16 março 2015

Dos pontos de interrogação

Na minha ronda de blogues encontro a seguinte frase, de autoria não atribuída: o ponto de interrogação é um ponto de exclamação cansado. A frase é curiosa embora errada, quanto a mim. Há o cansaço físico - umas pernas que se dobram, umas costas que se ressentem, uns braços débeis, incapazes de levantar o mais módico dos pesos, uns pés que arrastam as solas num terreno todo feito de exaustão. E há a fadiga da mente: sinapses que não se estabelecem, uma voz que teima em não sair porque não há comandos que cheguem às cordas onde os pensamentos ganham corpo. Cansaço é isto. O ponto de interrogação não é outro sinal gráfico afectado pela fraqueza. O ponto de interrogação é o irmão desprezado relativamente ao qual não se matará nunca o vitelo mais gordo, o familiar que emigrou para o abandono porque ninguém lhe sentiu a falta no quotidiano exclamado.

Dizem-me ser de Picasso este pensamento: um quadro não existe até que alguém olhe para ele. Faz sentido. Olhar um quadro é reconhecer o quadro; ao ser olhado - mesmo que este pensamento exija uma certa suspensão da descrença - o quadro ganha um corpo, uma alma, uma materialidade de impacto diverso. Ganha uma existência. Como? Através de uns olhos que perscrutam. O olhar que indaga é um ponto de interrogação. O que significa aquela forma geométrica? Porquê aquele jogo de cores? Onde está o punctum deste quadro? O que me diz ele? Afirmar a fealdade das imagens, a desproporção dos objectos, a irregularidade de uma simetria desejada ou a incorrecção da perspectiva  - ou mesmo a inversa de tudo isto - não é ver, é apenas olhar; não é sentir, é apenas tocar; não é escutar, é apenas ouvir. O ponto de exclamação, a cansar-se, é apenas pelo prussianismo de uma postura rígida, empertigada, excessivamente vertical, sem uma curvatura estética que represente o encaixe dos seres humanos. 

Replicando o exercício para o mundo humano, uma pessoa não existe até que alguém se aperceba da sua presença. E só ao ser olhada (num certo sentido metafórico do termo) é que esse indivíduo ganha corpo, uma alma, um número de identificação fiscal de utilização exclusiva pelos corações semelhantes. Como ganha existência? Através da interrogação. Perguntar é ver, escutar, sentir. A voz que pergunta é o olhar que perscruta: quem és tu? Como beijas? O que te emociona? Contas-me coisas da tua vida? 

A exclamação é unidireccional, não requer interlocutor. Digo, afirmo, constato, exclamo. A exclamação é uma linha recta, uma lança, uma seta, um pau por vezes afiado. Tal como a música alegre, é centrífuga. Pelo contrário, a interrogação é redonda, requer participação, é envolvente, uma linha curva toda feita de elegância, que uma recta pode ser mais sinuosa que uma curva. A interrogação é o sinal gráfico que une os seres, como a sala de jantar é a assoalhada que une as famílias. Tal como a música triste, é centrípeta.  

JdB     


2 comentários:

ACC disse...

Belíssimo texto.
Tenho ideia que já tinha escrito sobre a arte de perguntar. Lembro me que voltei aos bancos da escola e á sensação de que o que valia era a resposta rápida e eficaz e nunca a dúvida ou a demonstração da nossa ignorância ou interesse. Será que esta não é uma das causas do desprezo pelo ponto de interrogação?

Anónimo disse...


O ponto de interrogação é uma gravidez prestes a dar à luz.

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