23 março 2015

Vai um gin do Peter’s?

Este ano, o Óscar do Melhor Filme Estrangeiro premiou «IDA»(1) , uma obra-prima assinada por um polaco de nome impronunciável, Paweł Aleksander Pawlikowski (P.A.P.), e produção conjunta de 4 países europeus: Polónia, Dinamarca, França e Reino Unido. De ascendência judia, P.A.P. nasceu em Varsóvia (1957) e andou errante pelo mundo, vivendo imprevistos que têm algumas afinidades com o argumento do seu filme. Em 1971, com 13 anos, acompanhou a mãe numa viagem a Londres, pensava ele, de férias, na sequência do divórcio dos pais, que muito mais tarde se voltariam a casar, depois de se reencontrarem no estrangeiro. Nem um ano volvido, teve de se mudar para a Alemanha, onde vivia o pai. Em 1977, fixou-se nas ilhas Britânicas, ensinando em Oxford e realizando documentários e filmes, que lhe valeram galardões, ou não fossem os seus gurus os realizadores lendários: Dreyer e Bresson. Fala, fluentemente, polaco, russo, inglês, alemão, francês e italiano. Ainda viveu em Paris, até regressar à Polónia, ao bairro da sua infância. Tal como Ida, é na adolescência que descobre as raízes judias, através de um papel estrategicamente abandonado para o filho descobrir o segredo: afinal, o seu pai era judeu e sobrevivera à guerra não se sabe como, enquanto a avó paterna morrera em Auschwitz.  

Como muitos dos expatriados, a sua história acumula várias geografias, diferentes culturas, mas também as mágoas do desenraizamento.

Realizador e co-argumentista de «Ida».

Recuando à Polónia de 1962, o filme é rodado a preto-e-branco, com uma fotografia soberba, apanhando ângulos espantosos e recortando com enorme beleza e rigor as personagens que habitam a tela, quase sempre imersas em fundos esfumados, a aproveitar as gradações intermédias dos cinzas. Uma câmara, claramente, centrada no ser humano, com toda a sua individualidade. Recuamos, com facilidade, aos anos 60 para mergulhar num ambiente misterioso e cheio de mística, que vai do recato da clausura conventual aos ambientes urbanos ritmados a jazz.

Começamos por ser introduzidos nos corredores resguardados de um convento polaco para acompanhar os preparativos das noviças, em vésperas de tomarem os votos. Num microcosmo, onde tudo parece previsível, surge o primeiro sinal de alteração da rotina, característico das histórias passadas no lado de dentro das paredes espessas dos mosteiros: a Madre Prioresa chama uma das noviças ao seu gabinete. Vemos Anna entrar, com um ar suave, surpreso mas consistente. Com espanto, ouve a Madre comunicar-lhe que é judia e só poderá tomar os votos depois de conhecer a outra sobrevivente da família – uma tia a viver na cidade (Varsóvia, creio). Assim começa a aventura de Anna, instada a sair, pela primeira vez, do espaço calmo da abadia onde fora criada, desde bebé, para desbravar um mundo novo.


O encontro com a tia Wanda é duro e, em breves segundos, no limiar da porta do apartamento, com Anna do lado de fora, uma adulta de expressão áspera e em roupão dispara sobre a sua vida duvidosa, estranhando que as freiras não a tivessem já informado. E revela-lhe o nome de origem: Ida Lebenstein, rebaptizada de Anna, no convento. O mais curioso é a fleuma imperturbável da miúda que, do alto dos seus 18 anos, mantém sempre uma serenidade inexplicável, que nada tinha de indiferença nem de falta de discernimento. Assim será ao longo de toda a viagem, que constitui a trama da película, qual road-movie, a nível físico, psíquico e espiritual. Na investigação sobre o desaparecimento da família, Ida embarca com uma estranha, que calha a ser sua parente  o seu oposto (aparentemente): licenciosa e viciada nos analgésicos sociais comuns e mais acessíveis: a bebida, as mãos obsessivamente agarradas ao cigarro, e os homens que vai conhecendo em encontros fugazes, cultivando a ilusão de ser uma diva sedutora e descomprometida, ela que vive a custo a ironia de ter perdido a família durante a perseguição nazi. Embora também exiba os louros da resistente indomável, que escapara ao destino da maioria. Apesar da pose de mulher independente, livre e lutadora intrépida, tem bem a noção de que lhe faltara coragem e generosidade para tratar do bebé que sobrevivera. Ela que perdera o seu filho único. Pior (ou mais incompreensível): permitira-se fazer carreira, com distinção e zelo, durante a vaga estalinista, na qualidade de magistrada activista nas purgas bolcheviques aos alegados traidores do processo revolucionário em curso. Se dúvidas tivéssemos, a homenagem póstuma da nomenklatura confirmam a parte discutível do seu passado, igualmente manchado de sangue alheio, para lá de todo o idealismo político. Neste episódio, a ironia e o humor imperam, praticamente sem atenuantes.

