tudo o que não se aplica a Breton. Por estranho que pareça, extravasa das suas telas a própria humildade, como uma tonalidade inédita na paleta cromática do século do showbiz. Na sua pintura, tudo se mostra mas nada se exibe. Impera a simplicidade. Os elementos coabitam harmoniosamente, sem hierarquias nem vedetismos. Das pessoas às paisagens, domina o mesmo rigor pictórico, sem a presença marcante do pintor-criador, fazendo-nos crer que recuámos mais de cem anos para épocas onde os holofotes incidiam sobre as obras e nem tanto sobre os artistas…




O seu extremo cuidado revela-se na abundância dos pormenores e da variedade de texturas. Breton costumava dizer que pintava por necessidade e por gosto, como quem respira. Mas embora a sua arte pareça fluir com naturalidade, adivinha-se-lhe um trabalho árduo, até ao mais ínfimo detalhe. A transparência da água de um insignificante riacho ou o entrançado de filigrana dos cabos na tela dos «3 Mastros» são exemplos de uma riqueza hiper discreta, de uma aparência invulgarmente despojada:


De facto, é notável que os críticos de arte associem a pintura de Breton à verdade. Notável e raríssimo, sobretudo numa época onde o relativismo já avançava a passos de gigante. No fundo, espantamo-nos com o impacto subtil de pinceladas de uma beleza muito depurada, gentil e humilde, que transbordam para lá dos limites da tela e da arte, parecendo plasmar a própria realidade. Experimentem ir até à Gulbenkian ver com os vossos próprios olhos.



Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)


____________________________

(1) Constant Le Breton (1895-1985). Pinturas e aguarelas

  • Expo - Fora de Portas De 21/05 a 8/Agosto /2010. Das 10h00 às 18h00, Terça a Domingo, Entrada livre
    Galeria de Exposições Temporárias da Sede, piso 01 (junto ao bengaleiro), na Fundação Calouste Gulbenkian
    . http://www.gulbenkian.pt.

(2) «I was very cruel to actors and to other people. I think I was a very, very unpleasant young man. If I met the young Ingmar today, I think I would say, "You are very talented and I will see if I can help you, but I don't think I want anything else to do with you."» publicado no New York Times Magazine, 26 de Junho de 1983. Num outro desabafo, no final de vida: «(Fui) um péssimo marido e ainda pior pai.»


5 comentários:

Anónimo disse...

Obrigadíssima, MZ, vou mesmo à Gulbenkian até ao dia 8. Gostei muito da descrição que fizeste. Este pintor lembra-me outros, da mesma época, que nunca tendo sido "pesos pesados" da pintura, muito fizeram por ela (e por isso são reconhecidos por aqueles que sabem de pintura e não são pretenciosos): pela continuação da tradição, pela suavidade, pela precisão do seu traço ou da sua pincelada, pela escolha de temas muito simples e "caseiros". Para todos os efeitos, qualquer coisa pode ser pintada!.. Vi uma expo na Royal Academy uma vez que, de outra maneira, porque não há pintores iguais (a não ser que se copiem uns aos outros, o que até é costume no início das suas carreiras, para efeitos de treino e aprendizagem), porque não há pintores iguais, dizia, me lembra este que me apresentaste: xxxx Hammerschoi. Dinamarquês, final do séc XIX (ou séc XIX, já não me lembro), tinha uma pureza, uma depuração e umas tonalidades como talvez só os escandinavos saibam ter, sendo a sua pintura absolutamente tradicional, atenção (muitos interiores, muitas costas da sua mulher - costas mesmo -, muitas janelas a olharem do interior para o exterior, luz coada, manchas de luz no chão..). Obrigada pela tua muito conseguida rubrica. Bjs. pcp

Anónimo disse...

Lembras mto bem, pcp, há bem mais exemplos parecidos com Breton, que quase passaram desapercebidos num séc. q. valorizava excessivamente o vedetismo e a mera novidade. Sabes que estes casos (onde Breton é só a ponta do iceberg) me confirmam a suspeita de que a esmagadora maioria dos "verdadeiros" artistas -- daqueles que aguentam o teste do tempo -- não são reconhecidos em vida! É muito difícil reconhecer um génio em vida, ao nosso lado, a dizer umas coisas q. em nada se parecem com o que ouvimos nas outras pessoas... Enfim, isto daria uma daquelas nossas conversas intermináveis e "animaduchas". Obrigadíssima tb pela tua dica, MZ

Anónimo disse...

Sem dúvida, totalmente de acordo. Curiosamente, e isto evidentemente aos meus olhos, acho que já tenho contactado com alguns génios. E digo génios só porque me parecem ser pessoas que vêem mais, vêem mais longe, têm inteligência, sensibilidade e profundidade inesgotáveis. E que inspiram, nunca por nunca passam despercebidos. Ao lado deles, há portas mentais que se abrem, há novas leituras da realidade que se fazem, há, talvez, até transformações interiores...isto para mim é um génio. Sim, sim, estaríamos horas à conversa... pcp

Anónimo disse...

Talvez me tenha excedido. Serão semi-génios, à maneira dos semi-deuses... são pessoas muito dotadas, excepcionalmente dotadas. A verdade é que temos a mania que os génios não estão perto de nós (como os santos) e, se calhar, até estão. São os filhos de não sei quem, os primos daquela outra pessoa...o Caravaggio, o Leo da Vinci, o Ticiano, o Monet, a Madame Curie, o Ingmar Bergman ou a Vanessa Redgrave ... foram e são todos filhos e primos de alguém... porque é que esses génios ou semi-génios não hão-de viver ao pé de nós?? A comunicação social - e a TV nomeadamente - é que os faz maiores do que eles de facto são. Torna-os inacessíveis, envoltos numa aura de grandiosidade que não é muitas vezes evidente num primeiro contacto. Isso e o endeusamento dos não-deuses. Perdeu-se Deus, precisam de se criar substitutos. É um pouco a minha opinião. Não achas? No fundo, o que quero dizer, é que me sinto priviligiada por conhecer algumas pessoas que se destacam, de facto, da normalidade. Com a "anormalidade" que isso muitas vezes acarreta. pcp

Anónimo disse...

Mil por cento de acordo contigo. Até porq., como dizes, tb acho q. já estive ao lado de gente "superior" em algum campo (e sem querer endeusar nenhum humano). Mtos (e nem todos eram portugueses) dos q. tenho visto são de uma humildade extrema e podem, facilmente, passar desapercebidos. Há uma certa discrição que é bastante frequente em pessoas acima da média, digamos. Esse é dos motivos por que a maioria não são nada mediatizáveis. Olha uma Maria João Pires, só p/ dar um exemplo mais acessível. Enfim, subscrevo tudo o q. dizes, incluindo a necessidade de deuses de substituição... MZ

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