16 agosto 2010

Moleskine

Férias. A amizade, tão incondicional quanto é possível, da E. e do A. levou-me uns dias a Soltroia. Praia excelente, tempo quente, banhos prolongados, vida social q.b., conforto caseiro, conversas interessantes. Tudo isto faz um homem feliz, dando graças a Deus – e aos anfitriões, é claro – poder entregar-se ao remanso durante quase uma semana. No entanto, esta jornada estival confirmou o que para mim já era uma certeza (passe o erro de raciocínio): em primeiro lugar, que podemos chegar a esta idade e, ainda assim, fazer amizades fortes, seguras, desafiantes, contrariando a ideia de que há um tempo para tudo – até para fazer Amigos. Em segundo lugar, é grato pensar que aqueles que estão mais próximos, ao ver-nos perante uma encruzilhada, nem sempre atiram com ligeireza uma solução milagrosa ou um conselho sábio. Em vez disso, sai-lhes uma frase do género: qualquer que seja o caminho que escolhas, ter-me-ás ao teu lado.

Desaparecimentos. No espaço de alguns dias morreram progenitores de amigos meus. Era gente com uma idade avançada, a viverem tempos de tormento e de perda de qualidade de vida. Há algo dentro de nós que se alivia com estas partidas porque acompanhamos, ainda que ao longe, o sofrimento de quem padece e de quem está ao lado. Mas, sobretudo no caso do pai do X., é perceber que há um tempo que desaparece, um Senhor (pus o ‘s’ propositadamente em maiúsculas) que eu conhecia há mais de 30 anos e que era uma referência de educação, simpatia, memória, transmissão de valores com os quais viveu uma vida inteira sem transigir.

Evangelho. 5ªfeira passada, missa de 7º dia por alma da mãe da R., em Cascais. O evangelho fala da necessidade de se perdoar, não sete vezes, mas setenta vezes sete. Há passagens da Bíblia que nos ficam mais na memória do que outras. Porque nos comove a bondade de um acto ou o arrependimento sentido de alguém, mas também porque nos interpela, num tempo que pode ser propício a zangas, rancores, orgulhos. Não perdoar sete vezes, mas setenta vezes sete.

Livros. Das últimas semanas ressalto dois: O Livro dos Snobs (W.M. Thackeray, Ed. Guerra e Paz), para quem, como eu, nem sempre percebe que se pode escrever com graça, simplicidade e concisão. A Maçã no Escuro (Clarice Lispector, Ed. Relógio de Água) do qual cito algumas linhas.

(...)

Corajosamente fizera o que todo o homem tinha que fazer uma vez na sua vida: destruí-la.

Para reconstruí-la em seus próprios termos.

(...)

Pois olhou o vazio perfeito da claridade, e ocorreu-lhe a possibilidade estranha de jamais conseguir reconstruir. Mas se não conseguisse, não importava sequer. Ele tivera a coragem de jogar profundamente. Um homem um dia tinha que arriscar tudo. Sim, ele fizera isso.

Poesia. Há poemas nos quais algumas pessoas se revêem. Num destes dias, à borda de uma piscina (de rara qualidade pelas pessoas que estavam à volta) falou-se de Mário de Sá-Carneiro, e do poema O Recreio. Reproduzo-o, emoldurado por um abraço para quem sabe que o recebe.


Na minha Alma há um balouço

Que está sempre a balouçar ---

Balouço à beira dum poço,

Bem difícil de montar...


--- E um menino de bibe

Sobre ele sempre a brincar...


Se a corda se parte um dia

(E já vai estando esgarçada),

Era uma vez a folia:

Morre a criança afogada...


--- Cá por mim não mudo a corda,

Seria grande estopada...


Se o indez morre, deixá-lo...

Mais vale morrer de bibe

Que de casaca... Deixá-lo

Balouçar-se enquanto vive...


--- Mudar a corda era fácil...

Tal ideia nunca tive...


JdB

1 comentário:

Anónimo disse...

João,
Agradeço muito a referência que fazes no teu texto.
É para mim motivo de grande orgulho saber que o tinhas nessa conta, e descrevê-lo de forma tão bonita!
Um abraço,
fq

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