A culpa da maioria pela sorte horrenda dos seus compatriotas, uns durante a guerra, outros nas décadas posteriores, atravessa transversalmente toda a sociedade polaca, dos católicos aos judeus, passando pelos comunistas e oportunistas-carreiristas. Poucos escapam. Sem juízos sobre as opções de uns e outros – mas apenas revelações lúcidas – P.A.P. revê o século XX do seu país natal, com boa dose de objectividade e compaixão. Sobretudo compaixão, simbolizada pela figura silenciosa da noviça acabada de sair da clausura, que fala através de uns olhos bem atentos ao próximo, capazes de avançar até ao coração, sem invadir nem devassar. Só uma incrível bondade, preferindo ouvir, ouvir infinitamente.

A visita ao passado de personagens maculadas pelo crime de homicídio, ensaia brechas de perdão quando recordado sob o olhar paciente e sereno de Ida. Todos precisam de ser perdoados. Por isso, agarram-se ao rosto puro e seguro, como uma rocha, de uma rapariga que não fora ainda contaminada pelo peso dos passos em falso, dados nas horas turvas e, quase sempre violentas, onde tudo parece consentido e os seres humanos têm a ilusão de ser inimputáveis.       

Numa das reflexões híper lúcidas de Santo Agostinho (354-430), percebemos o ridículo de nos arvorarmos em juízes do próximo, por mais escroque que o consideremos. Porque todos vivemos do perdão, como alertava Bento XVI. Segue um excerto sobre a lógica de perdoar, na mesma senda refrescante da obra-prima de P.A.P., com mais sentido e urgência do que se reconhece:


«Julgas que podes encontrar um único homem entre o género humano a quem não se possa contabilizar alguma falta para com um irmão?
Todos os homens são, portanto devedores e credores simultaneamente. Por isso, Deus, que é justo, deu-te uma regra para seguires para com o teu irmão (…). Existem, com efeito, duas obras de misericórdia que nos podem libertar. O próprio Senhor as formulou de uma forma breve no seu Evangelho: “Perdoai e ser-vos-á perdoado.”, “Dai e dar-vos-ão.” (Lc.6, 37-38). A primeira tem a ver com o perdão, a segunda com a caridade.
O Senhor fala do perdão. Ora tu desejas obter o perdão dos teus pecados e tu tens também pecados a perdoar a alguém. (…) Quereis ser perdoados? “Perdoai e ser-vos-á perdoado.” Quereis receber? “Dai e dar-vos-ão.”
Que dívidas queres que te sejam perdoadas? Todas, ou uma parte? Vais responder: todas. Faz, portanto o mesmo para quem te está devedor.»
                                                                                                                               Do «Sermão 83»

Voltando ao filme: era na miúda magra, de sobretudo claro e véu a encobrir os cabelos ruivos, em contraste com a tia mundana e nervosa, que uns e outros confiavam. Inclusive os segredos mais inconfessáveis. É que a humanidade precisa de confiar em alguém. Não se pode levar a suspeita e a acusação até ao limite, sob pena de tornar impossível a vida em sociedade. Ora, Ida tinha autoridade natural. É maravilhosa e misteriosa a tranquilidade com que interpela o assassino dos seus pais sobre a razão de não jazer também na vala clandestina, aludindo à sua morte com um distanciamento incrivelmente sábio.  

Numa paragem do caminho, Ida ajoelha-se aos pés de um cruzeiro, sob o olhar
condescendente da tia, que se vai habituando ao estilo extraterrestre da sobrinha.

Uma nota sobre a escolha desta actriz amadora, descoberta por um amigo do realizador, num café, impactado pela força que irradiava da miúda a ler, na mesa ao lado. Quando a pôde ver sem maquilhagem e com roupa simples, P.A.P. percebeu que descobrira, finalmente, Anna. Estava desesperado, depois de entrevistas falhadas a mais de 400 profissionais, que não quadravam nada com a difícil personagem. O desafio foi, depois, demover Agata Trzebuchowska a deixar-se filmar e plasmar na tela a sua personalidade magnética, iluminada por uns olhos firmes e penetrantes, capaz de enfrentar os maiores reveses e de sarar os traumas mais arreigados.  

Agata Trzebuchowska encarnando a protagonista

A banda sonora é outro dos assombros desta obra, onde tudo é muito estético e poético, mesmo os zooms sobre paisagens e gentes de aspecto notoriamente rude. Aliás, foi concebido como um filme poema. No grupo que toca ao vivo, num bar, numa das etapas do caminho, sobressai a cantora polaca Joanna Kulig, sustentada por excelentes instrumentos de sopro e bateria. Era o som boémio das noites longas. O jazz superabunda. Em casa de Wanda, os ritmos intensos e frenéticos do início, dão lugar a Mozart, que volta ao gira-disco quando a relação com a sobrinha introduz novidade na sua vida. Aos poucos, a adulta céptica e trocista descobre afinidades com uma noviça híper convicta, construindo uma relação afectiva estreita, apesar das óbvias diferenças. Mas na convicção, na bravura, na combatividade e na inquietação pela verdade – cada uma, à sua maneira –  reencontram-se, sem hesitações.

Gradualmente, vão-se aproximando, muito por mérito 
da paciência de Ida –  a amadurecida das duas. 

Elipticamente, acabamos por regressar ao convento, valorizando-se uma escolha incomum, que não se fica pela vida da maioria, como tinha sugerido o novo amigo de Ida, saxofonista talentoso, ao desafiá-la para um futuro em conjunto. São espantosas as observações que o instrumentalista faz a Ida sobre o par improvável, mas impressionante, que ela forma com a tia irreverente; ou sobre o efeito poderoso da jovem trajada de véu, no meio boémio de um bar onde se ouvia John Coltrane.

O silêncio misteriosamente comunicativo de uma noviça, que nunca passa despercebida 

Reunindo em si as duas heranças judaica e cristã – que formam a matriz europeia – Ida quis voltar a ser também Anna, sem renegar nada do passado, antes enriquecendo-o e repurificando-o, como simboliza o enterro dos pais, na campa dos seus antepassados.

Tudo se cruza neste filme densíssimo, onde a história recente da Europa Central é passada a pente fino, sem poupar ninguém. Nas palavras do realizador: «Ida is a film about identity, family, faith, guilt, socialism and music. I wanted to make a film about history that wouldnʼt feel like a historical film— a film that is moral, but has no lessons to offer. I wanted to tell a story in which ʻeveryone has their reasonsʼ; a story closer to poetry than plot (2)

Ali se confrontam a carga insuportável da culpa com a possibilidade de remissão. Aliás, o primeiro projecto de título era «Irmã Misericórdia» (Sister of Mercy). Desvela-se a identidade atormentada de um país, posta em cheque pelos conflitos entre os vários grupos e etnias, que Ida/Anna poderá reconciliar em si própria, fazendo a simbiose do seu duplo legado. Nada é assim tão simples pois, estranhamente, o mesmo que tinha morto a família, por medo dos nazis e cobiça da casa dos Lebenstein, salvara-lhe a vida, enquanto a tia a enjeitara. A coragem nuns e noutros é entremeada por atitudes de enorme cobardia. A generosidade de uns e outros é também ensombrada por fases de egoísmo e avidez ferozes. Ninguém está inocente. Nem ninguém impedido de ser resgatado. A escolha cabe a cada um. Num artigo de título forte – «Entre anjos e fantasmas»(3) – o crítico de cinema Luís Miguel Oliveira, observa que P.A.P. remexe nas «feridas do século XX polaco (…) (e) deixa os fantasmas à solta para fazerem o que têm a fazer: assombrar as personagens e o espectador.» Como todos os bons filmes – e este é extraordinário – ficamos a digeri-lo por muito tempo, percebendo como os fantasmas agitados pelo realizador nos ajudam a rearrumar ideias. Digamos que resultam numa companhia benigna e sugestiva, talvez por fazermos a experiência descrita pela jornalista Sidney Levine, ao retratar o filme como «a journey of a fresh soul into the heart of humanity (who) finds that she is blessed by being able to decide upon her own destiny within it


Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA

Título original:
IDA
Título traduzido em Portugal:
IDA
Realização:
Argumento:
·       Paweł A. Pawlikowski e Rebecca Lenkiewicz (dramaturga britânica)
Produzido por:
·       Eric Abraham, Piotr Dzięcioł, Ewa Puszczyńska
Produção:
Banda Sonora:
Kristian Eidnes Andersen
Duração:
82 min.
Ano:      
2013-2014
País:
Polónia, Dinamarca, Reino Unido e França.
        Elenco:

Agata Kulesza (a tia, Wanda Gruz)
Joanna Kulig    (a cantora e convidada especial)
Dawid Ogrodnik  (o amigo músico)

Local das filmagens:

Polónia

Site oficial, para aceder ao trailer:

http://www.ida-movie.com/

Prémios:

Óscar do Melhor Filme Estrangeiro, eleito o Melhor Filme Estrangeiro  pela British Academy Film Awards, galardoado com o Lux Prize do Parlamento Europeu, num conjunto de 63 prémios de cinema.

 (2)  Entrevista com Sydney Levine, publicada no International Film Business Blog, a 8 de Janeiro de 2015.


(3)  Artigo do jornal PÚBLICO, publicado a 17/07/2014.

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